Escravidão lamentável

Escravidão lamentável

Lamentável escravidão

(Este é um texto sobre História).

Fabiano da Costa.

 

Ontem, ao ler sobre a pobre mulher negra de 84 anos que foi resgatada no Rio de Janeiro, após 72 anos consecutivos de escravidão, lembrei, não sei porque, daquele argentino sonhador, Ernesto. Quando esta pobre alma feminina se tornou escrava, em 1950, ainda não havia Muro de Berlim, ninguém imaginava o suicídio de Getúlio Vargas, e havia Apartheid na África do Sul. E Ernesto, aquele futuro médico, aquele jovem argentino de sorriso largo, tinha apenas 22 anos de idade.

No inicio dos anos 1950, Ernesto entrou na Amazônia peruana. Após viajar de moto pela América Latina, descreveu em seu surrado diário, a condição miserável dos indígenas. Segundo ele, não era possível viver de sonhos. Era preciso fazer algo para barrar as injustiças, porque os injustos não paravam de comete-las. Chegou o ano de 1954, e o nacionalista Jacobo Arbenz havia sido derrubado por um Golpe militar na Guatemala, após ferir os interesses econômicos da United Fruits e de Washington na região. Ernesto foi para lá. Fazia 4 anos que a pobre mulher negra estava confinada no Rio de janeiro, e Ernesto estava na América Central falando de justiça.

A Guatemala para Ernesto, não passou de um sonho: os movimentos populares e os grupos indígenas foram brutalmente reprimidos pelo Exército Golpista e pela CIA. Ernesto foi então para o México, onde conheceria um advogado idealista, chamado Fidel. Para Fidel, o argentino era um pouco ingênuo e sonhador. Daí o apelido: “Che” significava “amigo de todos”.

É aí que inusitadamente, a História começa a cruzar as duas figuras: a da pobre mulher negra e a de Ernesto. Em 19 de agosto de 1961, Ernesto veio ao Brasil como ministro do governo cubano, e foi condecorado com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, pelo então presidente Jânio Quadros. Há 11 anos, a pobre mulher negra, era mantida escrava e ninguém mais falava dela. A sua família havia perdido o contato com ela em 1950, quando foi levada de casa por uma família de Classe alta que prometia lhe oferecer estudos.

O discurso de Ernesto em Brasília, porém, causaria alvoroço: símbolo da revolução cubana que afrontava os Estados Unidos, ele falou de independência e do fim da exploração. Os militares brasileiros se negaram a ir à solenidade, e ameaçaram um Golpe de Estado. Apenas 6 dias depois daquele discurso em Brasília, Jânio Quadros renunciaria. Os militares não toleraram a nacionalização de reservas minerais que haviam sido cedidas à empresas estadunidenses, e nem a visita de Ernesto, que em Brasília, criticou o Imperialismo norte-americano. Houve uma ameaça de motim nos quarteis e Jânio, acusado de comunista, deixou o cargo. As forças militares impediram que o vice, João Goulart, assumisse. Em uma sala em uma casa qualquer no Rio de Janeiro, ao lado do rádio, a pobre mulher negra escutava no rádio: forças militares estavam nas ruas novamente.

O antigo jovem Ernesto Guevara, volta para Cuba. Com seus 36 anos, diz aos mais próximos que está cheio de gabinetes e papeladas, e que quer pegar em armas. Sonha com uma revolução global. No ano seguinte, iria para o Congo, lutar ao lado dos negros e contra os colonizadores belgas e norte americanos. Antes, entretanto, foi à Cuba. É lá que, após uma revolução, estão tentando construir o tal socialismo.

Uma das primeiras medidas de Fidel Castro, ao assumir a presidência, foi proibir a folclórica figura da empregada doméstica nas casas da Classe média. Disse Fidel, em um discurso, para assombro da Classe média alta cubana: “A empregada doméstica é a figura da escravidão colonial”. E no Brasil? No Brasil, a escravidão era respaldada pelo Golpe de Estado que havia derrubado João Goulart. Fazendeiros escravocratas apoiaram a derrubada de Jango.

Três anos depois, em dezembro de 1964, Ernesto Che Guevara estaria na ONU, para um discurso histórico, que a pobre mulher negra não teria conhecimento. Nele, Che, relatava bravamente o que estava acontecendo em Cuba. Após uma tentativa de invasão norte-americana pela Baia dos Porcos em 1963, haviam começado os fuzilamentos em massa de soldados mercenários. A imprensa norte americana se mostrava chocada com a nova Guilhotina jacobina: padres refratários, empresários e mercenários eram executados olhando para a parede. Era o tal “paredon” que Cuba havia criado para fazer valer a sua lei. Entre os condenados com a pena de morte, inusitadamente, estavam centenas de acusados de manter trabalho escravo na ilha. Em Cuba não haviam mais escravos. No Brasil, entretanto, a pobre mulher negra já estava confinada há 14 intermináveis anos.

