Escolas sucateadas, salários defasados
Escolas sucateadas, salários defasados, déficit da pandemia: Educação desafia futuro governador
Especialistas apontam o que será enfrentado pelo próximo chefe do Executivo a ocupar o Palácio Piratini
Por Luís Gomes luisgomes@sul21.com.br
Salários defasados, escolas com problemas estruturais, déficit de aprendizagem em razão da pandemia. É nesse cenário que a educação gaúcha irá encontrar o próximo governador do Rio Grande do Sul. Às vésperas do primeiro turno para o Palácio Piratini, o Sul21 conversou com profissionais da área sobre os desafios na educação para os próximos quatro anos, independente de quem sair vitorioso.
A psicopedagoga Amélia Bampi, articuladora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação na região Sul, destaca que os desafios da educação começam, na verdade, a nível nacional, com os problemas de financiamento. Para ela, uma dos principais desafios para o financiamento da educação a partir de 2023 é a revogação do teto de gastos federal.
Amélia diz que a Campanha defende que, a partir de 2023, seria necessário promover a gestão democrática do orçamento nacional para a educação. “A gente sugere como parâmetro o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) — indicador criado pela Campanha –, que tem insumos que mostram o que cada escola necessita para ter um padrão de qualidade, com financiamento adequado”, diz.
Um segundo ponto que ela reforça é que, também a nível de Brasil, apenas 25% das metas do Plano Nacional de Educação foram cumpridas, de acordo com levantamento que a Campanha Nacional apresentou em junho deste ano. E, pior, indicadores de 45% das 20 metas estabelecidas em 2014 pelo PNE apresentam retrocesso.
Um caso caso é a meta 2 do PNE, que previa a universalização do ensino fundamental de 9 anos para toda a população de 6 a 14 anos e garantir que pelo menos 95% dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada. Segundo o levantamento da campanha (ver aqui), o número de crianças nessa faixa etária que não frequentam nem concluíram a etapa quase dobrou de 2020 para 2021, saltando de 540 mil para 1,072 milhão. Já em termos de Rio Grande do Sul, Amélia destaca que ainda não foi atingida, por exemplo, a meta de matricular ao menos 30% das crianças de 4 e 5 anos nas escolas.
Já o presidente interino do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers), Alex Saratt destaca que há um grande desafio do ponto de vista estrutural das escolas, além das reivindicações do sindicato sobre a valorização da carreira.
Ele observa que o Cpers realizou três caravanas com visitas a escolas estaduais gaúchas nos últimos dez meses e um dos objetivos foi avaliar as condições estruturais das instituições. Em maio, o sindicato lançou um dossiê com os dados levantados a partir das visitas a 430 escolas, de 160 municípios do Rio Grande do Sul. Foram identificadas 10 escolas com problemas estruturas graves com necessidade de resolução urgente. Além disso, o dossiê aponta que seis escolas apresentavam falta de RH, seis escolas funcionavam fora da sua sede original, três escolas tinham salas de aula interditadas, duas escolas com problema de infiltração, duas escolas com falta d’água, duas escolas com muro desabando, uma escola com fechamento de turno e uma escola fechada por obra inacabada.
“Nessas caravanas, a gente constatou duas situações. A primeira é que muitas escolas estão em situação precária, insalubres, inseguras. Nós temos problemas que beiram o ridículo. Tem uma escola que funcionou dois anos sem energia elétrica. Temos escola que o abastecimento da água está comprometido. Tem escolas que a instalação elétrica não suporta mais a aparelhagem e os alunos têm que assistir a aula, isso eu vi com os meus próprios olhos em Tapera, com luz natural. A escola suspendeu o turno da noite e acredito que não tenha sido resolvido ainda, infelizmente”, diz.
O presidente interino do Cpers destaca também que há muitas obras e instalações prometidas e que nunca saíram do papel, especialmente em termos de laboratórios de informática e quadras esportivas. “Para tu teres uma ideia, a minha escola de origem em Taquara, em 2002 conseguiu aprovar a transformação da quadra num ginásio fechado. Nós estamos em 2022 e continua lá na mesma situação. Essas demandas não são históricas, elas são crônicas. No nosso entendimento, é preciso ter um programa muito consistente na recuperação, na modernização e na qualificação da estrutura física e material das escolas”, afirma.
