Escola pública irradia o Comum
Quando a escola pública irradia o Comum
No centro de SP, a EMEI Gabriel Prestes tornou-se espaço onde crianças aproximam-se da natureza, mas também descobrem as ruas. Aberta à comunidade, travou lutas contra a especulação imobiliária e pela solidariedade na pandemia
Por Juliana Moreti e Thiago Dias
Um fato aparentemente estranho ocorreu há alguns dias em uma Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI) localizada no centro de São Paulo. Embora tenha acontecido virtualmente, a última reunião do conselho da EMEI Gabriel Prestes em 2020 terminou em lágrimas emocionadas, promessas de amor eterno e votos de união intensa para 2021. Não deve ser comum que reuniões de conselho de escola terminem de modo tão afetuoso, mas isto é recorrente nesta escola, em que nosso filhote, o Leo, realizou seus dois anos de Educação Infantil. Estas lágrimas e soluços explicitam, a nosso juízo, o caráter transformador da EMEI Gabriel Prestes, que faz do processo educativo uma ocasião para experiências fortes para todos os membros de sua comunidade.
A EMEI Gabriel Prestes fica na Rua da Consolação, do ladinho do Mackenzie, em meio ao concreto e ao barulho característicos do centro de São Paulo, mas ela se beneficia muito da estrutura dos Parques Infantis, projeto inovador elaborado cem anos atrás e que ainda hoje representa um enorme salto de qualidade na educação ali oferecida.
A concretização desta ideia antiga assegurou um espaço que permite às professoras e aos gestores a elaboração de um projeto pedagógico muito especial, em que as crianças do centro de São Paulo — que normalmente moram em espaços pequenos, seja nos apartamentos, seja em ocupações — realizam atividades no tanque de areia, no jardim das jaqueiras, no trenzinho, no parquinho, na horta. Graças a este espaço, as crianças desenvolvem as habilidades motoras que os apartamentos atrofiam, estabelecem uma relação de proximidade e cuidado com a natureza, passam horas longe do barulho da cidade.
Embora a equipe da escola valorize bastante este espaço interno, algumas professoras incluíram em seus projetos um número bastante grande de saídas pelo bairro. De mãos dadas e em organização exemplar, as crianças caminham pela cidade em visita ao corpo de bombeiros, à Praça Roosevelt, à comunidade quilombola da Casa Amarela, ao museu do futebol e até mesmo à casa de colegas e de professoras. Por onde passam, pintam no chão o lembrete “Criança na área”, que é a marquinha da turma.
A transformação causada por esta ocupação é perceptível nas crianças. Nosso filhote fez seis anos no último mês de setembro, mas desde meados do ano passado ele já tem na cabeça um mapa do centro e, o que é mais importante, percebe as mudanças que acontecem na região e se preocupa com a cidade em que mora. Ele nota o farol que parou de funcionar, a sujeira da rua, uma obra que obriga o pedestre a andar no meio-fio; foi ele quem notou, com tristeza, o fechamento de uma loja de aeromodelismo e, com alegria, a abertura de uma sorveteria. Ou seja, a ocupação do espaço dentro e fora da escola tem favorecido a formação de pequenos cidadãos que se preocupam com os girassóis plantados no bosque da escola e com o bueiro que alaga a esquina.
Esta forma integral de desenvolvimento do pequeno cidadão se espalha com facilidade para a família e para a comunidade escolar como um todo. Enquanto caminham pelo centro de São Paulo, as crianças mostram umas às outras onde ficam suas casas, e esta informação chega às famílias pelas crianças, de modo que a esquina da Consolação com a Ipiranga passou a se chamar “perto da casa da Júlia”, que mora pertinho da casa do Zaki. O Bixiga é “onde mora a Helena” e, enquanto passávamos pela Augusta um dia desses, o Leo disse que a “Alice vai ficar feliz porque estão fazendo um parque em frente à casa dela”.
Este envolvimento e preocupação com a cidade se conjuga bem com a política deliberada da equipe da escola de facilitar os encontros e a convivência entre as famílias. Desde o primeiro dia, pais, mães e responsáveis pelas crianças são convidados a entrar na escola e conviver com o espaço de que ela dispõe. A convivência não se dá apenas nas festas, mas no dia a dia, quando os adultos entram para pegar as crianças junto à professora e acabam parando para prosear enquanto as crianças brincam no tanque de areia. E no período vespertino, é comum que as crianças resistam a sair da escola, o que levou a Catarina, agente escolar da EMEI, à brincadeira de que vai apagar as luzes para todo mundo ir embora (pais e alunos).
Mas para além desta convivência diária, há também uma instituição fundamental para o fortalecimento deste sentimento de comunidade em torno da escola: o conselho escolar. Desde o primeiro contato com a EMEI, pais, mães e responsáveis recebem a informação de que serão bem-vindos ao conselho, que se reúne quinzenalmente oferecendo espaço efetivo para a discussão de várias questões relacionadas à escola. Apenas os membros eleitos do conselho têm direito a voto, mas as reuniões são abertas, horizontais e conferem ocasião para opiniões diferentes (e mesmo conflitantes) a respeito do uso do orçamento, da organização da próxima festa, das providências contra a covid-19 e muitas outras coisas.
O conselho da EMEI funciona porque não se reduz a um “espaço de reclamação” de onde sai um check list de novas obrigações para os funcionários. O conselho funciona porque é efetivamente um espaço de participação, porque é um espaço de onde todos saem com ideias, problemas e tarefas relativas à escola. O conselho funciona porque a escola é concebida como um bem comum a todos ali e porque há uma gestão democrática.
