Eletrochoque: terapia ou retrocesso

Eletrochoque: terapia ou retrocesso

Eletrochoque: terapia necessária ou retrocesso?

Documento que dá aval a tratamentos com choques elétricos gera receio de retrocesso, e especialistas divergem sobre eficácia da terapia

O trabalho de Nise da Silveira se tornou conhecido pelo grande público após o lançamento do filme Nise: O coração da loucura, em 2016. Na trama, Glória Pires interpreta a psiquiatra que idealizou, entre os anos 1940 e 1950, uma terapia alternativa para distúrbios mentais: em vez dos choques elétricos, usados com frequência, ela estimulou a arte entre os seus “clientes” – como gostava de chamar aqueles atendidos por ela.

Única mulher formada em uma turma de 150 psiquiatras, Nise se tornou pioneira de um movimento que ganhou corpo no fim dos anos 1970: a reforma psiquiátrica brasileira. O movimento redirecionou o foco do atendimento de saúde mental no país e é, até hoje, referência internacional. Integrada às diretrizes do Ministério da Saúde em 2001, a nova política propôs a substituição dos antigos manicômios por uma rede territorial de serviços que visa à reinserção do indivíduo na sociedade, em vez da internação.

O modelo brasileiro se tornou referência internacional. Em 2009, o Brasil foi convidado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para compor um grupo internacional que desenvolveria uma estratégia mundial de tratamento de pacientes com distúrbios mentais e abuso de drogas.

Nos últimos dias, um documento publicado no site do Ministério da Saúde despertou o receio de um retrocesso na política construída pelo país nas últimas décadas. Tamanha a polêmica, o texto foi retirado do ar. O ministro Luiz Henrique Mandetta veio depois afirmar que o documento está em discussão e poderá ter alguns tópicos alterados.

A “nota técnica” apresentava propostas de modificações nas diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental. Entre os pontos de maior controvérsia consta a proposta de financiamento, por parte do ministério, de aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT), voltados “para o tratamento de pacientes que apresentam determinados transtornos mentais graves e refratários a outras abordagens terapêuticas”.

Nas redes sociais, a informação circulou como se o governo estivesse reinserindo o tratamento com choques elétricos – rejeitados por Nise no meio do século passado – no atendimento de saúde mental no país. A DW Brasil ouviu dois especialistas em torno da discussão para entender o que está em jogo.

Após as mudanças implementadas pela reforma psiquiátrica, a ECT passou a ser oferecida somente em alguns hospitais estaduais e universitários, além da rede privada. De acordo com regras estabelecidas pelo Ministério da Saúde, o tratamento só deve ser utilizado em casos muito específicos, como situações de risco iminente de suicídio, catatonia e síndrome neuroléptica maligna.

O órgão também exige algumas condições para sua realização, que deve ocorrer em ambiente hospitalar. Entre as exigências estão a presença de um anestesista e o monitoramento do paciente durante o procedimento.

O Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub-UFRJ) é um dos 13 locais onde a ECT é utilizada na rede pública brasileira. Sua diretora, a médica Maria Tavares, defende a disponibilização do tratamento na rede pública, respeitadas as devidas exigências.

“É um método que salva vidas, pelo qual as pessoas pagam caro no sistema privado. Uma aplicação custa mais de mil reais. Nesse sentido, é uma injustiça não oferecê-lo para a população mais pobre”, diz.

“Infelizmente, a gente ainda não consegue selecionar um circuito específico para a descarga nos neurotransmissores. Se você tem um paciente com quadro de tentativas de suicídio, não dá tempo de o medicamento agir. Com três sessões de ECT, esses impulsos cessam”, argumenta.

Já na visão do psiquiatra Paulo Amarante, uma das principais referências do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica, não há evidências científicas suficientes sobre os efeitos colaterais do uso da ECT. Ele teme ainda um mau uso desse instrumento, uma vez que costumava ser utilizado como “castigo” a alguns pacientes no passado.

“O mecanismo de ação da ECT não é conhecido. Há dezenas de teorias, mas nenhuma é consensual. Só o que se sabe é que o tratamento provoca convulsão, uma grave agressão ao sistema nervoso”, afirma Amarante, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps) da Fiocruz e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

“A sensação de letargia ou torpor gerada pela convulsão provoca uma melhora do quadro de agitação, mas a psicose não se reduz a isso. Portanto, em hipótese alguma, é um tratamento para ela”, defende.

Apesar das posições distintas no debate sobre o uso da ECT, ambos os especialistas criticam o teor da nota do Ministério da Saúde.

A diretora do Ipub acredita que a proposta foi inserida como uma provocação política aos defensores da reforma psiquiátrica, pois sua aplicação seria quase impossível, dada a inexistência da estrutura necessária. Ela defende que o documento seja analisado com calma, para evitar reações precipitadas, mas se diz contrária à abordagem da saúde mental como um tema estritamente médico, que prevalece no texto.

“Hoje, temos estudos mostrando que o tempo de internação no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) é muito menor do que no hospital psiquiátrico e também em comparação com os hospitais gerais. Na favela da Rocinha, o número de internações praticamente zerou com a instalação de uma Clínica da Família e um Caps. Com essa estrutura, o atendimento é capilarizado e se aproxima das pessoas”, explica Tavares.

“A questão é para onde vai o dinheiro, no contexto do orçamento restrito do ministério. No Caps ad III, destinado a pacientes com transtornos decorrentes de dependência em álcool e drogas, as principais necessidades trazidas são banho, comida e repouso. Para uma mulher que ficou meses num contexto de crack, isso é tudo o que ela precisa”, diz.

Amarante lembra que casos extremos, como os dos pacientes tratados com ECT, não podem direcionar uma política pública. Ele considera injustificável priorizar o financiamento de um tratamento periférico no atendimento de saúde mental, enquanto faltam itens básicos na rede, como medicamentos e materiais clínicos. Por isso, questiona os interesses que estariam guiando esse debate no ministério.

“Se estivéssemos falando da compra de aparelhos de raio-x para colocar em centros de saúde, aparelho que pode detectar a tuberculose e outras doenças pulmonares, de operação fácil, seria compreensível”, compara.

“Investir na compra de um equipamento caríssimo, usado em situações tão específicas, dá a entender que existe uma pressão da indústria que produz essas máquinas”, suspeita o psiquiatra.

DW Brasil tentou ouvir o Ministério da Saúde, mas a assessoria de imprensa alegou não haver disponibilidade na agenda da autoridade responsável para falar sobre o tema. Em nota, a pasta informou que o documento não se trata de consolidar “como será [a Política Nacional de Saúde Mental], e sim uma discussão sobre como a política está”.

O ministério também comunicou que a ECT não consta na tabela do SUS, e a compra do equipamento passou a integrar a Relação Nacional de Equipamentos e Materiais Permanentes financiáveis pelo SUS em março de 2018. Por fim, o órgão ressalta que o uso do tratamento deve seguir as orientações do Conselho Nacional de Medicina.

 

https://www.cartacapital.com.br/saude/eletrochoque-terapia-necessaria-ou-retrocesso/ 




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