Educação vigiada
Educação vigiada: governo entrega dados de 900 mil gaúchos à exploração de multinacionais
Em junho, sem consultar a comunidade escolar, ignorando soluções locais e a privacidade dos usuários(as), o governo Eduardo Leite (PSDB) impôs a adoção em massa da plataforma Google Classroom na rede estadual.
Cerca de 620 mil estudantes e educadores(as) já acessaram a suíte de aplicativos voltada ao ensino remoto. A intenção é chegar aos 900 mil integrantes da rede.
O contingente representa uma imensa base de dados, até então sob a guarda do Estado, entregue de bandeja a uma multinacional que sobrevive da exploração e análise de informações pessoais para obter lucro.
A absoluta falta de transparência dos termos da cooperação, dos critérios utilizados para a definição da ferramenta e do tratamento dispensado aos dados pessoais dos usuários(as) é estarrecedora.
Não existe almoço grátis
Antes mesmo da pandemia, cerca de 65% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação já estavam expostas à lógica de monetização das grandes empresas intituladas pelo acrônimo GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft).
A informação é do mapeamento realizado pelo projeto Educação Vigiada, conduzido por dois núcleos de pesquisa da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pela iniciativa Educação Aberta.
O trabalho lança luz sobre o avanço do chamado capitalismo de vigilância no terreno fértil da educação pública brasileira. A expressão, popularizada por Shoshana Zuboff, pesquisadora de Harvard, designa o modelo de negócios do qual a Google é pioneira.
São empresas que se utilizam de técnicas de inteligência artificial para obter previsões sobre o comportamento dos usuários(as) na Internet – suas buscas e preferências, por exemplo -, traçar perfis de consumo e, com isso, maximizar os ganhos ofertando produtos e serviços.
Como afirma o ativista norte-americano Eli Parisier; se é de graça, é porque o produto é você.
Crise e catálise
A emergência da pandemia, então, juntou a fome com a vontade de comer.
No dia 9 de junho, o apresentador Luciano Huck participou de uma live com o governador para anunciar outra parceria com empresas privadas.
Na ocasião, celebrou a tragédia humanitária: “a pandemia veio para acelerar o processo de digitalização da educação”, disse.
Não à toa a Google foi recebida com entusiasmo e deslumbre no Rio Grande do Sul: crise e morte para alguns, oportunidade e lucro para outros.
O secretário da Educação, Faisal Karam, chegou a dizer que a empresa vê o estado como um “grande case mundial de utilização da plataforma”. Também deixou escapar: ela veio para ficar.
De fato, o governo gaúcho nunca escondeu que a adoção do serviço era uma questão de tempo.
Desde o primeiro dia de Eduardo Leite à frente do Piratini, a Fundação Lemann esteve umbilicalmente ligada ao planejamento estratégico da gestão.
Daniel Cara, cientista político e coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, lembra: “Com quem a Google fez uma parceria bilionária antes da pandemia? Lemann.”
Na foto, o governador Eduardo Leite assina convênio entre o Estado e a Fundação Lemann para ações na educação. Crédito: Gustavo Mansur / Palácio Piratini
A Lemann é um dos principais atores por trás de movimentos que mascaram intenções privatistas com ideais de filantropia e empreendedorismo social, como o Todos Pela Educação.
A organização incidiu de forma decisiva no texto final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – aprovada com atropelos no governo Temer -, que autorizou a realização de até 30% do currículo do Ensino Médio na modalidade a distância.
A intenção é clara: terceirizar parte da educação pública para empresas ávidas em vender seus pacotes e soluções.
“A educação básica representa um volume de R$ 232 bilhões. O empresariado brasileiro acredita que o Estado não é um espaço coletivo que deve servir ao bem comum, é um comitê de negócios a ser apropriado por ele”, resume Daniel Cara.
Risco e dependência
“Os dados são um dos ativos mais valiosos da atualidade”, explica Sergio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC e pesquisador de redes digitais e tecnologias da informação.
“Quando damos informações de nossas crianças e adolescentes para uma empresa que vive da extração e venda de perfis de dados pessoais coletados, estamos destruindo o direito dessas pessoas protegerem sua privacidade”, afirma.
Em artigo recente, Amadeu escreve sobre o que alguns teóricos chamam de colonialismo digital.
“Grandes corporações de tecnologia atuam como novos colonizadores. (…) Essas companhias não vêm aqui levar pau-brasil ou metais precisos, levam dados pessoais que serão processados e vendidos”, argumenta.
Uma vez fidelizados os usuários às interfaces “gratuitas”, é muito difícil reverter a dependência.
Manipulação e opacidade
Fabricio Solagna, doutor em Sociologia pela UFRGS e pesquisador de Governança na Internet, alerta para a falta de escrutínio público dos termos de uso antes da adoção da tecnologia.
“Refletimos muito pouco sobre o uso que a Google fará das informações. O governo compra um pacote de olhos fechados e não sabemos que tipo de manipulação será feita com os dados dos estudantes e professores”, comenta.
O pesquisador, que também é secretário-executivo da Coalizão Direitos na Rede, rememora episódios recentes que colocaram o tema no centro do debate global, como o vazamento de dados do Facebook utilizado para influenciar a eleição de Donald Trump, em 2016.
“No Google ClassRoom a coleta de dados é mais restrita quando se trata de crianças. Agora, vivemos em um país que adiou a implementação da Lei Geral de Proteção de Dados. Caso a empresa cometa alguma violação, não há respaldo legal para responsabilizá-la, tampouco mecanismos de fiscalização”, observa.
Mesmo sem a vigência da Lei Federal – que já deveria estar em vigor mas teve seus efeitos postergados para 2021 -, o Estado poderia ter desenhado uma garantia local para proteger os dados.
No dia 15 de junho, por exemplo, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto que proíbe a comercialização de dados de usuários(as) obtidos por plataformas de ensino a distância.
Abrindo mão da soberania
Fabricio também considera sintomática a pressa do governo Leite em adotar a solução, lembrando que a UFRGS possui sistemas próprios de EAD e uma parceria poderia ser firmada por meio da Procergs, a companhia de processamento de dados do Estado.
O que ocorreu foi o contrário: em vez de valorizar a inteligência e desenvolvedores(as) locais, o governo Leite patrocinou a transferência de recursos de um Estado que se diz em grave crise fiscal para uma das empresas mais ricas do mundo.
Conforme veiculado no site da Procergs, a estatal migrou mais de 300 mil ambientes virtuais para a plataforma da multinacional, espelhando salas de aulas, espaços de “recreio” e outros. Os ambientes foram importados do ISE, o sistema de gestão escolar desenvolvido e alimentado pela própria companhia e por milhares de educadores(as) ao longo de anos.
A alternativa, aponta Fabricio, seria promover um amplo debate público com a comunidade, envolvendo alunos(as), educadores(as) e o parque tecnológico local para construir uma solução conjunta e adequada às reais necessidades pedagógicas da rede estadual.
“Não seria inviável com empenho, projeto e dedicação”, argumenta. “A justificativa de que não tem tempo e dinheiro é vazia. O que temos, no fim, é uma multinacional de bilhões de dólares se apropriando do trabalho realizado por educadores e extraindo lucro de dados pessoais. E um Estado cada vez mais dependente”, finaliza.
As ilustrações que acompanham esta matéria são da Eletronic Frontier Foundation
Texto: Luiz Damasceno