Espelho do conhecimento ocidental
‘Universidade brasileira ainda é um espelho do conhecimento ocidental’, diz 1º doutor guarani da UFRGS
Espaço para conhecimentos dos povos indígenas ainda está sendo construído no ambiente acadêmico
11/02/2024
O primeiro doutor guarani da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foi diplomado pela Faculdade de Educação (Faced) em janeiro deste ano. Isael da Silva Pinheiro veio da Terra Indígena São Jerônimo, no Paraná, estudar em uma das únicas universidades que oferece cotas na pós-graduação. Ao mesmo tempo em que escrevia uma tese sobre pedagogia indígena, Isael precisou lidar com as imposições de uma metodologia ocidental no ambiente acadêmico.
“Arandu: A Pedagogia Guarani das Belas Palavras” é o título do trabalho defendido por Isael. “Na nossa língua tradicional guarani, arandu significa conhecimento e sabedoria”, explica o doutor. Em seu trabalho, ele construiu elementos teóricos para sistematizar a educação de seu povo, buscando contribuir com a organização dos currículos escolares. “A lei 11.645 estabelece o ensino de história indígena nas escolas. E o primeiro contato com esta pedagogia é trabalhar com os conhecimentos que são produzidos nas comunidades, na tekoa [aldeia]”, argumenta.
Mas o espaço para os conhecimentos dos povos indígenas ainda está sendo construído no ambiente acadêmico, onde as teorias e a metodologia ocidentais são o padrão. “Nós somos intelectuais indígenas”, diz Isael. “Temos uma epistemologia própria. Mas chegamos aqui e somos inseridos dentro dessa filosofia de mundo mais ocidental. A universidade brasileira ainda é um espelho do conhecimento ocidental, prioriza a questão do conhecimento científico. É preciso dialogar com outros intelectuais, respeitando seus modos próprios de produzir conhecimento”.
Na educação básica, para Isael, a pedagogia ocidental também avança sobre o modo indígena de ensinar e de aprender. “Quando a escola chega nas aldeias, ela vem num padrão. Ela é planejada de cima para baixo, muitas vezes não respeita os conhecimentos produzidos a partir dos mais velhos. Ela trabalha somente com conhecimento científico, a formação para o mercado de trabalho, enquanto a educação tradicional é para a vida, para viver na comunidade. Há, no primeiro momento, esse choque”, alega.
Conhecimentos sobre cosmologia, astronomia e geografia são passados de geração em geração de forma oral na tekoa, onde a escola não é restrita a um prédio. “A escola envolve todo o território, então todos os espaços fazem parte dessa educação tradicional”, diz Isael. Para o pesquisador, uma forma de adaptar as escolas a esse modo de ensinar é evidenciando o papel dos mais velhos. “É toda a comunidade estar participando junto na construção do currículo e das práticas pedagógicas, preparando material didático que envolva essa epistemologia guarani e indígena”.
Reserva de vagas não garante permanência
O Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da UFRGS já concedeu treze títulos de pós-graduação stricto sensu para indígenas, sendo dez mestrados e três doutorados. Em 2016, o programa instituiu a reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos ou pardos, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, pessoas surdas, travestis ou transexuais, refugiados ou com visto humanitário e migrantes em situação de vulnerabilidade social. Na seleção de 2023, foram disponibilizadas 85 vagas de mestrado, das quais 38 (44,7%) eram fruto do sistema de reserva de vagas. O edital para ingresso no doutorado ofereceu 50 vagas, 21 delas (42%) para ações afirmativas.
O ingresso de indígenas na pós-graduação da UFRGS, de certa forma, está garantido – o que atrai esse público para os programas da universidade. No entanto, conforme Isael, ainda há muito o que fazer para que o ambiente acadêmico seja acolhedor para essas pessoas. “Os grupos de pesquisa estão muitas vezes fechados para o diálogo, para a troca de visões de mundo”, exemplifica. “É preciso dar fomento para eventos, fóruns, congressos, com mais recursos para que possamos viajar a apresentar nossas pesquisas”. Isael também aponta a necessidade de concursos públicos específicos para indígenas. “O primeiro passo é termos indígenas ocupando também as outras áreas da universidade, dentro da secretaria, do corpo técnico, do corpo docente. A maioria dos professores são brancos”.
A língua é uma forma de ocupar esse espaço. “É a principal ferramenta de luta e resistência dos povos indígenas”, diz Isael. O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) recentemente reconheceu o guarani no exame de proficiência em língua estrangeira, e outras instituições já haviam reconhecido línguas indígenas brasileiras no acesso à pós-graduação. “A UFRGS também tem que seguir o exemplo da UNILA”, comenta Isael. Os indígenas ainda não podem escrever suas teses e dissertações na língua materna.
“É através da língua que a gente se comunica, aprende e transmite o conhecimento. Nós fazemos um esforço enorme para ler em português. A universidade também tem que se esforçar para aprender essa outra língua. Precisa buscar meios para se adaptar à presença indígena na universidade, valorizando também seu modo de produzir conhecimento”, afirma o primeiro doutor guarani da UFRGS.
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