Educação no capitalismo tardio
A educação no capitalismo tardio e de vigilância
Por RICARDO NORMANHA*
É possível imaginar que uma aula, de qualquer área do conhecimento, pode ser reduzida a dois minutos, no estilo “TikTok”?
Desde muito tempo, recebo sugestões de vagas pelo LinkedIn. Apesar dos filtros “professor”, “docente”, “sociologia”, “ciências humanas”, “pesquisa” e etc., a maior parte das vagas que recebo não têm absolutamente nada a ver com a minha formação. Vagas para professores de educação física para ser instrutor de academia são as mais recorrentes. Se eu fosse pensar em mudar de carreira, essa seria uma opção, se não fosse a minha idade já um tanto adiantada e os problemas de saúde típicos dos 40+ (protrusão discal lombar, descolamento de retina, condromalácia e por aí vai…) para me tornar um educador físico.
Além das vagas distantes do meu perfil profissional, há muitas vagas que exigem cadastros específicos em outros sites e plataformas de vagas de emprego (Gupy, Catho etc.), algumas delas que já preenchi milhões de vezes, sempre sem nenhum retorno das empresas recrutadoras, especialmente porque nunca paguei para essas plataformas para ter acesso aos planos premium que oferecem maiores chances de contratação.
Já faz algum tempo que desisti de conseguir uma boa colocação profissional por meio do LinkedIn ou qualquer coisa que o valha e direcionei meus esforços para a docência em instituições públicas, cursos livres e pesquisa de pós-doutorado, buscando uma boa colocação por meio de concurso público, enquanto ainda existem alguns. Mas continuo recebendo as sugestões de vagas do LinkedIn. Mantenho o cadastro para observar, com a perspectiva da investigação científica, os contornos que o mercado de trabalho docente vem assumindo nos últimos anos. Embora não seja o enfoque específico da minha atual pesquisa de pós-doutorado na Unicamp, de certa forma, observar esses anúncios ajudam a iluminar o campo do trabalho docente no atual momento do desenvolvimento capitalista.
De tempos em tempos surgem alguns anúncios peculiares. Hoje foi um desses dias. A vaga que encabeçava o e-mail diário que recebo do LinkedIn era para “Professores para gravações de aula”. Como já trabalhei gravando videoaula para uma plataforma de aulas particulares – experiência sobre a qual ainda pretendo elaborar uma análise mais profunda e minuciosa – cliquei no link do anúncio para saber mais detalhes sobre a vaga.
O anúncio, de início, já destaca o perfil da vaga de trabalho: gravação de vídeos curtos e divertidos para a plataforma do “Hospital Questiona”. De início, achei que seria algo relacionado ao ensino hospitalar, isto é, alguma plataforma que oferecesse ferramentas para o ensino regular para pessoas que estão internadas ou passando por tratamentos em hospitais e, por conta disso, não podem frequentar a escola regular.
A curiosidade do investigador me fez procurar por “Hospital Questiona” no Google. Eis que me deparo com algo que não tem absolutamente nada a ver com ensino hospitalar. Trata-se de mais uma plataforma de aulas particulares e, aderente à onda coach que está cada vez mais hegemônica na nossa sociedade, “mentorias” baseadas em um “algoritmo inteligente” que promete fazer com que o estudante/cliente consiga até 150 pontos a mais no ENEM.
Voltando ao anúncio, algo me surpreendeu, embora não devesse me surpreender a essa altura do campeonato e sabendo os rumos que a educação vem tomando na era do capitalismo de plataformas em que a lógica das redes sociais dominaram todas as esferas da vida social. As videoaulas gravadas, curtas e divertidas, devem estar no formato de “Reels” e “TikTok” e ter duração de 2 minutos. Sim, as aulas devem durar dois minutos.
Pergunto a qualquer pessoa que porventura esteja lendo esse texto, professores ou não, se é possível imaginar que uma aula, de qualquer área do conhecimento, pode ser reduzida a dois minutos, no estilo “TikTok”.
Vale ressaltar que esse não é o único aspecto da precariedade que o trabalho docente vem enfrentando. O anúncio não deixa claro qual a forma de contratação. Não há menção à CLT e, pelo que costuma ser praticado nesse tipo de “serviço”, com sorte, o contrato é por MEI. O trabalho é descrito como 100% remoto. E a remuneração, para a surpresa de ninguém, é 100% variável.
Esse texto é muito mais um desabafo, sem grandes pretensões analíticas. Mas, em tempos de educação cada vez mais plataformizada, inclusive no ensino regular e oficial do Estado de São Paulo, em que o trabalho docente está sujeito a novas e cada vez mais elaboradas formas de precarização, o anúncio de uma vaga para um trabalho remoto de gravação de videoaulas de dois minutos, em formato de “TikTok”, para uma plataforma de aulas particulares e mentorias, com remuneração totalmente variável não é nada fora do esperado.
Mas nem por isso merece passar batido. Cada segundo refletido sobre o que está acontecendo com a educação no país merece ser valorizado. É preciso formar massa crítica que possa, em alguma medida, fazer frente a tantos ataques.
*Ricardo Normanha é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Unicamp.
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