Equilíbrio ambiental necessário
28 de maio, 2024
Recentemente, após trocar ideias e impressões sobre a catástrofe que se abateu no estado do Rio Grande do Sul, e questionando duramente a Federação de Agricultores do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), recebi de um colega que prezo muito, a crítica de que não era hora de jogar pedras, uma vez que todos somos culpados pelo que aconteceu. Discordei desse amigo, pois não aceito o papel de culpado pelo desastre que lá aconteceu, e vai continuar acontecendo.
Desde 1987 que um grupo de cientistas de diferentes unidades da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), da Fepagro (Fundação de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Sul), da Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), do Iapar (Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná, do IPA (Instituto Agronômico de Pernambuco), da UFV (Universidade Federal de Viçosa), da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz) e da UnB (Universidade de Brasília) estabeleceram critérios para definir os riscos climáticos para mais de 40 culturas no Brasil e para todos os estados e municípios brasileiros.
Este zoneamento existe até hoje e é atualizado ano a ano para evitar perdas acentuadas na agricultura, desde que seguido corretamente. A participação de pesquisadores e professores universitários do Rio Grande do Sul foi exemplar. Em parceria com a Embrapa Trigo e a Embrapa Clima Temperado, a Fepagro apoiou e trabalhou com afinco em todo processo de identificação dos riscos climáticos no Rio Grande do Sul, até ser extinta em 2017.
O fato é que muito da responsabilidade da situação apocalíptica que estamos assistindo no Rio Grande do Sul se deve ao uso indevido do solo e à ganância e desprezo pelo equilíbrio do uso dos recursos naturais que favorece toda comunidade. Durante todos esses anos, instituições representativas dos agricultores do Rio Grande do Sul, capitaneada por deputados e senadores negacionistas do Estado gaúcho, tentaram mudar o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC). Não conseguiram, apesar da enorme pressão política.
O objetivo era flexibilizar o risco climático (como se isso fosse possível), permitindo aumentar as janelas de plantio, que todos nós sabíamos, iria provocar maiores perdas aos agricultores. No meu entender, que coordenei este estudo por mais de 20 anos, ao flexibilizar, as perdas aumentariam, e seria necessário negociar as dívidas dos agricultores com relação às perdas ocorridas.
É óbvio que quem estava a frente disso eram vários representantes dos gaúchos, com o discurso que o problema era o El Niño ou o La Niña. A cada ano diminuía a capacidade dos agricultores em pagar suas dívidas. Para eles, uma solução simples era alterar o Código Florestal Brasileiro ou boicotá-lo, e reduzir o tamanho das reservas legais e das áreas de preservação permanente, para aumentar área produtiva e ter mais lucro.
Tudo isto sem nenhuma consideração com o equilíbrio ambiental necessário, principalmente em termos de infiltração de água no solo, proteção de nascentes, proteção de matas ciliares ou de matas de galerias, que com toda certeza, minimizaria o impacto das cheias que poderiam acontecer. Muitas denúncias continuaram a acontecer e ações do Ministério Público foram feitas no Estado para minimizar os efeitos dos desmatamentos.
“O Rio Grande do Sul possui, segundo estimativas do Ministério Público estadual (MP-RS) junto ao MapBiomas, menos de 7% de área de Mata Atlântica preservada. Só no primeiro semestre de 2022, foram desmatados mais de mil hectares — equivalentes a cerca de 1.600 campos de futebol — e que aconteceu em tamanha velocidade que motivou o MP-RS a fazer uma operação para multar quem derruba as árvores.”
Com relação às áreas de proteção permanente (APP), em 403 municípios analisados, o déficit é de 41%, ou seja, é necessário recuperar 41% das áreas de APP que foram desmatadas, representando algo próximo de 526 mil hectares, somente na área de Mata Atlântica.
A título de exemplo, no município de Arroio-do-Meio, um dos mais atingidos pelas chuvas deste ano, a área de APP é de 1822 ha e o passivo é de 1081 hectares, ou seja o déficit de APP é de 59%.
O desastre era inevitável.
Esses números existem para 409 municípios do Rio Grande do Sul e fazem parte das informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR) entregue ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) em 2017. Esse trabalho foi coordenado pelo MMA e financiado por instituições do setor privado, como a SBR (Sociedade Rural Brasileira), Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Única (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia ), Ibá (Indústria Brasileira de Árvores), Instituto Aço Brasil, Agroicone, Fenaseg (Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de Previdência Complementar Aberta) e Abag (Associação Brasileira do Agronegócio). Na área de Mata Atlântica do Rio Grande do Sul pelo menos 52% das APPs hídricas estavam deterioradas.
Certa vez fui convidado para participar de uma feira onde seriam discutidas questões climáticas e causas das perdas de soja no município de Não-Me-Toque (RS), conhecido como capital mundial da agricultura de precisão. Nesta ocasião, pude apresentar o que sempre apresentei. A temperatura estava aumentando, a deficiência hídrica também e as chuvas intensas iriam subir de patamar.
Mas o mais interessante não foi meu relato, e sim o testemunho de um especialista em soja, que após visitar mais de 80 propriedades entre o Paraná e o Rio Grande do Sul, constatou que o plantio direto adotado não estava mais conseguindo reter as chuvas intensas, que estavam se intensificando, provocando perdas generalizadas.
O recado era simples: voltemos a adotar as práticas de manejo e conservação de solo e água, fazer terraceamentos e procurar reter a erosão. Se isso não fosse feito, as perdas aumentariam.
Ou seja, era preciso cada vez mais proteger o solo. E não expô-lo, reduzindo Reservas Legais e APPs, preconizadas e defendidas por alguns iluminados deputados e senadores do Estado. Estávamos nos idos de 2014, em plena época da implantação do Código Florestal e do CAR, considerado por um negacionista, “o maior trabalho escravo já imposto para os agricultores brasileiros”. Várias foram as tentativas de alerta. E os advogados discutindo segurança jurídica para os agricultores e não analisando a segurança da população. O risco de enchentes sob situação de chuvas intensas era e continua sendo muito grande.
Em 2014, o MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) publicou um livro sobre os impactos das mudanças climáticas no Brasil. Ficou claro que as chuvas na região Sul iriam aumentar em até 15%. Bom para a produção de celulose, ruim para a população, se as áreas não fossem protegidas.
E NADA FOI FEITO.
Nem o atual governador do Rio Grande do Sul, nem os últimos, nada fizeram. Políticas equivocadas, cegueira completa, oportunismos políticos. Deu no que deu. Quem sofre é a população desassistida. Só que agora foi mais drástico, atingiu a todos. De PSDB, passando por PT, PDT e PL, todos são responsáveis. Eu ajudei como pude os colegas do Sul a apresentarem fatos para reverter a possível catástrofe. Não conseguimos.
Os negacionistas, não venham com balelas. Crime é crime. Sejam responsáveis e defendam a vida e não o bolso. Ações de adaptação às mudanças do clima já. Sabemos o deve ser feito. Só não entendemos por que não somos ouvidos. Eu de minha parte, nunca esqueço de lembrar. E vou continuar insistindo. Vidas valem mais do que dinheiro. É momento de enterrar e rezar pelos mortos e consolar o vivos, ajudando-os a superar essa agonia construída ao longo de anos.
*Por Eduardo Assad
EDUARDO ASSAD
Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa e professor do FGVAgro, membro do comitê científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Atualmente, é coordenador da sub-rede Clima e Agricultura da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima), do Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação.*
FONTE:
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