Empobrecimento do servidor
Em defesa do IPE Saúde e pelo fim do empobrecimento do servidor
A reestruturação do IPE Saúde parte de uma uma visão que defende o etarismo, que carece de empatia e da mínima noção de coletividade e humanismo.
por Fabiano Zalazar - 24/5/2023
Primeiro, eles te ignoram. Depois, riem de você.
Depois, lutam contra você. Então, você vence.
(Mahatma Gandhi)
Se a injustiça tivesse sabor, qual seria? Os servidores públicos do RS certamente sentiriam mais o gosto amargo e indigesto, por conta da política aplicada pelos sucessivos governos nos últimos anos. A redução avassaladora de direitos, como a ausência da revisão anual da inflação, talvez seja a pior das injustiças. É o combo de precarização dos serviços públicos, somado à redução dos direitos da classe trabalhadora, gerando prejuízos incalculáveis a toda coletividade.
Mas antes de falar sobre o objeto do artigo – o IPE Saúde e nossos salários cada vez mais corroídos -, um aviso: se você ingressou há pouco no serviço público, ralando muito para passar em um concurso com milhares de candidatos, você será o aposentado ou a aposentada de amanhã.
Os que deram seu suor pelos serviços públicos hoje são as principais vítimas desse admirável mundo novo do trabalho “uberizado”, descartados porque não servem mais na ótica dos donos do poder, afinal “é preciso olhar o amanhã”, dizem eles, ou precisamos “buscar os melhores”. Esse é o retrato da sociedade competitiva e individualista em que estamos inseridos, que condena nossas aposentadas e aposentados, tanto na iniciativa privada como no serviço público, a uma extinção gradual, que já não é mais lenta.
A proposta governista de reestruturação do IPE Saúde insere-se nessa realidade. O Projeto de Lei Complementar nº 259/2023, protocolado em regime de urgência pelo Governo do Estado no último dia 18 de maio, na sua essência pouco alterou a proposta apresentada pelo governador a sua base aliada no mês anterior.
Dentre as mudanças, foi acrescentada uma “trava global” de 12% sobre o salário do servidor titular, considerando a contribuição do titular e do dependente; os valores das tabelas poderão ser corrigidos anualmente por ato do Executivo, de acordo com a variação de custos do plano; a coparticipação em exames e consultas sobe de 40% para 50% na proposta, com a instituição de uma tabela de referência de mensalidade (TRM) por faixa etária, medidas que penalizam os servidores e dependentes com idade mais avançada e que ganham menos, rompendo com os princípios da solidariedade e da paridade, norteadores do IPE Saúde.
Novamente, o governo deseja repassar o ônus da crise aos servidores ativos e aposentados com o aumento das alíquotas da coparticipação de 3,1% para 3,6%, cobrando dependentes de 0 a 23 anos ( que hoje nada pagam), a começar pelo valor de R$ 49,28.
A título exemplificativo, um servidor que ganha R$ 1.570,36 com um dependente acima de 59 anos e que hoje paga R$ 48,68 (3,1%) pagaria R$ 188,22 (12%). Já um servidor que ganha R$ 3.000,00 com um dependente de 59 anos e hoje paga R$ 93,00 (3,1%) pagaria R$ 360,00 (12%). Entretanto, um servidor com até 38 anos que ganha R$ 35.462,22 e não possui dependentes, e hoje paga R$ 1.099,32 para o IPE Saúde, passaria a pagar R$ 380,25 (1.07%). Esse último exemplo se refere ao servidor Eduardo Leite.
Jovens como o governador, seu vice Gabriel Souza e companhia, pretendem transformar o Sistema de Saúde solidário e paritário dos servidores públicos do RS em um plano de saúde nos moldes privados, prejudicando aqueles que percebem os menores salários e possuem idade mais avançada, em detrimento dos mais jovens que auferem os maiores vencimentos no Estado, o que levará certamente, em alguns anos, a privatização do IPE Saúde. É a mesma lógica de precarizar para depois vender o patrimônio público, a exemplo do que o governador fez com a CEEE e na privatização da Corsan, em curso, mesmo havendo a promessa taxativa em contrário no período eleitoral.
Em curto espaço de tempo, teremos um verdadeiro colapso no Sistema Único de Saúde (SUS), de fundamental importância para toda a cidadania, pois o IPE Saúde atende hoje a mais de um milhão de segurados. Diante dessa proposta, uma grande massa de trabalhadores e trabalhadoras, cada vez mais empobrecidos, migrará para o SUS.
Hoje, a política salarial do governo do Estado é o aprofundamento do congelamento salarial e a retirada de direitos do funcionalismo. É importante referir que os servidores da ponta de baixo das estruturas públicas (da educação, da saúde, da assistência social e do sistema de justiça, entre outros), rumam para o nono ano consecutivo praticamente sem reajuste no seu salário básico, em um período (desde 2014) que a inflação acumulada é de 65% pelo IPCA.
