Façanhas do mito tradicionalista
As infames façanhas do mito tradicionalista gaúcho
O Brasil de Fato entrevistou o jornalista e escritor Juremir Machado, autor do livro "História Regional da Infâmia"
Marcelo Ferreira Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) | 19 de Setembro de 2019
“Não há um vínculo que para ser um bom gaúcho pilchado precisa ser conservador”
- Foto: Marcelo Ferreira
Em tempos de Semana Farroupilha, o Brasil de Fato RS entrevistou o jornalista, historiador, professor e escritor Juremir Machado da Silva, autor de “História Regional da Infâmia”, polêmico livro que sacode a mitologia gaúcha. Destaca-se, na sua pesquisa, o destino dos negros escravizados que lutaram ao lado dos farroupilhas com a promessa de liberdade, mas que ao final do conflito foram entregues ao inimigo, as forças imperiais. Ou seja, os que não morreram na emboscada conhecida como Massacre de Porongos viraram escravos da corte brasileira.
Para Juremir, o importante hoje é separar a história do folclore, desmistificando um certo conservadorismo que não precisa se amparar numa visão ideológica preconceituosa. “Posso estar de bombacha e não ter nada contra gays, eu posso estar de bombacha e ser gay”, afirma.
Brasil de Fato RS: Como você caracteriza o que hoje é chamado de Revolução Farroupilha, celebrada com orgulho pelos gaúchos?
Juremir Machado da Silva: A chamada Revolução Farroupilha foi uma rebelião de fazendeiros e de militares insatisfeitos com o poder central. Foi, como se diz, uma revolução de proprietários, atendia exclusivamente aos interesses da elite agrária da época, nada mais do que isso. Era um grupo de fazendeiros descontente com a política tributária do império e um grupo de militares que estava aqui porque tinha se envolvido nos episódios da abdicação do Imperador D. Pedro I, e foram colocados na “geladeira”. Juntou a insatisfação desses militares com a insatisfação dos fazendeiros, gerou um caldeirão e resultou nesse episódio que inicialmente era pra ser um episódio passageiro, uma forma de fazer pressão. Não se esperava que fosse durar 10 anos e não era republicano no início. Mas a história é assim, começou daquela maneira e foi tomando outro rumo. Tornou-se republicano, precisou incorporar escravos nas tropas militares, prometer liberdade, sem ser abolicionista. Foram surgindo, no percurso, situações novas que demandaram improvisações.
BdF RS: Neste ano o MTG escolheu como tema dos festejos farroupilhas “Vida e Obra de Paixão Côrtes”, em homenagem a ele, que faleceu ano passado. Comente.
Juremir: Eu gostava do Paixão Côrtes. Ele era meu conterrâneo de Santana do Livramento, era um folclorista talentoso, não tenho nada contra ele. São coisas diferentes. Uma é uma admiração, um culto ao imaginário agropastoril riograndense. Não tenho nada contra a não ser nos aspectos ideológicos de conservadorismo. Eu mesmo sou da região da Campanha, então, assim, eu também tenho a admiração pelo homem a cavalo, pela vida do campo, pelas lidas campeiras. Todo esse imaginário, não tenho nada contra, é o imaginário da minha infância, e o Paixão Côrtes, de certa maneira, representa isso.
Outra coisa é a Revolução Farroupilha que se liga com isso na medida em que se foi buscar o mito fundador, que se foi buscar um acontecimento épico para irrigar a participação dos movimentos de hoje. Então, eu diria, são duas coisas: a vontade de se reunir em acampamento, de cultuar o ideal, tudo isso eu acho útil socialmente, é o que Michel Maffesoli chamaria de tribalização do mito, pertencer a alguma coisa, vibrar em comum, se sentirem em grupo, ter rituais, as pessoas precisam disso, funciona. Agora o mito fundador não é exatamente o que as pessoas acham que ele é, o que ele foi. A Revolução Farroupilha historicamente não é o que muitos dos tradicionalistas dizem que ela foi.
BdF RS: Como foi sua pesquisa, que destacou a traição aos negros em Porongos e deu origem ao seu livro “História Regional da Infâmia”?
Juremir: Foi uma longa pesquisa, muitos anos de trabalho, mais de 17 mil documentos para contar a história da Revolução Farroupilha a partir de um outro ângulo: o dos negros que foram massacrados em Porongos. Quem eram esses negros? Por que eles lutaram com os farroupilhas? E onde foram parar os negros que caíram prisioneiros? Essas respostas não eram dadas corretamente do ponto de vista documental.
