Educação sem bússola
A EDUCAÇÃO SEM BÚSSOLA
Ao usar Lei de Dados como justificativa para retirar do ar informações educacionais, Inep dificulta diagnósticos sobre sistema de ensino
A área da educação perdeu a sua bússola com a retirada de parte dos microdados do Censo Escolar e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) do site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Para quem não está a par da história, vale rememorar o que aconteceu: na sexta-feira, 18/2, a autarquia, principal produtora de informações sobre educação no país, divulgou os microdados do Censo Escolar 2021 e do Enem 2020. Todos os anos, o Inep divulga informações detalhadas coletadas nos levantamentos e avaliações que realiza.
Esse é um material aguardado por gestores, pesquisadores e jornalistas, pois é uma fonte preciosa de informações que permitem pensar a educação daqui para a frente, bem como identificar os avanços e processos que nos trouxeram até o ponto onde estamos. Inúmeras pesquisas e reportagens são publicadas com base nessas informações, revelando os vieses raciais e de gênero que modelam as desigualdades, as fragilidades de aprendizagem, as discrepâncias regionais, enfim: com os microdados é como se olhássemos para a realidade com uma lupa, compreendo-a em seus detalhes e complexidades.
Porém, alegando a obrigação de respeitar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Inep alterou radicalmente a apresentação dos microdados, suprimindo informações consideradas sensíveis. Retirou, por exemplo, informações sobre localização diferenciada das escolas – se estão localizadas em assentamento, terra indígena, quilombo – e sobre qualificação e carga de trabalho dos professores. Pelo mesmo motivo, o instituto também retirou do ar bases de dados antigas sobre a educação superior, que traziam todo tipo de informações sobre matrícula – público x privado, presencial x a distância, por curso –, além de número de concluintes, tipos de instituição, entre tantas outras.
Um parâmetro para a tomada de decisão, segundo o Inep, foi um estudo realizado por pesquisadores do Departamento de Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizado no ano passado a pedido do Inep. A pesquisa concluiu que, com o cruzamento de um conjunto de variáveis do Censo Escolar, seria possível identificar até 75,5% dos estudantes. Um resultado que soa alarmante e, em tese, configura uma justificativa plausível para uma medida dura.
No entanto, o que Inep fez é algo como jogar o bebê junto com a água da bacia, tamanha a redução e desconfiguração da massa de informações disponibilizadas, deixando a sociedade sem acesso a informações de interesse público e, mais do que isso, impossibilitada de construir suas próprias análises e confrontar as estatísticas oficiais. Sem contar que interrompe uma trajetória de transparência iniciada há trinta anos.
Talvez este seja um dos aspectos mais expressivos nesse episódio. E não é difícil entender o motivo: até meados da década de 1990 não se sabia o número exato de estudantes matriculados nas escolas. Dependendo do órgão – e dos interesses envolvidos – o número variava, dando margem a desvios e contradições. Na época, não eram incomuns as notícias de que o número de matrículas em um município era maior do que sua população.
Esse cenário começou a mudar com a implantação do Censo Escolar em 1995, num contexto de fortalecimento do Inep como órgão de avaliação e produção de informações. Sem o Censo Escolar – que permitiu a contagem dos estudantes, consolidando as informações fornecidas pelas escolas – não teria sido possível implementar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, o Fundef, que foi o ponto de partida de uma estrutura de financiamento da educação que se desdobrou no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica, e existe até hoje.
O financiamento da educação é apenas um dos campos que foram favorecidos pela existência de dados estatísticos confiáveis. Políticas de inclusão, programas de formação docente, as avaliações da aprendizagem, entre outras ações, passaram a ser formatadas com base em informações que iam sendo geradas e disseminadas ao longo dos anos.
Ao mesmo tempo, com os dados disponíveis, a sociedade civil passou a fazer seus próprios estudos, ampliando o espectro do debate e a compreensão sobre os desafios e os rumos da educação e subsidiando políticas educacionais.
Este é outro ponto crucial: o debate – ou, melhor dizendo, a ausência dele. Diante do novo cenário jurídico delineado pela LGPD, cujo pano de fundo é o avanço tecnológico, a utilização de um argumento técnico para suprimir o acesso a bases de dados de interesse público pode parecer legítimo. Afinal, ao mesmo tempo em que a tecnologia viabiliza a produção e difusão de grandes massas de informação, ela também oferece instrumentos para a quebra de sigilo e roubo de dados. Dentro dessa lógica, fechar o acesso aos microdados pode se configurar como uma medida de proteção do indivíduo.
É aí que surge um questionamento: seria este o único caminho? Não necessariamente, se pensarmos que o resultado da pesquisa da UFMG estava disponível havia alguns meses e poderia ter sido usado como ponto de partida para um amplo debate, reunindo sociedade civil, pesquisadores, técnicos, gestores para definir em conjunto um formato para a divulgação dos microdados mais condizente com a necessidade de proteger a identidade dos indivíduos. Existem diversas técnicas e procedimentos que avançam nessa direção, como trocar de posição algumas informações na planilha, preservando a unidade de pesquisa.
Assim, o que está em jogo nesse episódio não diz respeito apenas à inviabilização de se produzir análises sobre educação ou de reunir subsídios para as políticas públicas – o que por si só já é grave o suficiente. Também saem enfraquecidos os mecanismos e práticas democráticas de debate e concertação, que se fortaleceram e pautam o campo da educação ao longo das últimas décadas, desde a redemocratização. Mesmo que o Inep resolva reabrir os dados, como tem prometido, é muito possível que a sociedade tenha de se mobilizar – como já vem fazendo –, a fim de reivindicar os moldes de como terá acesso aos microdados. É como começar do zero, ou talvez abaixo de zero, e negociar algo que já estava garantido. Mais um retrocesso.
Também é importante perceber que a postura do instituto está alinhada com a conduta geral e a visão de sociedade do governo Bolsonaro, que tem como um dos pilares a defesa do direito individual acima de tudo. Perspectiva que alimenta argumentos do senso comum, como a ideia de que “o seu direito começa onde termina o meu”.
Voltando para a educação, a lógica que sustenta a supressão do acesso aos microdados em nome da proteção do direito individual não é muito diferente daquela que sustenta a defesa do homeschooling – a ideia de que a família tem o direito absoluto de escolher o que seu filho vai aprender. Mais uma vez, uma sobrevalorização da opinião, da crença, da visão de mundo individual em relação ao coletivo, aos direitos sociais.
Por isso, o que está em jogo vai muito além dos prejuízos imensuráveis que a decisão do Inep gera para a educação e o país. E, diante disso, talvez não seja descabido pensar que o sumiço dos microdados da educação pode abrir precedente para que medidas semelhantes sejam adotadas em outras áreas do governo, que parece querer usar a LGPD para barrar a transparência da informação pública. Com isso, é possível que, em nome do respeito à legalidade e à proteção do indivíduo (valores fundamentais, não há dúvida), o direito à informação pública também seja barrado. Qual será a bola da vez?
É jornalista de educação e historiadora