Em quase uma década, recebemos apenas 6% de revisão geral da inflação em 2022. Enquanto isso, em 2023 as cúpulas do serviço público já tiveram leis sancionadas por Eduardo Leite de reajustes nos seus subsídios: 47% para o vice-governador e secretários; 35% para o próprio governador; 18% para juízes, promotores, defensores públicos e conselheiros do TCE e 16% para os deputados estaduais.
Paralelo a isso, o governo do Estado anunciou que o conjunto do funcionalismo não terá a revisão geral da inflação e cerca de 30% dos professores do estado não tiveram um mísero centavo de aumento, pois os 9,45% concedidos, índice abaixo do piso nacional, não foi repassado à totalidade da categoria.
Crise fabricada e Estado devedor do IPE Saúde
Feitas essas considerações, podemos afirmar que a crise do IPE Saúde é um projeto que vem sendo consolidado ao longo dos anos, conforme alertam os sindicalistas e as bancadas de oposição na Assembleia Legislativa. Gize-se que, há aproximadamente dez anos, antes da divisão da autarquia em IPE Previdência e IPE Saúde, o Sistema de Saúde dos servidores era superavitário. Hoje, há um déficit de cerca de R$ 746 milhões, fruto das políticas praticadas pelos dois últimos governos no RS, com o MDB e o PSDB à frente da coalizão.
No entanto, passa quase à margem do debate público e da imprensa o fato que o próprio Estado deve R$ 356,7 milhões ao IPE Saúde a título de precatórios e RPVs, bem como resta pendente o pagamento dos valores correspondentes a 445 imóveis devidos pelo Estado ao Instituto, segundo apontou relatório da Cage. Ademais, existem as contribuições paritárias atrasadas dos pensionistas entre os anos de 2015 a 2018, o que compreende R$ 145 milhões devidos, segundo dados do próprio governo. Somem-se a esse montante os débitos da Assembleia Legislativa (R$ 11,3 milhões), do Poder Judiciário (R$ 73,6 milhões), do Tribunal de Contas (R$ 6,098 milhões), além das dívidas de terceiros (R$ 708 milhões), o que totalizaria um crédito de cerca de R$ 1 bilhão ao sistema!
Ou seja, há alternativas concretas antes da reiterada e surrada penalização do servidor com o aumento de alíquotas, a cobrança dos dependentes e a total deformação do Sistema Único de Saúde dos Servidores, que, em última análise, visa à privatização do Instituto muito em breve.
Sobre todas essas questões, o Governo Leite se negou a fazer um debate público que poderia aprofundar essa temática e buscar soluções concretas que não onerariam e sangrariam ainda mais os servidores e as servidoras, preferindo encaminhar um projeto de lei em regime de urgência que se encerrará no próximo dia 16 de junho, trancando a pauta para a votação de outros proposições legislativas.
Convém lembrar que seis meses atrás, dois jovens candidatos ao Piratini disseram publicamente que não aumentariam as alíquotas do IPE Saúde e que dialogariam permanentemente com as entidades dos servidores e das servidoras sobre suas pautas, salários em dia, planos de carreira, data-base etc. Seus nomes: Eduardo Leite e Gabriel Souza. Esse tipo de discurso, sem lastro, não pode mais ser banalizado, sobretudo por aqueles que possuem claras aspirações políticas e se vendem como gestores públicos de vanguarda. Na verdade, a sua visão política representa o que há de mais velho, injusto e desigual na administração pública.
É preciso olhar para o ser humano, Eduardo e Gabriel. E, nesse aspecto, vocês dois condenam milhares de pessoas ao sofrimento com o projeto que defendem para o Rio Grande do Sul. Os relatos dos dramas pelos quais passam os servidores e as servidoras são assustadores, com casos, inclusive, de pessoas que vêm tirando a própria vida. E isso se repete na segurança, na educação, na saúde e em outras áreas.
A reestruturação do IPE Saúde parte de uma uma visão que defende o etarismo, que carece de empatia e da mínima noção de coletividade e humanismo. Todos somos sabedores dos problemas pelos quais passa o Instituto, da falta de atendimento médico e da defasagem dos valores para os profissionais da saúde, não estamos alheios a esses problemas. Porém é preciso ter a exata noção de como tudo se originou e de quem é a responsabilidade, ao invés de apresentar soluções simplistas que aumentem as desigualdades.
Por isso, urge que os servidores e as servidoras dialoguem com seus colegas no local de trabalho sobre estas questões, participando ativamente das atividades que as entidades estaduais da Frente dos Servidores Públicos (FSP) tem chamado e do debate que estamos travando. É hora de mobilização total dos servidores públicos para barrarmos a proposta governista e lutarmos juntos por respeito, valorização e por nossa dignidade. Servidor valorizado precisa ter salário em dia reajustado pela inflação. Basta de humilhação e arrocho salarial, governador. O IPE Saúde é público, de todos e de todas, e seguiremos defendendo seus princípios fundantes de solidariedade e paridade!
(*) Secretário-Geral do Sindjus/RS