Este espaço de participação realiza uma enorme transformação em todos os envolvidos, pois oferece uma experiência bastante rara nos dias de hoje: a preocupação com algo que não é privado, com algo que não tem sentido apenas para o indivíduo. Enfim, o conselho da EMEI Gabriel Prestes oferece a moradores do centro da maior metrópole do hemisfério sul uma experiência efetiva do comum.
Esta transformação que começa pelas crianças, alcança famílias e chega a toda a comunidade escolar se revela ainda mais ampla porque outras três EMEI da região — Armando Arruda (República), Patrícia Galvão (Praça Roosevelt) e Monteiro Lobato (Higienópolis) — também têm conselhos que funcionam e, junto com a Gabriel Prestes, decidiram constituir um território educativo formado pelas quatro escolas. Esta associação é importante para muitas atividades e foi decisiva para duas lutas importantes realizadas pela comunidade escolar nestes últimos dois anos: uma contra a prefeitura, outra contra a pandemia.
O espaço da Gabriel Prestes, fundamental para o ótimo trabalho ali desenvolvido, se encontra em área valorizada da cidade e desperta interesses do setor imobiliário. Em outubro de 2019, a comunidade da escola foi surpreendida por uma manobra realizada na Câmara dos Vereadores que permitia à Prefeitura a venda do terreno. O projeto chegou à Câmara pela bancada do PSDB — é claro! — e a comunidade desconfia que se deu a pedido do Mackenzie, que é vizinho da escola. A votação se deu em uma quinta-feira; na sexta-feira o conselho fez uma reunião extraordinária e decidiu agir. Um cortejo de crianças, famílias, professoras e gestores das quatro escolas do território estava marcado para aquele sábado. Nós iríamos realizar nossa Virada Educativa, mas, diante do movimento da Prefeitura, decidimos incluir cartazes em protesto contra a venda do terreno, a fim de expor o ataque sofrido por uma das escolas. Passamos aquela sexta confeccionando cartazes junto com as crianças — as fotos são lindas e emocionam até hoje.
Seguiu-se um mês de mobilização intensa, com passeatas, visitas ao ministério público, à câmara de vereadores e à prefeitura; tivemos reuniões com o burocrata responsável pelo programa de “desestatização”, com jornalistas e com vereadores da oposição (PT e PSOL). O período foi difícil e cansativo, pois mobilização dá trabalho, mas era visível que a experiência trazia consigo uma enorme satisfação por estar realizando uma ação política que tinha sentido para todos ali, uma satisfação que só não foi maior que a explosão de alegria que aconteceu quando a Câmara votou pela proteção do terreno da EMEI.
O distanciamento social imposto pela pandemia tem sido um golpe duro para a comunidade formada em torno das quatro escolas. Mas ainda assim nós fomos capazes de realizar uma outra ação importante. No início da pandemia, uma ex-professora da Gabriel Prestes viu uma criança da escola na fila do sopão ao lado de sua mãe e imediatamente entrou em contato conosco, pais do Léo; nós entramos em contato com a Thássia, mãe da Mel, e juntos criamos um grupo com outros pais do conselho. Em poucas horas os conselhos das quatro escolas estavam mobilizados na organização de uma ação solidária. Decidimos pedir doações para a compra e distribuição de cestas básicas. Uma pessoa ficou responsável pela divulgação nas redes sociais, outras pelo levantamento de dados das famílias carentes (via Cadúnico e lista do Bolsa Família), outra pela planilha de gastos, outra pela conversa com instituições – o Thiago cedeu a conta bancária, e deve contar com a comunidade para se explicar à Receita Federal este ano. Apesar das dificuldades, conseguimos distribuir cerca de 1400 cestas às famílias das quatro EMEIS ao longo destes meses difíceis, em que muitas pessoas perderam seus empregos e os mais vulneráveis sofreram de modo mais agudo.
Toda esta transformação — que começa com a formação de pequenos cidadãos preocupados com a horta e com a calçada quebrada, passa pela aproximação de famílias que se tornam amigas, pela criação de uma comunidade vibrante, e chega à disputa contra a Prefeitura conivente com o capital e à distribuição de cestas a milhares de pessoas durante a pandemia — se deu em torno de uma instituição: a escola pública. Evidentemente, nem todas as escolas públicas realizam coisas deste tipo, por motivos diversos que nós não saberíamos listar.
Mas no caso específico da EMEI Gabriel Prestes, de cuja comunidade tivemos a enorme felicidade de participar por dois anos, é possível indicar sem dúvidas três elementos fundamentais para que “a Gabriel” seja uma escola transformadora: a presença de funcionários muito capazes e comprometidos com a educação em seu sentido amplo; o espaço interno da escola, que permite um plano político-pedagógico excepcional; e a existência de um conselho escolar organizado e efetivo. É muito significativo que o capital tenha tentado se apropriar de um dos pilares da escola, seu espaço, e que a resistência tenha sido imposta por uma comunidade organizada em torno de um bem que lhe é comum. No plano pessoal, esta organização e as experiências dela decorrentes marcam bastante os indivíduos, que se envolvem e saem transformados dos dois anos de participação na escola. Aqui em casa, a transformação nos conduziu a uma posição mais firme de defesa da escola pública e nos levou ao “ridículo” de chorar e soluçar em uma reunião de conselho escolar.
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