Entre milícias e polícias
Entre milícias e polícias
Os 70 indígenas das etnias Guarani Nhandeva, Tupi Guarani, Guarani Mbya, Kaingang e Terena que chegaram a subir na cúpula do Congresso na tentativa de barrar o PL 490 nessa 3ª feira, conseguiram impedir, pelo menos até agora, sua votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.
Soma de vários projetos anti-indígenas, apensados a partir de 2007, o PL muda as regras para demarcar terras indígenas, inclusive revendo áreas já demarcadas, e retira a autonomia dos povos sobre os territórios, que passam a ser franqueados à mineração, ao agronegócio, a estradas e outras obras de infraestrutura - em flagrante desrespeito à Convenção 169 e à Constituição Brasileira.
Presidida pela deputada Bia Kicis, afinadíssima com o presidente Bolsonaro, a CCJ não perdeu, porém, a oportunidade de aprovar outro PL do retrocesso: a autorização para os pais não matricularem seus filhos na escola, o chamado homeschooling. Isso, quatro anos depois de finalmente o Brasil ter alcançado a universalização do ensino na faixa dos 6 a 14 anos (embora, em alguns grupos, especialmente entre os indígenas, a taxa seja mais baixa, em torno de 73%).
Assim como no caso das terras indígenas, por trás desse PL, há interesses que vão além do segregacionismo de pais - e eleitores - terrivelmente evangélicos. Para ficar em um exemplo: com o homeschooling ganha o ensino apostilado e remoto, que está nas mãos de grandes grupos educacionais, geridos por banqueiros e fundos de investimentos - incluindo aqueles associados ao ministro Paulo Guedes. Sem falar na possibilidade de vouchers para pagar tutores, uma ideia apreciada pelo ministro da Economia desde o tempo em que era o “Posto Ipiranga”.
A liberação das terras indígenas para atividades comerciais é projeto ainda mais rendoso, acalentado pelo governo Bolsonaro desde os primórdios. Enquanto Kretã Kaingang e Dinamam Tuxá, coordenadores executivos da Apib, e Irineia Sebastião Terena, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste conseguiam enfim se reunir com o presidente da Câmara, Arthur Lira, e lhe entregar um documento com suas posições, um grito de socorro denunciava a gravidade da situação de povos como os Munduruku e os Yanomami, atacados por garimpeiros de ouro, protegidos pelo governo Bolsonaro, e agora, ao que tudo indica, associados a facções criminosas do Sudeste.
“Eles querem queimar a ponte pra ninguém sair, tem milícia no local e até agora ninguém fez nada”, tuitou Alessandra Munduruku, sobre a tentativa dos criminosos de impedir que as lideranças contrárias ao garimpo fossem a Brasília denunciar a violência a que estão sujeitos. “Os caciques exigem transporte nem que seja da FAB”, tuitou novamente a indígena, lembrando que esses aviões foram usados para transportar garimpeiros ilegais para uma reunião com Ricardo Salles, em Brasília, em agosto do ano passado.
Somos cada vez mais um país que cultua o crime organizado, o racismo, a misoginia, a violência brutal de milícias e polícias contra os mais vulneráveis. E isso é responsabilidade de todos nós. Como disse o jurista negro Thiago Amparo em sua coluna sobre o assassinato chocante de uma jovem negra no Rio de Janeiro durante uma operação policial: “toda morte é política, porque fomos nós, a pólis, que produzimos o governo da morte. Que o incendiemos. Parem a grande máquina do mundo, pois Kathlen não sorri mais”.
Marina Amaral, diretora executiva da Agência Pública
Agência Pública