EFundamental influencia a compreensão
Ensino fundamental tem maior influência na compreensão pública da ciência
Etapas posteriores da escolarização têm pouco efeito sobre crenças e opiniões sobre ciência e saúde, segundo pesquisa do Datafolha.
CARLOS ORSI,
especial para Direto da Ciência.*
Sexta-feira, 17 de maio de 2019, 6h59.
A maioria das crenças e opiniões sobre ciência e saúde são adquiridas na fase do ensino fundamental, e as etapas posteriores de escolarização têm muito pouco efeito sobre elas, indicam os resultados de pesquisa sobre compreensão pública da ciência conduzida em março pelo Datafolha, a pedido do Instituto Questão de Ciência (IQC). Foram encontradas, no entanto, duas importantes exceções a esse padrão: a realidade da mudança climática e da evolução das espécies ganha aceitação com mais anos de estudo.
O levantamento, em que foram ouvidos mais de 2 mil brasileiros maiores de 16 anos, em 130 municípios de todas as regiões do país, numa amostra representativa da população brasileira, avaliou o grau de concordância dos entrevistados com uma série de afirmações que ou refletem consensos da comunidade científica, ou crenças pseudocientíficas e conspiratórias. Quando analisados pelo filtro do nível de instrução, os resultados mostraram, na maior parte dos casos, muita pouca variação.
Pequenas diferenças
Por exemplo, 98% dos brasileiros que cursaram apenas o ensino fundamental concordam que vacinas são importantes, mesma proporção dos que têm curso superior. O fenômeno se repete quando a questão envolve crença em medicina alternativa: 82% veem essas práticas, sem comprovação científica, como eficazes, em ambas as faixas.
Quando a pergunta é se a Terra gira em torno do Sol, existe alguma diferença (94% dos com curso superior concordam, ante 91% dos com ensino fundamental), mas ela se encontra dentro da margem de erro, de dois pontos porcentuais para mais ou para menos.
A diferença também cai dentro da margem de erro quando a questão envolve a segurança do consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs) para a saúde humana, com 73% dos respondentes com curso superior dizendo que OGMs são perigosos, ante 70% dos que contam apenas com o fundamental, ambas maiorias contrárias ao consenso da comunidade de especialistas. Relatório de 2016 da Academia de Ciências dos Estados Unidos lista mais de 1.500 estudos apontando a segurança dos OGMs para consumo humano.
Clima, espírito e chimpanzés
A diferença mais marcante entre níveis educacionais, de 20 pontos, aparece na questão sobre mudança climática antropogênica – se é real, e se representa uma preocupação importante. A resposta de 97% dos entrevistados com nível superior foi positiva, ante 77% dos que completaram apenas o fundamental.
Quando a pergunta é sobre se o entrevistado concorda que seres humanos e chimpanzés evoluíram de um ancestral comum, 60% dos que têm ensino superior dão resposta afirmativa, ante 50% dos que completaram apenas o fundamental.
Curiosamente, há um conjunto de quatro questões em que a opinião pseudocientífica – isto é, aquela que contradiz a maior parte dos estudos científicos bem conduzidos sobre o assunto – tem vantagem na faixa de maior escolaridade. Uma dessas perguntas já encontramos, a da relação entre OGMs e saúde (empate técnico, mas com pequena maioria no grupo de ensino superior).
As outras três questões envolvem dois empates técnicos. Uma trata da crença em teorias da conspiração em que o governo oculta informações sobre extraterrestres – 42% dos respondentes com ensino superior acreditam nisso, assim como 38% dos com fundamental. Outra, da realidade dos “alienígenas do passado”, ou “deuses astronautas” – 35% e 31% acreditam nisso, nas faixas superior e fundamental. Há, por fim, uma “vitória clara” do ensino superior na seara pseudocientífica: 76% aceitam a existência de “energias espirituais” com poder de cura, ante apenas 60% do grupo com apenas educação fundamental.
Perfis
O resultado mostra um perfil nacional complexo e multifacetado. A análise do Datafolha permitiu dividir a amostra de entrevistados em quatro grupos de afinidade. O mais próximo dos vários consensos científicos, representando 29% da amostra, é dominado (75%) por integrantes com ensino médio (49%) ou superior (26%).
O maior grupo, compreendendo 33% da amostra, mistura um complexo de crenças pseudocientíficas à preocupação com o meio ambiente: ao mesmo tempo em que aceita o consenso em torno da realidade e da gravidade da mudança climática, rejeita os transgênicos, abraça a medicina alternativa e as forças espirituais, e rejeita (com 62% de discordância) a tese da ancestralidade comum entre ser humano e chimpanzé. Aqui, a maior parte da amostra (78%) tem ensino fundamental (26%) ou médio (52%).
O terceiro conjunto, com 25%, se assemelha bastante ao anterior, mas abraça ainda as teses sobre alienígenas (100% concordam que o governo esconde o que sabe sobre os ETs, 63% que houve visitas alienígenas no passado) e é menos radical em sua rejeição da evolução (a opinião se divide em 50% a favor, 50% contra). Neste perfil, a maioria (79%) tem ensino fundamental (31%) ou médio (48%).
O grupo final destaca-se dos demais pela forte rejeição (74%) à tese da mudança climática antropogênica, e compõe 13% da amostra. Este grupo é formado por 91% de entrevistados com escolaridade máxima no fundamental (51%) ou médio (40%), o que reforça a ligação entre escolaridade mais avançada e a aceitação da realidade da mudança climática.
Uma hipótese sugerida por esses dados é de que os anos a mais de escolaridade aumentam a abertura para ideias que, de algum modo, contrariam o senso comum, tanto científicas – como a de que a ação humana é capaz de afetar o clima, ou da ancestralidade comum dos seres vivos – quanto pseudocientíficas (a crença em energias místicas que curam).
Se isso for verdade, trata-se de mais um indicador de que a “ignorância epistêmica” – o desconhecimento dos processos que geram e justificam o conhecimento científico – continua a ser um ponto cego dos esforços de educação e comunicação da ciência. Tão importante quanto pôr em xeque o filtro da opinião comum e abrir a mente para novas ideias é preparar o do pensamento crítico-científico, que discrimina quais as ideias que valem a pena, afinal.
CARLOS ORSI é jornalista, diretor do Instituto Questão de Ciência e editor da Revista Questão de Ciência.
* Os artigos de colaboradores não exprimem necessariamente a opinião de Direto da Ciência, e são publicados com os objetivos de promover o debate sobre a ciência, a cultura, o meio ambiente e o ensino superior e de refletir a pluralidade de ideias sobre esses temas.
Na imagem acima, “A Criação de Adão”, quadro de Michelangelo Buonarroti (1475-1564).