Escolas rurais em quarentena
Escolas rurais em quarentena: internet via rádio, acesso limitado aos materiais impressos e evasão escolar
Quatro professores relataram os desafios do ensino no campo durante a pandemia e o que fazem para estarem próximos dos alunos
POR: Ana Paula Bimbati 01 de Julho | 2020
“Nem todos os alunos têm internet e quando têm é de péssima qualidade porque é via rádio, o que deixa ainda mais lenta”, conta a professora Rute Neves, da rede pública municipal de Angelina, uma cidade de pouco menos de 5 mil habitantes no interior de Santa Catarina. “Quando o dia está nublado, a internet já ‘buga’, como dizem meus alunos”, complementa a docente.
O ensino remoto emergencial é desafiador mesmo em condições favoráveis de infraestrutura. Mas, na zona rural, com a ausência de conexão ou velocidade lenta da internet, falta de contato frequente entre estudantes e escolas, distância para entregar materiais impressos e a rotina das famílias no campo, as dificuldades são ainda maiores.
No Brasil, das mais de 180 mil escolas existentes, 55 mil estão localizadas zona rural, segundo dados do Censo Escolar de 2019. Nos relatos desta reportagem, que integra a série “Retratos da Quarentena”, você conhecerá alguns desses desafios que fazem parte da rotina de Rute e dos professores Lucas Vinícius Nunes, Maria Sueli dos Anjos e Michele Pires.
Os desafios e esforços docentes
Professora dos Anos Iniciais, Rute tem o desafio de se manter próxima dos alunos no período de alfabetização. Dos seus 10 alunos do 1º ano, um deles não tinha acesso à internet no início das aulas a distância e precisava retirar os materiais impressos na escola.
“Para os outros alunos, envio as atividades pelo WhatsApp e passei a fazer aulas ao vivo pelo Zoom à noite, porque é o horário que as famílias já chegaram do trabalho”, conta. No entanto, esse único aluno, que não tinha internet em casa, passou a ir até a residência de uma tia para usar o celular emprestado e participar da aula.
“Isso mexeu comigo, porque vi a dedicação da família em retirar os materiais, se deslocar até a casa desse parente no frio que faz aqui à noite”, relembra a professora. Para evitar o trajeto noturno, Rute pegou um celular que estava parado em sua casa e emprestou para o aluno utilizar nesse período. Logo depois, uma das empresas de internet da cidade, cedeu banda larga para família.
No município de Angelina, a internet tem uma velocidade média de 2 megabytes por segundo, mas fica ainda mais lenta porque é via rádio. O valor está bem abaixo da velocidade média da internet no Brasil, que é de 45 megabytes por segundo.
A 400 quilômetros dali, fica a cidade de Irineópolis (SC), onde a professora Maria Sueli dos Anjos leciona. Seus desafios são bem comuns aos relatados por Rute. “Muitos pais não têm o Ensino Médio completo, então fica difícil conseguirem ajudar os filhos. Por isso, passei a deixar mais detalhado o enunciado das atividades, por exemplo”, explica a educadora do Ensino Fundamental 1.
Michele Pires, professora de Ciências, na rede pública municipal de Cariacica (ES), também compartilha da mesma questão. “Muitas vezes o pai não tem o conhecimento necessário para ajudar o filho”, relata. Ela aposta em jogos educativos para engajar os estudantes. Sua maior dificuldade é a falta de contato direto com os alunos e de saber se os conteúdos têm feito sentido para sua turma.
Com o mesmo objetivo, Maria Sueli tem trabalhado com propostas diferentes das que costuma planejar usualmente, numa perspectiva de que as tarefas se conectem com a realidade dos alunos. “Preparei uma atividade sobre os tipos de rochas e pedi para que eles pesquisassem no próprio terreno em que vivem esses tipos, descrevendo o que foi encontrado e estabelecendo comparações. Essa é uma forma também de oferecer uma atividade que todos consigam fazer”.
Estrada de terra e apoio para distribuir materiais impressos
Quando você pensa na região rural, em sua mente deve vir algo relacionado a estrada de terra, casas distantes, pouca ou nenhuma iluminação, longo trajeto dos alunos até a escola… é exatamente a realidade que o professor Lucas Vinícius Nunes e sua turma enfrentam no dia a dia em Afogados da Ingazeira (PE), município que fica a 386 quilômetros de Recife.
“No início da quarentena fiquei pensando no que poderia fazer para os meus alunos. Foi aí que comecei um planejamento de revisão dos conteúdos, pesquisei os materiais e preparei uma apostila com foco no Fundamental”, relembra Lucas, que é professor de uma turma multisseriada de Educação Infantil e Ensino Fundamental 1. Com a ausência de uma boa internet (na região é usada uma comunitária), ele decidiu imprimir as apostilas, colocar em sacos plásticos e entregar os alunos.