No entanto, a polêmica daqueles dias que antecederam ao discurso na ONU, foi sobre um outro fuzilamento: a notícia corrente na imprensa norte-americana, de que Guevara, o representante cubano, havia matado um "casquito" (soldado do ditador Fulgêncio Batista) durante a revolução, em 1958. Informação desencontrada, a verdade é que Ernesto, havia realmente executado aquele soldado, mas em condições completamente diferentes das idealizadas pelos jornais.

Eram dias de guerra civil e aquele soldado veio a Che trazido por camponeses. Ele havia sido flagrado sem calças, estuprando uma menina de 12 anos. Horas antes, um grupo de oito casquitos havia capturado a filha de um camponês e realizado um estupro coletivo. Sete homens haviam fugido, mas este, flagrado pelo primo da menina, foi trazido a Fidel, que decidiu que a menina deveria exercer a "justiça revolucionária". Nem ela e nem o primo quiseram pegar na arma. Coube a Ernesto Guevara, o Che, realizar a sentença em público.

Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que haviam ido a Cuba 4 anos antes, existencialistas, haviam dito que Ernesto era o mais inteligente dos homens que haviam conhecido. O que mais lhes impressionou nas tardes que passaram com ele em Havana, havia sido, além da inteligência, a completa convicção das coisas que fazia em busca de justiça.

Esta convicção se repetiria em Nova York, na assembleia geral da ONU naquele dezembro de 1964. Denunciando os massacres dos Estados Unidos na Ásia, na África e na América Latina, Ernesto Che Guevara foi atacado sistematicamente pela acusação de assassinato em Cuba. Com um brilho nos olhos, afirmou diante do plenário lotado da ONU: “Nós temos que dizer aqui o que é uma verdade conhecida, que temos expressado sempre diante do mundo: fuzilamentos, sim! Fuzilamos, estamos fuzilando e seguiremos fuzilando até que seja necessário.”

A mídia norte americana se mostrou chocada com a fala de Ernesto. Os jornalistas democratas norte-americanos não sabiam, mas no sul dos Estados Unidos, na Virginia e no Alabama, negros não podiam sequer comer em restaurantes. Não podiam beber água nos bebedouros, ou adquirir uma Coca em um dia de verão no Tennessee. A “Democracia rural”, que não havia em Cuba, havia no Mississipi: Maníacos com tocas na cabeça e tochas na mão, emasculavam e enforcavam meninos negros. No Brasil, naquele ano de 1964, um Golpe militar com apoio norte americano permitiu que as Reformas de Base não fossem a frente: as heranças, as propriedades fundiárias, os imóveis das Classes média e alta ficaram intocados pelo governo. Em um destes imóveis, no Rio de Janeiro, uma pobre mulher negra, era mantida escrava.

Em outubro de 1967, após retornar do Congo, Ernesto acabou executado na Bolívia. Seu corpo foi usado como troféu e seus assassinos, para prazer das classes abastadas do Rio de janeiro, espalharam a sua fotografia. Enquanto isto, a pobre mulher negra cozinhava, limpava o banheiro e cuidava das roupas dos seus senhores. Há 17 anos, era escrava em um imóvel no Rio, cidade que Ernesto, um dia, após a revolução, queria voltar para tomar um banho e uma cerveja. Talvez para que ele nunca achasse estas praias, seus algozes, após a execução, lhe cortaram as mãos.

A pobre mulher negra foi enfim achada, 72 anos após ser confinada, e 55 após a morte de Ernesto. Enquanto Ernesto morreu sozinho em um galpão na Bolívia, ela viveu sozinha, dormindo na sala de um imóvel por mais de 7 décadas. Neste tempo, ela não estudou, não namorou ou casou, ou teve filhos. Só podia sair de casa para ir na feira. De acordo com a fiscalização do trabalho, aos 84 anos, ela tem problemas de saúde, mas era mantida nas tarefas da casa. Os pais desta pobre alma trabalhavam em uma fazenda no interior do Rio, que pertencia à aristocrática família Mattos Maia, quando ela foi levada, com apenas 12 anos para a capital. Tratada como uma propriedade por toda a vida, dormia em um sofá, na sala. Hoje denota completo desconhecimento do mundo, e só fala quando o patrão André Mattos Maia, permite.

Mattos Maia foi uma das famílias que não teve seus interesses atingidos, graças ao Golpe de 1964, que impediu as reformas de Jango. Duas destas reformas, eram a agrária e a urbana.

E por que lembrei de Ernesto? Porque um dia, o argentino disse que haviam coisas muito mais cruéis do que fuzilar um estuprador ou um traidor da nação. Entre elas, com certeza, estava manter alguém como escravo, como coisa. Para Ernesto, aquele argentino de alma cubana, havia gente que não merecia viver. A vida, tão bonita quanto uma cerveja na praia, era para quem a merecia.




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