Erros de português

Erros de português

 

De Marcos Bagno

"Faz tempo que estudo o uso que se faz do "erro de português" para desqualificar pessoas, um uso que é feito alegremente tanto pela direita quanto pela esquerda.

Durante décadas a fio, o presidente Lula foi acusado pela direita de "falar errado", e até fiz uma análise disso no meu livro "A norma oculta", de 2003 (sim, faz vinte anos!).

Mas muita gente da esquerda não se dá conta de que acusar alguém de cometer "erro de português" é repetir um discurso enraizado em puro dogma e que desconhece a natureza das relações entre língua e sociedade, língua e política, língua e ideologia, língua e tudo o mais, porque tudo o mais na nossa vida é língua.

Desde ontem, para desqualificar uma criatura que já nasceu desqualificada para estar no planeta, um dos filhos do maior criminoso que o Brasil já conheceu, filho que controlou por anos o chamado "gabinete do ódio", a imprensa de esquerda diz que ele cometeu "crasso erro de português".

Aí tu vai ver e é o quê?

Um erro de ortografia, simplesmente. E, como digo há século e meio, ortografia não é língua, Cacilda!

Aliás, já já vai estar no blogue da Parábola Editorial um texto meu exatamente com esse título: "Ortografia não é língua".

Então, camaradas e companheiræ·œ·s, vamos atacar as figuras desprezíveis, as personagens abjetas, os facínoras confessos por serem desprezíveis e abjetos, facínoras confessos, mas não por cometerem "erro de português"?

Agradeço compungido."

 

A CALHORDICE DO "ELE NÃO ESCREVE COMO MANDA OS OUTROS ESCREVEREM"

Não há (talvez) argumento mais calhorda contra um linguista do que dizer que ele não escreve como supostamente “defende” que se escreva (isto é, na visão calhorda, usando os “erros” que ele “defende”). É calhorda porque vem, sempre, da parte de gente que tem acesso suficiente à informação para formar opiniões mais bem fundamentadas, mas que, sempre, troca a boa fundamentação pela defesa de uma ideologia linguística que, como tudo na vida, é uma ideologia política que só deseja preservar o tipo de sociedade em que o uso da língua é mais um critério para excluir as pessoas, tanto quanto a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, o nível de pobreza (porque, no Brasil, falar em “nível de renda” é falta de compaixão) etc. O mais divertido é que essa rafameia acusa meu trabalho de “ideológico”, como se fosse possível algum trabalho que o não seja (já ouviu falar em apossínclise? Eu já, e uso quando bem quiser!).

É calhorda porque finge desconhecer a diferença entre o trabalho de descrição feito pelo cientista e suas opções pessoais no que diz respeito à escrita. No meu caso particular, sempre procurei mostrar (inutilmente, ao que parece, diante de tanta calhordice) que a postura mais democrática em língua é aquela que diz que as formas inovadoras já devidamente implantadas na linguagem dita culta podem ser empregadas TANTO QUANTO as formas previstas pela tradição normativa. A palavra mágica é TAMBÉM, mas, numa sociedade polarizada como a nossa, com o evângelo-fascismo se espalhando feito a doença que é, falar de TAMBÉM é quase uma heresia. Aliás, sempre foi uma heresia para as eternas viúvas de Vaugelas.

Nenhum linguista minimamente consciente de seu papel de agente glotopolítico quer um prescritivismo às avessas, porque sabe que o nome disso é fascismo. Eu não quero. As pessoas que defendem a liberação do uso da maconha não precisam, obrigatoriamente, ser pessoas que fumam maconha. As mulheres que lutam pela descriminalização do aborto não são, obrigatoriamente, mulheres que fariam um aborto se a ocasião se apresentasse a elas. Quem defende o casamento de pessoas do mesmo sexo não pretende, obrigatoriamente, se casar com uma pessoa do mesmo sexo. Quem luta pelos direitos das pessoas trans não precisa ser, obrigatoriamente, uma pessoa que deseja fazer a transição. São, porém, obrigatoriamente, pessoas que lutam por uma sociedade mais democrática. O linguista que descreve uma construção sintática nova e comprova que ela já está perfeitamente enraizada nos usos falados e escritos das pessoas ditas cultas não tem a mais mínima menor remota distante e longínqua obrigação de usar essa construção linguística na sua fala e na sua escrita. Um bom exemplo é o do grande filólogo brasileiro Manuel Said Ali (1861-1953) que, num texto famoso em que argumenta que a concordância do tipo “vendem-se casas” é ilógica, usa três vezes seguidas, no mesmo parágrafo, construções com “se” e o verbo no plural. Por que ele fez isso? Jamais saberemos, mas estava em seu pleno, total e absoluto direito.

Para piorar a calhordice, muita dessa gente que me acusa de não usar nos meus textos as formas “erradas” que eu “defendo” não percebe que, sim, eu uso muitas dessas formas, não só nos meus escritos acadêmicos como também na minha produção ficcional. Quem procurar um “cujo” no meu romance “A vida na Grécia” (2021) vai perder seu tempo. Eu uso “ele/ela” como objeto direto com a maior desenvoltura. Eu escrevo “obedeceu o regulamento” sem o menor remorso. Começo frase com pronome oblíquo como um sabiá cantando nas manhãs de setembro. Para mim, o fato “do homem ser mortal” me deixa livre para não escrever “de o”. Eu tasco um “nesse país se fala muitas línguas diferentes” sem pestanejar, porque não acredito em passiva sintética, explico por quê, mas não saio gritando louvores histéricos em ônibus ou em shoppings para tentar converter ninguém. Escrevo assim, mas não quero obrigar ninguém a escrever assim. Ademais e outrossim, tem coisas que eu não escrevo, por pura opção particular, pessoal e intransferível, mesmo perfeitissimamente ciente de que já faz parte da bendita norma culta (e não vou dar exemplos aqui, que eu não sou bobo). Na virada do milênio, fiz concurso para uma universidade pública e um dos membros da banca examinadora me perguntou como é que eu tinha sido aprovado no doutorado usando tantas formas não normativas na minha tese – sinal de que ele tinha lido a tese, ao contrário dos calhordas. Descrever fenômenos gramaticais não é o mesmo que se obrigar (ou às outras pessoas) a usar esses fenômenos na própria escrita.

Enfia isso na tua cabecinha calhorda, calhorda. E não vai nenhuma incoerência nisso. Incoerência é o contrário (e já topei com isso muitas vezes): dizer que tal forma é “errada” e, mais adiante no texto, usar essa forma todo serelepe e pimpão. Eu discuto e me aconselho muito com colegas linguistas, aceito as críticas e observações que fazem, sempre com bom conhecimento de causa, acato umas, outras não — como é próprio de quem faz ciência e assume coerência teórica. Aceito críticas e observações — mas calhordice, aceito não. Vá queimar pestana, calhorda, escreva uma gramática com pelo menos 1.000 páginas como a minha, leia tudo o que tive de ler para escrever ELA, colete os milhares de dados que coletei para provar meus argumentos, faça dela uma referência internacional para quem estuda português, e um dia talvez quem sabe (mas eu sei que é nunca) você possa (mas sei que não vai poder) começar a pensar em me dar conselhos e passar pito.

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