Escravizadas no século 21

Escravizadas no século 21

Mulheres e meninas escravizadas no século 21
 

Não estamos falando aqui de “Contos de Aia”, embora a atmosfera de violência fundamentalista nos remeta ao livro de Margaret Atwood e à série arrepiante na TV. É do Brasil bem brasileiro que se trata, aquele onde uma menina é violentada sistematicamente pelo tio desde os 6 anos de idade, engravida aos 10, enfrenta a recusa de médicos em atendê-la - ironicamente chamada de objeção de consciência  - e o assédio de grupos político-religiosos que a querem mártir do dever divino da reprodução feminina. Um vereador do PSL, que faz parte de um desses grupos, chegou a invadir a casa da menina para pressionar e ameaçar a avó, para que ela não permitisse o aborto. 

Mas a garota não desiste, viaja 2 mil km - de São Mateus (ES) para Recife (PE) a fim de realizar o procedimento legal e imprescindível à sua saúde. Tem então sua identidade e o endereço do hospital expostos por extremistas de direita nas redes sociais, e é forçada a entrar no hospital fechada no porta-malas do carro para evitar os fanáticos que ali estão e chegam a chamá-la de “assassina”

Ofensas gritadas para uma criança que, apesar do inferno que vive há 4 anos, é capaz de expressar sua repulsa com a condição em que foi jogada e dizer não à aberrante gravidez. Tem covardia maior?

Mais de metade das vítimas de estupro no Brasil - 180 por dia, 82% mulheres - têm no máximo 13 anos; a cada hora quatro meninas são estupradas entre nós segundo o Anuário de Segurança Pública do ano passado. As que passam pelo duplo sofrimento de engravidar do estupro, sejam crianças ou adultas, quase nunca tem acesso ao serviço público de abortamento legal como já mostrava uma reportagem da Pública em 2015; no ano passado, o Ministério da Saúde registrou 6 internações por dia de crianças e pré-adolescentes que abortaram depois de estupradas - tanto em procedimentos hospitalares como em abortos espontâneos ou, mais frequentemente, feitos fora dos hospitais. Segundo a Organização Mundial de Saúde, 70 mil mulheres morrem por ano em decorrência de abortos inseguros - forçados à clandestinidade -, 95% delas na América Latina e no Caribe. 

A punição imposta às mulheres que já foram vítimas de violência extrema e que, mesmo quando conseguem o aborto legal, passam por um calvário para realizar o que é seu direito, talvez seja a face mais cruel da sociedade patriarcal em que vivemos. É essa sociedade que chama criminosos de “tarados” e estupradores de crianças de “pedófilos”, tratando-os como aberrações, incapazes mentais enquanto criminaliza a mulher que aborta, não raramente acusada, mesmo quando criança, de seduzir o estuprador. Por isso tantas se calam, como mostra a necessária e chocante reportagem feita pela Pública trazendo uma série de meninas abusadas há décadas por um homem de grande prestígio social na comunidade, no interior de Minas Gerais.

A violência fundamental, que dá origem a todas as outras - incluindo o estupro e a recusa do aborto -, é a escravização de meninas e mulheres, que continuam sem autonomia sobre seus próprios corpos. São tratadas como “coisas”, alienadas de si mesmas, exatamente como os escravos do passado. Por isso não há como combater abusos e crimes sexuais sem educação e políticas públicas para mulheres, gestadas em um debate democrático liderado pelas feministas, aliás, praticamente as únicas a se manifestar em defesa do direito legal da menina no hospital de Recife. Tudo o que este governo nega, o que ressalta a futilidade das declarações da ministra Damares Alves dizendo combater a “pedofilia”. Se fosse sério, o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos teria apoiado a menina em sua decisão de abortar na primeira dificuldade, clamado pelo cumprimento imediato do direito legal da criança, e condenado claramente o assédio a ela e à sua família, além do vazamento de seus dados e de seu prontuário médico (sabiam até o peso do feto!). 

Em vez disso, Damares postou fotos nas redes sociais posando com deputados em São Mateus, onde disse ter ido “acompanhar o caso” e soltou uma nota onde segue a estratégia do governo Bolsonaro: a de acusar os outros de fazerem o que ela mesma faz. “Utilizaram, de forma irresponsável, a dor de uma criança e de uma família em prol de bandeiras ideológicas que em nada contribuem para aperfeiçoar os mecanismos de proteção da infância”, disse, reagindo aos que a criticaram. 

Ainda não está claramente estabelecida a ligação de Damares com o grupo que assediou a menina, apesar da proximidade política com os difamadores. Também não se sabe o que afinal ela foi fazer em São Mateus - defender a menina é que não foi - nem quem vazou os dados da garota, o que está sendo investigado pelo Ministério Público. O que sabemos é que são as bandeiras ideológicas deste governo - e da ministra Damares - que estão impedindo o combate ao machismo que mata, tortura, estupra e pune mulheres. Que a força da menina de São Mateus nos inspire a não desistir de lutar pelo fim do cativeiro. 

Marina Amaral, codiretora da Agência Pública

 

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