Educação sexual na escola

Educação sexual na escola

Educação sexual: o que a escola não quer escutar 

Enquanto os meninos aprendem sobre espermatozoides como quem aprende sobre foguetes, as meninas aprendem de maneira solitária que devem proteger-se de si mesmas

Por José Luís Ferraro / Publicado em 12 de maio de 2025

 

 

Educação sexual: o que a escola não quer escutarArte: EC com uso de IA, inspirada em Magritte

 

 

Há quem diga que falar sobre sexualidade nas escolas é – senso comum – “coisa moderna demais”. A verdade é que não há nada mais antigo do que investir sobre os corpos e sua produção desejante com o intuito de controlá-los.

Assim, o que atualmente se discute sob o nome de “educação sexual” é, na verdade, uma disputa acirrada entre formas de normatizar o desejo e possibilidades de (re)inventar maneiras de (re)existir com ele – ou por meio dele.

Trata-se de um debate que atravessa a psicanálise, percorre a filosofia e, de algum modo, continua em sala de aula, com professores que tentam responder, sobretudo às famílias mais conservadoras, “por que a sexualidade?”: questionamento atravessado pela própria definição do termo historicamente desvirtuada.

Talvez Freud nos dissesse que essa pergunta já viria mal formulada. O que importa não seria “a” sexualidade (associada ao sexo em sentido biológico, anatômico ou moral), mas o desejo – uma força psíquica que, para ele, nasce da falta. Assim, o desejo não seria, necessariamente, a realização daquilo que se quer, mas uma tensão contínua provocada pelo que falta e que, exatamente por isso, move. Assim, o desejo se inscreve em um campo simbólico, fala a língua do Outro, se articula com a cultura.

Para Jaques Lacan o desejo é sempre o desejo do Outro – o sujeito só desejaria a partir daquilo que lhe é apresentado como “desejável” pelo olhar do Outro, pelas estruturas sociais, pela linguagem. Não haveria, então, desejo, sem uma falta fundamental que constitui o sujeito. Nesta percepção, seria esta falta que insiste em manter o desejo vivo.

É nesse ponto que Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem uma virada: eles recusam o desejo como falta. Para eles, não se trata de uma ausência a ser preenchida, mas uma potência produtiva que cria conexões, corpos, modos de vida. Logo, o desejo não dependeria do Outro: por si só, ele é criador, afirmativo, revolucionário. Em vez de ver o desejo como algo que precisa ser interpretado e, portanto, associado à linguagem, esses autores o tomam como uma força que atravessa e constitui o real. É isso que explica sua crítica relacionada à “ditadura do significante”, um modo de submissão da produção desejante à linguagem promovida pela psicanálise lacaniana, defendendo a libertação do desejo de quaisquer sistemas que possam aprisioná-lo.

Mas o que explicaria a necessidade dessa captura do desejo? Ou ainda: o que se faz com desejos que não se encaixam nos moldes da norma? Desde o século 19, eles passaram a ser classificados, codificados e tratados. É neste momento que emerge a noção de perversão – categoria que passa a designar as práticas desvinculadas da norma que, no caso das práticas sexuais, correspondem àquelas desvinculadas de uma lógica reprodutiva e heterossexual. A perversão como desvio passa a ser medicalizada, se torna objeto de vigilância, controle e cura.

Outro alvo que surge com a emergência da sexualidade como um campo discursivo de saber-poder – e, portanto, regulatório, passível de intervenção – é a figura da mulher histérica: seu corpo passa a ser analisado, diagnosticado, interpretado. A histeria transforma o feminino em enigma clínico, em objeto do saber médico e, posteriormente, psi. A sexualidade da mulher é patologizada, marcada como instável, emocionalmente perigosa, passível de correção.

É interessante notar como essa percepção transbordou para a escola, afinal, um elemento que representa a invasão do saber médico em relação à sexualidade é a própria educação sexual que se estrutura, majoritariamente, em torno da anatomia, da fisiologia e das patologias – além de manter o corpo das mulheres como objeto-alvo da maioria dos métodos contraceptivos dos quais dispomos. Além da contracepção, assunto que tem as mulheres como protagonistas de uma problematização medicalizada, a ênfase dada aos seus corpos nas aulas de educação sexual constitui a maior parte desse conteúdo capturado por um biologicismo excessivo.

Assim, as mulheres seguem sendo o alvo privilegiado de uma vigilância sexual, que também na escola é travestida de prevenção. Afinal, a maioria dos métodos contraceptivos é pensada para os corpos femininos, como se a responsabilidade pela reprodução fosse uma atribuição naturalizada da mulher – o que não deixa de ser um elemento que também explicaria o comportamento de certos homens que responsabilizam as mulheres em relação aos cuidados reprodutivos no interior de uma cultura machista. Em outras palavras: enquanto os meninos aprendem sobre espermatozoides como quem aprende sobre foguetes, as meninas aprendem de maneira solitária que devem proteger-se de si mesmas.

Michel Foucault escancara essas operações de poder no campo da sexualidade. A educação sexual é produto do que, para ele, consiste em uma scientia sexualis que organizou o campo da sexualidade e o sexo como objetos de um saber científico, normativo, disciplinador. É por meio desta educação sexual que temos falado de sexo para tão somente regular. A sexualidade é, assim, interrogada, mapeada, ensinada – não em nome de alguma liberdade, mas da normalização.

É nesse terreno que a educação sexual tem se construído voltada, apenas, à prevenção, à proteção, ao controle; que a sexualidade é ensinada como um campo de riscos, doenças, gravidez precoce, desvios. Raramente como linguagem do corpo, dos afetos, da alegria. O desejo é silenciado e tratado como ameaça. A educação sexual como dispositivo de regulação preocupa-se mais em manter a ordem do que em escutar as singularidades.

Frente a isto que vigora, não fomos capazes de criar espaço para uma pedagogia da sexualidade, afinal, isso exigiria deslocar o discurso: deixar de falar sobre o corpo e começar a escutá-lo; deixar de ensinar o que se deve fazer e começar a perguntar o que se deseja; deixar de associar a sexualidade ao perigo, e compreendê-la como potência de vida. Uma pedagogia da sexualidade teria que lidar com experiências que transbordam, que não se explicam; aquelas mais difíceis de serem ensinadas, mas que, muitas vezes, são facilmente reconhecidas. Ela teria que acolher os desejos e os modos de existências múltiplos que não cabem nas normas exatamente por serem potências de vida. Teria que, enfim, admitir que os corpos pensam, falam, sabem, desejam.

Talvez esse seja o desafio: transformar a escola em um lugar onde o desejo seja menos interditado, reprimido, e mais cuidado; onde a sexualidade não seja um risco a ser evitado, mas uma linguagem cotidiana a ser aprendida, pois não podemos mais fingir haver um fora da sexualidade; como se nos espaços escolares, por exemplo, o desejo não existisse: como se ele não estivesse no pátio, na sala de aula, nos bilhetes trocados por baixo das mesas, no rubor de quem optou por não perguntar ou nos silêncios constrangidos. Ele está e insiste. Cabe a nós decidir se (e como) vamos escutá-lo.

José Luís Ferraro é Doutor em Educação e Doutor em Ciências Criminais. Professor Universitário. Bolsista Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

FONTE:

https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2025/05/educacao-sexual-o-que-a-escola-nao-quer-escutar/ 




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