Por exemplo, dizia-se que os negros farrapos tinham sido incorporados no exército regular com a consequente libertação. Eu descobri uma documentação do Arquivo Nacional provando que eles foram levados para o Arsenal da Marinha e lá eles se tornaram escravos da nação. O império indenizou os donos daqueles escravos que eram imperiais, que reclamavam a devolução pelos farroupilhas, mas os farroupilhas não queriam que esses escravos permanecessem aqui no Rio Grande do Sul. Eles tinham medo de uma vingança e seria uma traição devolvê-los. Então, o que se costurou foi: os escravos que sobreviveram foram devolvidos pelos farroupilhas, mandados para o Rio de Janeiro. O império pagou os proprietários e ficou de dono.
Tem também a questão do financiamento da Revolução Farroupilha. Eu posso dizer que eu trato de algo que os outros historiadores não tratam, o que eu chamo de “documento infame”, que é o documento que mostra que Domingos José de Almeida vendeu escravos no Uruguai para financiar o trem da guerra da revolução, em 1836. O trem de guerra é munição, cavalos, comida, fardamento, tudo. A revolução não tinha dinheiro e o Domingos José de Almeida, que era rico, vendeu 35 para custear a revolução. Naquele momento, então, não se pode dizer que era uma revolução abolicionista, que na verdade nunca foi. Inclusive porque ela se alimentou da venda de negros para se financiar e depois, quando Domingos José de Almeida brigou e rompeu com a revolução, ele foi lá e cobrou ressarcimento.
Juremir: Sim, isso é verdade. Quando terminou a guerra civil, uma das reivindicações era que houvesse indenização para aqueles que tinham tido grandes prejuízos nos anos de guerra. Então o império concedeu uma verba indenizatória. Essa verba indenizatória foi administrada e distribuída pelo Antônio Vicente da Fontoura, que recebeu esse dinheiro e reuniu as pessoas durante quatro dias, que ele chamou de “Os 4 dias do inferno”, onde ele, então, recebeu cada um para determinar que parte caberia. As pessoas precisavam apresentar notas e foi um festival de notas frias, todo mundo foi indenizado. Até Bento Gonçalves, a grande maioria foi indenizada, recebeu uma compensação pelos gastos que tiveram durante a revolução.
BdF RS: E a participação da mulher na Revolução Farroupilha?
Juremir: Numa sociedade escravocrata, machista, ressalvado o caso destacado da Anitta Garibaldi, a participação era marginal. Os homens não davam esse espaço, não estava nos valores da época, no imaginário da época. A historiadora Ilda Flores se interessa muito pelo papel da mulher no Século 19. As mulheres que não tiveram um papel muito forte, digamos assim, como personagens fundamentais, andavam nos acampamentos servindo aqueles homens de todas as maneiras, sexualmente inclusive. Eles exigiam isso. Também cuidando deles como se fossem figurantes de um episódio dantesco, em que se precisava de bastidores. Então elas estiveram lá, se poderia dizer assim, servindo cama e mesa.
BdF RS: Bento Gonçalves, David Canabarro, general Neto, são os heróis da revolução. Heróis do que?
Juremir: Eles são as figuras, os ícones de uma guerra civil que olhada à luz de lupa tem mais de, digamos assim, tragédias do que de heroísmo. A guerra civil teve de tudo, às vezes um grupo tombava prisioneiro e era executado sumariamente, eles eram impiedosos. Teve execuções sumárias, saques em fazendas, estupros, corrupção, muita corrupção. Então, teve algumas batalhas em que homens mostraram valentia, heroísmo. Mas também teve muita vilania, muita covardia, muita crueldade, muita ganância, muito egoísmo, muito jogo de poder em nome de poucos. Se chama Revolução Farroupilha, mas foi uma guerra civil que opôs uma parte da sociedade, que acabou se tornando republicana, e outra parte que não aderiu e se manteve imperial. É como se, hoje, uma parte do Rio Grande do Sul se rebelasse contra o poder central e a outra parte dissesse “nós continuamos brasileiros”. Foi o que fez a parte urbana do Estado: Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre, as grandes cidades não eram farroupilhas, eram imperiais.
BdF RS: Levando em conta que muitas pessoas e setores críticos aos festejos farroupilhas acabam participando da celebração, como conciliar cultura, tradição e folclore de uma forma saudável?
Juremir: É uma bela questão. Precisaria, de um lado, aceitar a história sem idealizações e, por outro lado, sustentar que o folclore tem valor, mas não precisa se amparar numa visão ideológica preconceituosa. Eu posso me vestir de gaúcho, usar pilcha, ir ao acampamento, mas eu não preciso ser homofóbico ou racista. Posso estar de bombacha e não ter nada contra gays, eu posso estar de bombacha e ser gay. Então, tem que separar essas coisas.
Como eu te disse, tenho admiração pela vida no campo, as lidas campeiras, o homem a cavalo, acho bonito. Agora, quais são os valores na cabeça desse homem, esse “centauro dos pampas”? Se for um homem sem preconceito, de espírito aberto, se ele não for homofóbico, não for racista, está ótimo! Não há um vínculo que para ser um bom gaúcho pilchado precisa ser conservador.