Saratt destaca que, atualmente, 45% dos professores que atuam em sala de aula são servidores contratados em caráter temporário. A Secretaria Estadual de Educação (Seduc-RS) deve lançar ainda este ano um concurso público com 1,5 mil vagas. “A gente teria que realizar concursos públicos por quase 20 anos à ordem de 1.500 nomeações por ano, para pegar essa referência que o governo Leite anunciou, para poder suprir o o número de contratados e ter um quadro completo de nomeados”, diz.
O segundo desafio que o presidente interino do Cpers destaca é a falta de pessoal e a precarização da carreira de funcionário de escola. “Nós temos poucos concursos para professores e muito menos para funcionários de escola. E a tabela salarial dos funcionários da escola do Rio Grande do Sul beira a humilhação. A gente está falando de uma tabela salarial que começa em R$ 657. É preciso que a gente construa condições de ter uma tabela salarial onde nenhum funcionário de escola, ao final dos próximos quatro anos, tenha como base um valor inferior ao salário mínimo regional”, diz.
A terceira demanda da categoria envolve os servidores inativos. “As mudanças que se operaram na Previdência fizeram com que os nossos colegas que já contribuíram tenham que contribuir em até 14% dos seus vencimentos. Nós achamos que essa mudança foi muito prejudicial, tivemos recentemente, inclusive, uma marcha dos aposentados que teve grande adesão para manifestar a sua inconformidade e sua oposição a essa política”, afirma.
Psicopedagoga de formação, Amelia Bampi diz que não se identifica entre os mais pessimistas em relação às perdas e avalia que é possível recuperar o tempo perdido com as crianças da escola pública. Contudo, afirma que é preciso implementar uma série de medidas, a começar pela qualificação do quadro docente.
“No Rio Grande do Sul, temos uma questão muito complicada porque não há concurso há muito tempo, os professores são contratados por tempo determinado e, quando chega no final do ano, esses professores são dispensados. Então, a escola pública não consegue manter um corpo docente com formação adequada para o atendimento dessas crianças com as dificuldades”, diz.
Ela avalia que a qualificação docente também exigiria solucionar os problemas de defasagem salarial dos professores. “Muitos estão abandonando o magistério e procurando outras ocupações.”
Pelos cálculos do Cpers, a defasagem salarial ante a inflação nos últimos dois governos representou perdas acumuladas de 51,76%.
Amélia também defende que é preciso fazer investimentos em escola de turno integral, com turmas com um número reduzido de alunos em que se os professores possam fazer atendimentos individualizados ou em grupos, especialmente nas áreas de Língua Portuguesa e Matemática. “Mas, no Rio Grande do Sul, são poucas as escolas de turno integral”, diz.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Iana Lima avalia que a recuperação das perdas da pandemia é um desafio que vai além dos limites da educação, pois passa pelo enfrentamento de problemas. “A gente não sabe ainda quais são os reais impactos que essas crianças e jovens tiveram nas suas vidas em função da pandemia, desse tempo em que a gente teve um ensino remoto. A gente ainda não tem condições de dizer quais são as lacunas que ficaram. A gente voltou há pouco para um ensino presencial efetivo e os relatos que temos escutado de professores é que há muitas lacunas de construções de conhecimento que não foram feitas durante esse período do remoto. Então, a gente vai ter, na verdade, um desafio grande de repactuação em torno de questões de currículo. Precisamos discutir nas escolas as questões curriculares. E, de novo, não tem como falar disso sem pensar em espaços de reuniões pedagógicas na escola. A gente tem um desafio grande dos processos avaliativos, como é que ficam essas avaliações se temos grandes lacunas? Como se faz essas novas avaliações agora?”