Mas um imprevisto surgiu no dia combinado para a entrega: chuva. São 8 km de estrada de barro, que em dias de chuva fica com lama e em dias de seca, cheia de pedras. “Sem conseguir pegar estrada, combinei com um pai de um dos meus alunos, que trabalha na cidade, de retirar o material e deixar na casa da merendeira que fica mais próxima das crianças”, explica o professor. Já a segunda apostila, Lucas entregou pessoalmente na casa da funcionária da escola junto dos kits de merenda. Agora, ele prepara a terceira leva de materiais para enviar aos estudantes.
A devolução das atividades é feita via WhatsApp, mas não acontece de forma uniformizada. “Eles nem sempre mandam no prazo de 15 dias porque não têm internet ou não conseguiram realizar a atividade”, diz. A rotina desgastante de trabalho faz com que as famílias não consigam apoiar com tanta frequência os estudos dos filhos. “Muitos saem cedo para ir para roça, deixam as crianças com os irmãos mais velhos e quando chegam do trabalho vão tentar ajudar, mas enfrentam problemas já que nem todos têm escolaridade e, muitas das vezes, não conseguem nem fazer a leitura do enunciado”. Para auxiliar, Lucas costuma enviar áudios pelo WhatsApp.
Preocupações com o futuro
Em tempos de pandemia e aulas a distância, as preocupações e ansiedades sobre o futuro aumentam a cada dia. O medo de contaminação do novo coronavírus, do aumento da evasão escolar e da defasagem aparecem em todas as falas dos professores. “Nossos alunos são estimulados a trabalhar desde cedo e, sem as aulas presenciais, isso pode aumentar. É muito comum na zona rural a valorização ao trabalho ser maior do que da Educação”, aponta a professora Maria Sueli.
Para Michele, que tem alunos dos Anos Finais, a preocupação com a evasão escolar é muito grande. “A gente faz um preparo com o 9º ano também para o Instituto Federal e eles estão perdendo esse conteúdo. Eu sei da capacidade desses meninos, mas com esse cenário, não sabemos como fica”. A professora, entretanto, já pensa em soluções para esse retorno: “vou tentar levar essas metodologias diferenciadas que estamos aprendendo na quarentena para que as aulas não fiquem tão maçantes [no retorno presencial]”.
Rute também se preocupa com a defasagem dos alunos da alfabetização. “Nós sabemos que não existe construção de conhecimento pedagógico nesse formato, mas vamos precisar nos dedicar na volta”, pondera.
Na pesquisa “A situação dos professores no Brasil durante a quarentena”, realizada por NOVA ESCOLA, 74% dos respondentes acreditam que voltam à escola no segundo semestre de 2020. Mas muitos se preocupam com esse retorno, pensando também na estrutura, geralmente precária, das escolas rurais. “Será que teremos equipamentos de proteção para todo mundo? Muitas crianças são carinhosas, gostam de abraçar e estar perto, como lidar com tudo isso? As dificuldades por aqui são ainda maiores”, afirma Lucas.
Igualdade para o acesso e permanência na escola
Para Mônica Molina, professora e diretora do Centro Transdisciplinar de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB), é importante que se garanta o que está previsto no artigo 206 da Constituição Federal.
Art. 206
O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola
“As condições de estrutura são infinitamentes piores no campo. O Fórum Nacional de Educação do Campo [no qual ela faz parte] fez um levantamento e apontou que o índice mais alto de acesso à internet nessas regiões é de 25%”, explica Mônica. “Isso significa que a maior parte dos estados não têm internet disponível e os que têm, o acesso não é suficiente, pois as famílias têm apenas um celular ou uma banda larga lenta”, diz.
Além disso, a operacionalização de entrega de materiais impressos é complexa, pois depende de uma série de serviços, como um transporte adequado para passar nas estradas e itens de produção (papel, impressora).
Mônica alerta também para a importância das políticas públicas olharem para as particularidades das escola rurais. O parecer nº 5/2020, do CNE, homologado pelo MEC no final de abril, orienta as redes de ensino sobre a reorganização do calendário. No entanto, a pasta vetou o item 2.16, que coloca que as avaliações e exames não devem considerar as atividades remotas como dias letivos, mas apenas os conteúdos efetivamente oferecidos aos estudantes.
Mesmo o parecer sendo uma diretriz e não uma obrigação a ser seguida, a especialista aponta que muitos municípios entendem o documento como lei e seguem à risca. "É absolutamente desigual e injusto, que neste período, aulas remotas contem para avaliação ou como dias letivos”, afirma. “Isso é condenar milhares de alunos à reprovação”.
Além disso, a especialista reforça a importância de abranger todas as diversidades de ensino pelo Brasil. “A gente tem de entender que a Educação não se dá apenas na escola. Existem espaços e tempo muito maiores que levam aprendizagem para os alunos, envolvendo relações sociais e o próprio trabalho no campo. Nesse momento, a gente pensa mais em garantir a vida das pessoas e pensa menos em conteúdo”, defende.
Mesmo com tantos desafios, o professor Lucas acredita que é possível pensar em tempos melhores para a Educação. “Não vejo a hora disso tudo passar. As escolas da zona urbana têm mais facilidade, mas não podemos esquecer das escolas da zona rural”.