BdF RS: Apesar de alguns acharem que sim…
Juremir: Até pode ser conservador, o que não pode é ser preconceituoso. Se quer conservar um modo de vida, as tradições gauchescas, tudo bem, mas não conservar preconceitos.
BdF RS: No seu livro, você fala de imaginários. Que forças você acredita que precisariam ser confrontadas para que o imaginário gaúcho fosse revisto? Ou então, será que algum dia, por exemplo, nossas crianças terão aulas mais críticas sobre esse assunto?
Juremir: Com certeza terão. Elas já têm. A coisa está mudando. Hoje, por exemplo, salvo poucos grupos, há uma visão praticamente hegemônica de que houve o Massacre de Porongos. A Revolução Farroupilha hoje contada na academia, por exemplo, não é a visão dos acampamentos, e cada vez mais nas escolas ela é uma narrativa mais crítica. É possível dizer que houve momentos de coragem, momentos de grandes batalhas, de valentia? Sim! É possível até dizer o seguinte: os farroupilhas tinham razão na insatisfação com o império. Sim, o império não estava sendo justo com a província. Mas daí justificar valores reacionários de hoje com supostas façanhas da Revolução Farroupilha, isso não se pode aceitar. A Revolução Farroupilha não pode ser idealizada, reinventada, tomada como mito fundador para justificar ideologias retrógradas de hoje.
BdF RS: Você fala que nas escolas já existe uma certa mudança. Será que o que temos basta ou outras forças precisariam ser movimentadas? Por exemplo, a mídia…
Juremir: Eu acho que na mídia também já há muitos espaços. Por exemplo, tu és mídia, teu jornal vai apresentar uma visão, uma entrevista crítica à Revolução Farroupilha. Tem o Correio do Povo, onde eu trabalho, que dá espaço para quem defende a Revolução Farroupilha e dá espaço para pessoas como eu, que criticam a Revolução Farroupilha. Em época de redes sociais, internet, nós não podemos mais pensar mídia só do ponto de vista da Rede Globo que, sim, tem um enorme poder. Mas tem muitos outros poderes, tem muitas outras formas, hoje, de apresentação das coisas. A grande matéria jornalística do momento é do Intercept, um site. Não é da Globo. Então tem que contemplar isso também e, aos poucos, as coisas vão acontecendo, aos poucos a visão sobre a Revolução Farroupilha vem mudando e vai mudar.
É uma constatação, eu conheço os professores que falam de Revolução Farroupilha nas escolas, e a visão deles é crítica. Outra coisa, eu conheço as pessoas que pesquisam sobre a Revolução Farroupilha nas universidades, são pesquisas muito sérias e que são críticas. Então, me parece que é uma coisa que vai se capilarizando. Hoje a consciência sobre a questão do preconceito racial é muito mais forte do que antes. As denúncias estão por toda parte.
BdF RS: Os festejos farroupilhas passaram a ser oficiais em 1964, no início da ditadura militar. Em 2019, é o primeiro sob o governo Bolsonaro, com os militares no poder. O atual slogan do governo Eduardo Leite é “Novas façanhas”. O tema ganha força política quanto mais perto do espectro da direita e dos regimes autoritários?
Juremir: Certamente. A história não é linear, ela não avança em linha reta, sempre do pior para o melhor, ela pode recuar. Claro que essa visão tradicional criticável da Revolução Farroupilha está associada à ideologia autoritária. Claro que, em tempos de Bolsonaro, há uma tendência a se enfatizar esse lado mais das façanhas, esse lado mais falso. Eu acho que o governador Eduardo Leite talvez faça uma escolha inadequada, não acho que ele seja equivalente ao Bolsonaro. Eu posso não concordar com ele, mas ele é um jovem político liberal democrático dentro das regras do jogo. Acredito que o uso desse slogan para o Eduardo Leite não tenha o mesmo significado que pode ter para os bolsonaristas que queiram aproveitar o momento para lançar a Revolução Farroupilha como um culto, por exemplo, ditatorial.
Juremir: Claro! Acho que não é um bom slogan para o momento. Mas tenho impressão de que, como no Rio Grande do Sul, assim como tudo se refere a Grêmio e Internacional, tudo se refere à Revolução Farroupilha. Então quando se quer buscar alguma coisa para reforçar um determinado momento, a gente vai buscar na Revolução Farroupilha. Eu fico com a impressão de que é um bom slogan num mau momento. Acaba aproximando o Eduardo Leite dos bolsonaristas. Eu mesmo fiz entrevistas com ele em que ele falou, por exemplo, que durante a campanha eleitoral ele apoiou o Bolsonaro com reservas. Eu digo isso no sentido de tentar ser justo, cada qual com seu perfil.
Edição: Marcelo Ferreira