Espelho para a classe média
Um espelho para a classe média encontrar a Verdade nua
Novo livro do sociólogo Jessé Souza, 'A classe média no espelho', convida o leitor corajoso a se despedir das ilusões a ele vendidas para se ver como realmente é
Na tradicional safra de lançamentos literários das festas, este ano particularmente apática, um livro se destaca pela sua originalidade e pela atualidade do tema. Trata-se de mais um volume da série de análises da sociedade brasileira destinadas ao grande público que o autor, Jessé Souza, de 58 anos, vem desenvolvendo, confrontando teses e desmistificando perspectivas culturais elaboradas no passado por nomes emblemáticos da sociologia brasileira.
Desta vez Souza aponta sua mira para a constituição histórica da burguesia deste país e desconstrói mitos que ‘’perpetuam’’, como ele escreve, ‘’o desconhecimento da classe média sobre si mesma. ’’
O título é um convite irrecusável para quem pertence a esse segmento fundamental na sociedade e não tem medo de olhar para si mesmo sem preconceitos. Ao leitor, ele pede, na contracapa do livro (com um tratamento gráfico de apelo imediato e popular, como nos seus volumes anteriores) que tenha ‘’coragem’’ porque ‘’ às vezes detestamos a verdade que nos mostra que somos diferentes daquilo que imaginamos. ’’
A classe média no espelho – sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade, da Editora Sextante, é o primeiro trabalho inédito do sociólogo, professor titular de Sociologia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e ex-presidente do IPEA (2015/2016), após a publicação do seu best seller, ano passado, A elite do atraso. Um dos livros mais vendidos no fim daquele ano, por sua vez esse veio no rastro de A tolice da inteligência brasileira (2015) e de A radiografia do golpe (2016).
Os eixos dessa viagem de agora ao coração do universo da classe média brasileira são (I) A moralidade da classe média, (II) A construção da classe média brasileira e, por último, A classe média em tempos de capitalismo financeiro.
Antes de concluir o trabalho, numa série de capítulos reunidos sob o título Trajetórias de vida, Souza publica entrevistas, algumas estarrecedoras, outras mais ou menos surpreendentes, um material recolhido a partir de centenas de entrevistas realizadas com pessoas das mais variadas frações da classe média, entre 2015 e 2018, em diversas cidades brasileiras.
Há uma conversa com um CEO de banco (‘’que explica como se compra o mundo’’, escreve o autor, e como essas compras funcionam com políticos e juízes), um gerente de cadeias de lojas, um casal brasileiro da zona sul do Rio de Janeiro que vive como se morasse em Oslo, um gerente de uma fazenda, um publicitário, um corretor imobiliário, uma aposentada arrependida e um engenheiro que virou motorista de Uber entre outros personagens retratados por eles mesmos.
Alguns, racistas de classe; outros protofascistas, uns eleitores ou de Lula, de Marina Silva, de Freixo ou Bolsonaro. Uns cínicos, outros ingênuos levados pela conversa da elite que os manipula e os ilude. Todos com a inteligência ‘’sequestrada’’ pela manipulação da mídia e da alta burguesia. São fiéis representações classistas dos cães de guarda de ambos – da mídia e da chamada elite que ‘’vampiriza a sociedade e a massa da classe média. ’’
Em entrevista concedida há dois meses ao Le Monde Diplomatique Brasil, Jessé fala sobre o que chama de ‘’racismo de classe’’ que funciona de modo invisível e, precisamente por conta disso, de modo muito eficiente. ‘’Admira-se o bom gosto de quem entende de vinhos, de quem anda de modo elegante, de quem fala de modo articulado, de quem se expressa sem dificuldades. Isso cria uma “solidariedade” imediata e invisível entre todos que compartilham desse “estilo de vida”.
‘’Cria também’’, diz ele, ‘’uma animosidade e um preconceito contra todos os animalizados que não compartilham do mesmo mundo. Assim, o “racismo de classe” funciona de modo invisível e, precisamente por conta disso, de modo muito eficiente.’’
O primeiro mito desmontado neste novo livro é o de que a massa da classe média é definida exclusivamente pela sua renda. Jessé vai além das teorias sociais que se baseiam apenas na esfera do dinheiro e do poder e faz uma análise mais profunda das ideias e dos valores morais dessa parcela da população - como registra a apresentação da Editora.
O segundo mito demolido é a concepção cultural do brasileiro como vira-lata, inferior, ignorante, emotivo e corrupto por natureza, em ‘’grande medida devido à origem católica e ibérica. ’’Esse vira-lata é percebido como que ‘’dominado pelas emoções e, portanto, animalizado e improdutivo.’’
Seria o avesso do mito da moralidade da classe média americana protestante, trabalhadora e honesta. Mentiras que a elite e seus intelectuais inventaram para melhor doutrinar e manipular a classe média brasileira.
Jessé reconstrói também a história dessa classe no mundo e no Brasil, e reflete sobre a posição que ela assume na relação com a elite e as classes populares no país.
Enfim, o objetivo do livro é criar ‘’um espelho no qual as visões de mundo mais características dessa classe social possam ser vistas de um modo novo e desafiador. Não se pede do leitor qualquer conhecimento prévio; apenas coragem para olhar para si mesmo despido de preconceitos, ’’ anota a Editora.
Na apresentação do volume é evocada a parábola judaica do encontro da Verdade com a Mentira quando, depois de ludibriar a primeira, a Mentira viaja ao redor do mundo vestida com as roupas da Verdade.
Pois no fundo desse espelho de agora o leitor vai encontrar a verdade sobre a classe média deste país.
Finalizado antes das eleições deste ano, nas últimas linhas Jessé Souza observa: “O ódio cego tomou conta de grande parte da classe média e de setores populares. Jair Bolsonaro surfa nessa onda de ódio e violência irrefletidos.’’