Esvaziamento do Enem 2022

Esvaziamento do Enem 2022

Enem 2022: o que explica a fuga de alunos e o esvaziamento do exame?

Com 3,4 milhões de inscritos, provas mantêm tendência de queda na procura. Especialistas culpam corte de verbas, desestímulo oficial, pandemia e crise econômica

Silvia Pires 04/12/2022


Ano após ano, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mostra uma crescente evasão no número de jovens que disputam o acesso às universidades. Não é à toa que os 3,4 milhões de inscritos na edição deste ano representam um dos menores volumes em mais de uma década, desde que o exame se tornou a principal porta de entrada para o ensino superior no país. A falta de perspectiva em relação aos estudos e a deficiência de políticas públicas que apoiem os estudantes estão entre os principais motivos, apontados por especialistas, para esse esvaziamento, que se intensifica ao longo dos anos. Uma queda que escancara os retrocessos da educação do Brasil.

Neste ano, 3.476.226 pessoas se inscreveram nos dois modelos do Enem, impresso e digital. São 5.325.616 a menos do que em 2014, ano em que o exame atingiu a maior quantidade de candidatos: 8.722.248. Uma redução de quase 61%. As inscrições para as provas de 2022 ficam atrás até mesmo do período anterior ao formato atual da prova. Em 2008, quando o objetivo do exame era apenas testar os conhecimentos dos concluintes do ensino médio, foram registradas 4.018.070 inscrições. Foi somente a partir de 2009 que o Enem passou a valer como processo seletivo para as principais universidades públicas do país. E os números começaram a despencar a partir de 2017.Em Minas Gerais, a quantidade de inscritos também vem caindo e é a menor desde de 2009. 

Foram 301.350 candidatos mineiros em 2022, mais de 70% a menos do que em 2014, quando ocorreu o pico de inscrições (1.057.521) no estado. Mesmo na comparação com o ano passado, a redução foi grande: houve queda de 19,28%.

Além da queda no número de inscritos, o Enem 2022 também teve uma das maiores taxas de abstenção da história: 32,4%, alta mesmo considerando a edição de 2020, quando 55,3% dos inscritos não participaram no primeiro ano da pandemia. Já a versão digital do exame teve taxa de abstenção superior a 50% nos dois dias de prova, para um total de 66.544 candidatos. No primeiro dia, 51,3% faltaram, enquanto no segundo houve 55,1% de abstenção. Em Minas, 30,2% dos candidatos não compareceram para a aplicação impressa e 53,8% faltaram à prova digital.

Para o professor Luciano Mendes de Faria Filho, mestre em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a evasão do Enem é apenas a ponta do iceberg. “Há uma série de fatores que colaboram para essa redução crescente de inscrições no Enem. Nos últimos anos, tivemos uma verdadeira política de desincentivo à entrada de jovens no ensino superior”, avalia

Esse desestímulo veio, segundo Luciano, não apenas pelos cortes de orçamento para as universidades, mas, também, por declarações de governantes. “Por exemplo, a fala do ex-ministro da Educação de que universidade deveria ser para poucos... Isso tem um impacto simbólico muito grande para os jovens que almejam fazer o ensino superior, especialmente aqueles de baixa renda”, aponta.

Alunos sentem reflexo de aulas remotas

A estudante Camila Natália Santos, de 17 anos, está no segundo ano do ensino médio, mas, apesar da proximidade da conclusão dessa fase da vida escolar, não tem expectativa de prestar o Enem. Ela relata se sentir atrasada depois de passar quase dois anos estudando em casa. “Ninguém aprendeu nada. Todo mundo passou, porque olhava na internet e fazia as atividades em cima disso. Eu mesma fui uma dessas pessoas. Mas, se perguntar hoje, ninguém sabe o que aprendeu, não sabe fazer uma conta. Foi uma situação que prejudicou todos”, avalia, em tom de desânimo.

Camila e a amiga Júlia Beatriz Silva, de 15, sonham em cursar medicina, mas veem seu objetivo muito longe de se tornar realidade. “É complicado sonhar grande na situação em que a gente vive. Precisa fazer o Enem para passar em medicina, e eu acho a prova muito difícil, não me sinto preparada”, afirma. Júlia também reclama da falta de suporte durante o período de aulas remotas. “Eu não assistia às aulas on-line porque não entendia nada. Não tinha explicação do professor”, disse.

Matheus de Almeida, de 17, foi outro que decidiu adiar os planos de entrar na faculdade. “A gente não tem incentivo como os meninos da escola particular têm. Não me inscrevi para o Enem este ano, porque não me sentia preparado”, disse o jovem, que conclui o ensino médio no fim deste ano e espera conseguir uma vaga no ensino superior federal para cursar direito. Durante a pandemia, ele diz ter sentido mais forte o medo e a sensação de “não dar conta”. “Ninguém da minha família tem faculdade. Às vezes, me pergunto se realmente vale a pena. Não tenho dinheiro para pagar cursinho, então, vou ter que me virar para estudar”, afirma.