Por outro lado, destaca que essas perdas só serão superadas em conjunto com políticas sociais. “Com o sucateamento que a gente vê das políticas sociais, de cortes de subsídios, por exemplo, de transportes, cortes de verbas para as redes de saúde. Isso também tem um impacto, ninguém aprende com fome, nenhuma criança aprende com frio, aprende doente. Voltamos a ter muitas pessoas abaixo da linha da miséria. Isso tem impactos nas questões educacionais. O ensino-aprendizagem vai ser impactado também por isso”.
Do ponto de vista social, Amélia Bampi pontua que também é preciso investir na alimentação das crianças para recuperar as perdas da pandemia. “O Rio Grande do Sul não tem tido preocupação com a questão alimentação nas escolas, as crianças comem bolacha com suco. É muito importante uma alimentação adequada porque muitas crianças vão pra escola e é a única refeição que eles têm. Com a pandemia e com esse governo, nós temos 30 milhões de pessoas abaixo da linha pobreza. É uma coisa muito séria e isso acaba se transferindo para a aprendizagem.”
Além dos problemas de recuperação das perdas, professores e alunos precisam se adequar no pós-pandemia a uma escola em transformação, com a tecnologia, cada vez mais, fazendo parte do cotidiano. Contudo, este é mais um elemento a, na prática, aumentar o abismo entre as redes públicas e privadas de educação.
“O desafio começa desde a aparelhagem, desde o equipamento que as escolas precisam ter, até processos de formação e de inclusão, porque existem muitas confusões sobre isso. A gente vê inclusive uma visão de senso comum: ‘ah, mas o menino vive no Whats, vive no Facebook ou em alguma plataforma de rede social’. Mas na educação não é a mesma coisa”, diz Alex Saratt.
A respeito da adaptação dos professores às mudanças, ele concorda que há urgência. “Tem habilidades e competências que os profissionais precisam ter um domínio básico, mas também não basta só o profissional ter esse domínio quando os jovens não têm esse domínio. Há uma visão muito equivocada de que os jovens dominam a tecnologia do ponto de vista educacional tão bem quanto para outras finalidades. É preciso construir isso e, para isso, tem que dialogar com todos os segmentos da escola pública e tem que oferecer as condições. Você chega numa escola hoje e a internet mal pega na sala dos professores, que é onde os colegas costumam fazer a sua hora atividade, pesquisar algum conteúdo, preparar o material. Então, essa questão da conexão com internet, a aquisição de aparelhos modernos e velozes, que você possa chegar e aproveitar a tecnologia de maneira favorável, estão colocados como grandes desafios para o futuro, porque não tem como voltar a roda da história para trás”, diz Saratt.
Recentemente, a reportagem do Sul21 visitou a escola estadual Presidente Roosevelt, em Porto Alegre, que foi uma das escolas-piloto escolhidas para a implementação do Novo Ensino Médio na Capital. Apesar disso, ela contava com um único laboratório de informática, cujos computadores foram doados em 2008 e não acompanham as necessidades atuais.
Realidade da rede estadual é de escolas com equipamentos defasados e dificuldades de acesso à internet | Foto: Luiza Castro/Sul21
O presidente interino do Cpers avalia que é preciso uma política muito bem elaborada na questão dos investimentos em tecnologia, mas argumenta que os dois últimos governos tiveram grandes dificuldades em dialogar sobre esse tema com a comunidade escolar.
“Não nos interessa uma escola precária, uma escola sucateada, uma escola onde o ensino e aprendizagem não tenha significação nenhuma aos educandos e para as famílias. Então, a questão da tecnologia precisa ser absorvida de um modo muito responsável. A gente não pode, em nome da tecnologia, criar mais exclusão do que aquelas que já existem na sociedade.
A gente não pode, em nome da tecnologia, privatizar setores na educação, comprar pacotes prontos, plataformas digitais, enquanto a gente poderia estar fazendo essa construção por dentro da própria educação e em articulação com outros órgãos do próprio Estado, com universidades, com segmentos que constroem isso de uma maneira muito consistente”, afirma.
Novo Ensino Médio
Em meio ao cenário de desafios, o Rio Grande do Sul, e o Brasil, vêm promovendo a maior reforma curricular das últimas décadas nos anos finais da educação básica, com a implementação do Novo Ensino Médio.
