Escolas estão perdendo autonomia política

Escolas estão perdendo autonomia política

Escolas estaduais estão perdendo autonomia política após implementação do Novo Ensino Médio, aponta pesquisa

*Foto: Em 2023, uma série de protestos pelo país reivindicava a revogação do Novo Ensino Médio. Projeto de Lei aprovado pelo Congresso e sancionado em julho de 2024 não revogou o NEM, mas instituiu mudanças que valem a partir de 2025 (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Uma tese de doutorado conduzida pela pesquisadora pelo Programa da Pós-graduação em Educação da UFRGS Ângela Both Chagas revelou um cenário complexo nas escolas estaduais do Rio Grande do Sul durante a implementação do novo ensino médio. Enquanto testemunhava o esforço dos professores e o engajamento dos alunos em atividades como o Grêmio Estudantil, foi constatada a precariedade das condições das instituições de ensino.

Sob orientação da professora Maria Beatriz Luce, ao longo de seis meses, a pesquisadora vivenciou de perto o cotidiano escolar, participando das atividades e observando a interação entre alunos e professores. A pesquisa foi dividida em duas etapas: análise de dados e acompanhamento presencial nas instituições. Durante o período de imersão, tanto a dedicação dos profissionais da educação quanto as dificuldades enfrentadas pelas escolas públicas chamaram a atenção de Ângela. Um episódio marcante ocorreu em uma instituição de ensino da periferia, em que os estudantes tiveram a carga horária reduzida por falta de professores, iniciando as aulas mais tarde e saindo mais cedo durante metade do ano letivo. 

“Constatei essa situação ao ver os alunos chegarem tarde, saírem cedo e reclamarem da falta de aulas. Isso gera um sentimento de revolta, pois não se garante nem o mínimo, que é ter professores para dar aula nas escolas estaduais do Rio Grande do Sul”

Ângela Both Chagas

A falta de aulas nas instituições públicas gerou preocupação na pesquisadora, pois reflete uma violação dos direitos básicos dos estudantes, que estão sem acesso ao mínimo necessário para sua educação. Ela aponta que essa realidade vai contra os discursos que promoviam o Novo Ensino Médio como uma reforma que ofereceria mais liberdade aos alunos e tornaria os colégios um local com foco na inserção no mercado de trabalho, espírito empreendedor e planos de carreira.

Na teoria, as chamadas trilhas, que começaram a fazer parte do currículo escolar, são um conjunto de disciplinas que os estudantes podem escolher de acordo com seus interesses e aptidões. Na prática, porém, mais de 84% das instituições oferecem no máximo duas trilhas de aprofundamento. Para os estudantes com dupla jornada de estudo e trabalho, a situação é ainda mais difícil. Cerca de 40% das escolas de ensino noturno apresentam apenas uma opção.

Os dados obtidos por Ângela mostram que quase 90% dos professores acreditam que o Novo Ensino Médio precisa ser reestruturado e 71% dos estudantes sentem que as trilhas não atendem às suas necessidades básicas de formação. O modelo atual foi criticado por desarticular o currículo e sobrecarregar tanto estudantes quanto professores, sem oferecer a formação adequada ou os recursos necessários.

A pesquisa também apontou uma diminuição na carga horária em quase todas as disciplinas convencionais quando comparado com os horários anteriores à reforma. Isso resultou em uma redução geral nos períodos disponíveis em várias áreas de ensino. Ângela conta que, supostamente, os estudantes poderiam escolher as trilhas, mas nas turmas de segundo ano do ensino médio que ela acompanhou, por exemplo, era ofertado apenas um período de biologia, história, física e química por semana. “Em compensação, eles tinham 3 períodos, por exemplo, de ‘empreender-se para a sustentabilidade’, que é um dos componentes das trilhas. Para os estudantes, não fazia nenhum sentido ter aquele componente curricular, eles queriam ter carga horária de biologia, de história, de geografia, que praticamente eles não tinham, porque um período só na semana são 150 minutos de aula”, complementa.

Ângela também destacou o impacto da reforma sobre o papel político da escola, que, com o novo modelo, foi reduzido. Disciplinas como filosofia e sociologia perderam espaço, e o foco no “projeto de vida”, alinhado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), foi apontado como uma estratégia para desenvolver o espírito empreendedor, mas com a responsabilidade do sucesso ou fracasso recaindo sobre o estudante, desconsiderando as desigualdades sociais e educacionais. 

A presença de instituições privadas no processo de implementação do Novo Ensino Médio também chamou a atenção da especialista. Ao analisar documentos da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), Ângela identificou a participação de pelo menos 14 instituições privadas, incluindo o Instituto Unibanco e Itaú Educação e Trabalho. Essas entidades, em parceria com a Secretaria, têm influência sobre as diretrizes escolares, limitando a autonomia das instituições de ensino para criar projetos pedagógicos que atendam às necessidades dos seus estudantes.

“No trabalho dos professores, então, em geral, a gente tem uma imposição. É uma política que se reflete como autoritária, porque retira autonomia das escolas na construção dos seus projetos pedagógicos e repassa essa tarefa para a Seduc e para agentes privados”

Ângela Both Chagas

Apesar dos desafios, a pesquisa também destacou a resiliência das escolas públicas e a determinação de professores e alunos, que seguem batalhando por uma educação de qualidade. Mesmo sem autonomia e estrutura, os educadores encontram soluções criativas para superar os obstáculos. Os estudantes também se mobilizaram com protestos e audiências públicas, pedindo mudanças no currículo.

A reforma do Novo Ensino Médio recentemente sancionada trouxe alguns avanços, como o aumento da carga horária da formação geral básica, mas ainda há muito a ser feito para garantir uma educação inclusiva e de qualidade. Ângela finaliza sua análise enfatizando a importância da escola na construção da democracia e no empoderamento dos cidadãos desde cedo, acreditando que o caminho para um ensino médio mais justo e eficaz depende da mobilização coletiva e da valorização da educação.

O trabalho completo está disponível no Lume – Repositório Digital da UFRGS.

 

FONTE:

https://www.ufrgs.br/jornal/escolas-estaduais-estao-perdendo-autonomia-politica-apos-implementacao-do-novo-ensino-medio-aponta-pesquisa/?fbclid=IwY2xjawGI0lJleHRuA2FlbQIxMQABHbimTzGv20V9dKdisnRUKE8pDgLOuedY-lPJWgSxpTQQv7_9A1LrItxOoA_aem_ehvkmtPgEdKFcaMnXvdt-Q 




ONLINE
49