Fábrica de narrativas
FÁBIO GARCIA, A “TRISTE PÁGINA” E A FÁBRICA DE NARRATIVAS
Por João Guató

Houve um tempo em que “triste página da história” era expressão reservada para golpes, massacres, ditaduras, livros mal escritos e carnavais chuvosos. Hoje, porém, em Mato Grosso, ela virou moeda corrente nas falas indignadas de aliados de Jair Bolsonaro. O secretário-chefe da Casa Civil, Fábio Garcia, apareceu em cena como mais um operador da indústria marrom de sustentação política ao governador Mauro Mendes. E, entre uma linha e outra de fidelidade automática, declarou que a prisão do ex-presidente representa “uma grande injustiça”.
Injustiça — eis aí uma palavra que, na boca da coalizão bolsonarista, sofre mais do que tornozeleira apertada. Garcia não hesita: diz não haver “prova de crime algum”, como se o arquivo vivo do governo Bolsonaro fosse um romance de ficção científica e não o manual prático do desmonte institucional, da sabotagem vacinal e das conspirações amadoras que culminaram no 8 de Janeiro.
A VERSÃO DE GARCIA: O “PALADINO” PERSEGUIDO
Segundo ele, Bolsonaro despertou no país “patriotismo, orgulho e amor ao Brasil”. É a velha fatura emocional, aquela dos memes verde-amarelos que serviram de combustível para os rituais de fé cívico-militar: o ex-presidente como comandante moral, pai da Nação e mártir da biografia própria. Na versão de Garcia, milhões choram uma cicatriz aberta — mas nenhuma palavra sobre as cicatrizes deixadas na vida real: nas famílias que perderam parentes por omissão na pandemia, nos povos indígenas, nas instituições atacadas, na democracia sitiada em 2022 e alvejada no 8 de Janeiro.
A OUTRA HISTÓRIA: A INJUSTIÇA QUE O EX-PRESIDENTE PRATICOU
Quando Garcia fala de “injustiça”, fico lembrando da lista. E ela não é pequena.
Injustiça foi desmontar políticas ambientais e abrir a porteira do desmatamento, criando florestas fantasmas de onde antes havia árvores.
Injustiça foi militarizar ministérios, flertar com a ruptura, fomentar desinformação, atacar urnas, desacreditar vacina, e empurrar o país para o abismo institucional.
Injustiça foi transformar o 8 de Janeiro num teatro da insurreição, incentivado nos bastidores, alimentado por meses de delírio golpista, e executado por militantes que acreditaram na promessa de um retorno redentor.
Injustiça foi tratar o povo como massa de manobra enquanto se ocupava, nos bastidores, de planos que hoje aparecem nos autos da investigação.
Se há alguém que escreveu “tristes páginas”, não foi a PF, nem o STF, nem o país. Foi o próprio capitão — com auxílio luxuoso da ala que hoje se diz ultrajada.
O DISCURSO RECICLADO DA ANISTIA
Garcia ainda anuncia que votará pela anistia a Bolsonaro e aos investigados pelos atos de 8 de Janeiro “quantas vezes for preciso”. É o retorno do velho enredo: apagar o incêndio sem investigar o fósforo, reescrever a História no modo fantasia, transformar golpe em protesto cívico e criminoso em perseguido.
A promessa de “corrigir erro histórico”, feita por ele ao Senado, é quase um ritual: a tentativa de salvar o mito, salvar o grupo, salvar a máquina de poder que depende dessa lealdade eterna. Como toda empresa marrom, a narrativa precisa ser repintada toda semana — mesmo que a tinta escorra.
DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA” — O ENCERRAMENTO DE PRAXE
Garcia fecha seu discurso com o mantra bolsonarista: Deus acima de todos, Brasil acima de tudo, força presidente. É o carimbo final, a assinatura sonora da tropa, a liturgia que dispensa fatos, provas e memória.
Do lado de fora, porém, a realidade segue inteira: a Justiça avança, os depoimentos se acumulam, os vídeos não evaporam, e a verdade — embora atrapalhe discursos — insiste em permanecer de pé.
Fico acompanhando essa novela desde o primeiro capítulo, observando: triste página não é a prisão. Triste página é a insistência em reescrever o livro inteiro para proteger o autor do desastre. Mas aí, como todo país que já folheou histórias demais, o Brasil sabe reconhecer — mesmo que tarde — quem foi personagem e quem foi cúmplice.
E como sempre, termino lembrando: injustiça mesmo foi o que Bolsonaro fez com o Brasil. A prisão, essa, é apenas o ponto final inevitável para corrigir as injustiças.
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