O desalento de Camila, Júlia e Matheus expõe a falta de estrutura e recursos de escolas públicas, especialmente superados os momentos mais críticos da pandemia de COVID-19. Porém, o acúmulo de defasagens na aprendizagem vem desde a alfabetização. No ensino médio, o percentual de estudantes que abandonaram instituições na rede pública saltou de 2,3%, em 2020, para 5%, em 2021, conforme aponta o Censo Escolar da Educação Básica. A taxa de aprovação também caiu: de 95% para 90,8% em relação ao ano de 2020. Em Minas, a porcentagem de alunos que concluíram o ensino médio em 2019 foi de 68,9%.

Não foi a pandemia que criou problemáticas como evasão escolar e distorção entre idade e série escolar no Brasil, mas, segundo especialistas, a crise sanitária certamente agravou o cenário, com o fechamento de escolas e a adoção forçada das aulas on-line. “Uma política pública vai retroalimentando a outra. Quando uma engrenagem para, afeta todos, incluindo o Enem”, declara o professor da UFMG Luciano Mendes de Faria Filho.

O baixo número de estudantes que concluem a educação básica está relacionado a outro problema: a situação econômica das famílias. Muitos alunos deixam a escola pela necessidade de complementar a renda em casa. “Apenas cerca de 30% dos jovens que entram na educação básica de fato chegam a concluir o ensino médio. Isso escancara um cenário de desigualdade. Com a crise econômica, as pessoas começam a ficar ainda mais desestimuladas com o futuro”, avalia a professora Maria Teresa Gonzaga Alves, doutora em educação pela UFMG.

Essa realidade escancara a falta de políticas públicas mais amplas para incentivar esses jovens e de perspectivas sobre o ensino superior, apontam especialistas. "À medida que as pessoas passam fome, a primeira preocupação não é com a escola. Se os pais ganham um salário melhor, isso permite que as crianças e os adolescentes possam se dedicar aos estudos”, aponta Luciano Faria Filho.

Falta de perspectiva e a geração nem-nem

Ao mesmo tempo em que cresce uma perigosa desconexão entre a escola e o Enem, a proporção de jovens que nem trabalham e nem estudam atingiu seu maior patamar em 2020: 25,5%, conforme dados da pesquisa Pnad Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Está aumentando e justamente entre os setores mais pobres, o que aponta para um aprofundamento da crise econômica e social do país”, destaca professor Luciano Mendes de Faria Filho, mestre em educação pela UFMG.

Ele ressalta que políticas voltadas para emprego e garantia de um salário digno têm impacto direto na educação. “Vai ser difícil a gente recuperar essa perspectiva dos jovens. Você almeja fazer um ensino superior também porque espera melhorar de vida, sonha ter um projeto de vida melhor. E, hoje, na situação em que estamos, com 30 milhões de pessoas passando fome e em meio a desemprego, isso por si só já é um desincentivo. Muito estudante pensa: 'Para que vou estudar nesse cenário?'”, sinaliza.

Para a professora e doutora em educação Maria Teresa Gonzaga Alves, no entanto, a mudança de formato do Enem também ajuda a explicar a discrepância entre os números de 2014 para cá. “O exame teve uma subida muito rápida, mas isso porque antes tinha outras finalidades que, hoje, deixaram de existir. É o caso, por exemplo, de se usar a nota para conseguir a certificação do ensino médio, entre as edições de 2009 e 2016. Isso fez com que o exame tivesse uma adesão muito rápida”, explica.

O Enem deixou de ser usado como certificado para conclusão do ensino médio em 2017, ano em que 6.731.186 inscrições foram registradas. Outro ponto, segundo a professora, é o fato de a isenção para os alunos de escola pública agora ser concedida apenas uma vez. “Isso faz a pessoa pensar, antes de se inscrever, se de fato tem expectativa de usar a nota”, avalia.

Para o MEC, números “dentro do esperado”

Em entrevista coletiva realizada anteontem, o ministro da Educação, Victor Godoy, minimizou a crescente evasão no total de inscritos no Enem. Para ele, os números estão dentro do esperado. “Não vejo isso como uma questão decorrente da atuação do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, ligado ao MEC). Tivemos um período de pandemia e isso certamente trouxe desafios para o Enem, para toda educação brasileira”, afirmou, destacando, ainda, que o número de candidatos no exame é maior do que o de estudantes concluintes do ensino médio.

Outra possível explicação para a discrepância entre as inscrições ao longo dos anos, segundo Godoy, é o fato de a nota ser válida por um ano. Questionado sobre a queda gradativa dos inscritos, ele levantou a possibilidade de “números inflados nos dados de anos anteriores” e disse que uma investigação sigilosa sobre o assunto já está em andamento.






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