O Novo Ensino Médio começou a ser adotado na rede estadual de ensino em 2020, em um conjunto de escolas-piloto. Em 2022, ele passou a valer para todos os primeiros anos do Ensino Médio.
A nova matriz curricular implementada pela Seduc estabelece que os estudantes terão, ao longo dos três anos da etapa, 1.800 horas de Formação Geral Básica — composta pelas disciplinas das áreas de conhecimento tradicionais — e 1.200 horas de currículo diversificado, onde entram os chamados Itinerários Formativos.
Estes itinerários são divididos em componentes obrigatórios (as disciplinas de Projeto de Vida, Mundo do Trabalho, Cultura e Tecnologias Digitais e Iniciação Científica), trilhas de aprofundamento curricular (divididas em duas áreas de conhecimento e um componente de formação técnica e profissional) e disciplinas eletivas.
O aprofundamento curricular consiste em priorização de disciplinas em duas das quatro áreas de conhecimento oferecidas na rede: Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. O estudante também terá disciplinas de educação profissional, que inicialmente serão oferecidas pela rede estadual em quatro áreas: Informática, Administração, Eletrotécnica e Agropecuária. A política da atual gestão é de focar as disciplinas o máximo possível para a área do empreendedorismo.
Iana Lima avalia que um dos principais desafios em relação à implementação do Novo Ensino Médio no Rio Grande do Sul é que as escolas não estariam contando com a assessoria adequada da Seduc neste processo.
“Nós temos relatos de escola em que, por exemplo, a Seduc informou que a escola deveria organizar e verificar junto aos alunos e alunas quais vão ser os itinerários formativos que vão ser ofertados. Isso de uma semana para outra. O que as escolas estão fazendo é tendo que se organizar muito rapidamente, então não acontece da forma organizada como deveria, sem ter um respaldo dessa Secretaria de Educação. O grande desafio, independente do governo que a gente, é que tenha um subsídio, um aporte para os professores colocarem essas questões práticas. ”
Ela destaca que, pela lei do Novo Ensino Médio, fica a cargo dos sistemas de ensino a organização das novas matrizes curriculares, o que significa que deveria partir das secretarias de educação.
“Mas o que a Seduc está fazendo é passar essa responsabilidade para as escolas em dar o suporte necessário para isso. Um desafio é o fortalecimento da Secretaria de Educação no sentido de formação pra esses professores saberem como colocar em prática. Para isso, a gente precisa de investimentos, especialmente. A gente tá falando aqui de investimento financeiro em formação, isso é muito importante e não tem sido feito com horários de planejamento. Porque, com a precarização do ensino da educação como um todo, a gente vem perdendo esse espaços de diálogo, de reuniões, de planejamento. As escolas não tem e isso representa um grande desafio para conseguir colocar o novo ensino médio em prática”, diz.
Amélia Bampi diz que um dos principais problemas do ensino médio é a evasão escolar, o que foi agravado pela pandemia. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontam que a taxa de abandono escolar no ensino médio na rede mais do que dobrou entre 2020 e 2021, passando de 2,3% para 5,6%.
Ela avalia que é preciso romper com o círculo vicioso em que os alunos evadem o Ensino Médio e vão trabalhar em empregos precários. Contudo, ela questiona as políticas implementadas em diversos estados, sobretudo no Rio Grande do Sul, de focar na promoção do “empreendedorismo” como forma de enfrentamento do problema.
“Na verdade, não é empreendedorismo. Empreender é para quem tem condições de fazer um negócio e o que eles fazem é atuar no trabalho informal, sem carteira assinada, botam uma banquinha, vendem coisas na rua e assim por diante”.
Outra face desse mesmo problema é a precarização da Educação de Jovens Adultos para aqueles alunos evadidos que tentam retornar à escola para concluir o Ensino Médio. “Muitas escolas foram fechadas no Rio Grande do Sul e os alunos não têm acesso para terminar sua escolaridade. Então, nós ficamos com jovens e adultos sem conseguir ingressar ou no ensino médio ou na faculdade”.