Falsa democracia dos ditadores
A falsa democracia dos ditadores
por Mauri Cruz - 02/01/2025
O discurso de posse do prefeito eleito pelo voto popular, Sebastião Melo, defendendo a ditadura militar é caso que beira ao absurdo e nos faz crer que vivemos em tempos onde as ideias de certos segmentos políticos não guardam nexo com a realidade. Melo tenta nos fazer crer, ser lógico, defender o direito de não ter direitos.
Além disto, a fala é um escárnio ao povo porto-alegrense, porque a ditadura que ele defende, desrespeitou o voto popular, voto esse que deu causa a sua reeleição e posse. Mais absurdo é que tenha ocorrido em Porto Alegre, cidade que sofreu um dos primeiros atos de violência da ditadura de 1964 quando, através da chamada Operação Limpeza, cassou o prefeito Sereno Chase, pondo em seu lugar um interventor, Célio Marques Fernandes. Porto Alegre só voltaria a eleger diretamente o prefeito vinte e um anos depois, em 15 de novembro de 1985, com a eleição do democrata Alceu Collares, falecido há poucos dias.
Mas, já que o prefeito Melo gosta tanto de ditaduras, vou refrescar sua memória trazendo a Lei 5.250 que foi assinada em 1967 pelo ditador General Castelo Branco. Diz a referida lei em seu primeiro artigo: Art. 1º É livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. E assevera: § 1º Não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe.
Nós sabemos o que, na ótica da ditadura militar, eram tidos como processos de subversão da ordem política e social. Qualquer reunião, panfleto, matéria de jornal, discurso crítico ou opinião era motivo para cercear, prender, torturar, assassinar e sumir com os corpos dos adversários políticos. Os ditadores não respeitam a vida das pessoas que divergem de seus interesses. Não nos enganemos. Quem defende um regime ditatorial se vê como o ditador e não como quem será submetido ao autoritarismo que propaga. Nenhuma pessoa, em sã consciência, defenderia o direito de ser subjugada, explorada, torturada, presa sem processo judicial, assassinada. Quem defende a ditadura são os ditadores. Aqueles que se veem detentores do poder sobre a vida das outras pessoas. Aliás, uma das principais características das ditaduras é o desrespeito a qualquer tipo de lei, fica aí um alerta.
Por isso, nas sociedades democráticas, não há lugar para ditadores. É incompatível com o pacto democrático que seja dado um poder maior para um pequeno grupo de pessoas em relação as demais. A democracia presume igualdade de forças, de poder, de direitos e obrigações. A máxima, todos são iguais perante a lei, não cabe nas ditaduras. Em um regime ditatorial não há leis e sim a vontade dos ditadores. Não há regime democrático de direito, devido processo legal, contraditório, dupla jurisdição. Esses estatutos só cabem em regimes democráticos.
Por tudo isso, não é possível relativizar o que fez Sebastião Melo ao tomar posse como Prefeito de Porto Alegre. Em ato solene, ele tentou defender a hipótese de que ditadura e democracia poderiam conviver “democraticamente” num mesmo ambiente político. Isso é impossível. O ambiente político que aceita opiniões contrárias, que respeita a liberdade de opinião e de pensamento, só existe nas democracias.
Por isso, é incompatível, num regime democrático, a tolerância com o pensamento autoritário, antidemocrático. Esse pensamento, em si, violenta o direito a todas as liberdades. E isso não é uma opinião. O Ato Institucional Nº 05 assinado pelo ditador, General Costa e Silva, é prova inquestionável de que, nas ditaduras, não há liberdade de opinião, de organização ou qualquer outro tipo de liberdade. Reproduzo aqui, alguns artigos para comprovar minha afirmação.
ATO INSTITUCIONAL Nº 5, DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968
(…) Art. 2º – O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. § 1º – Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.
(…) Art. 3º – O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição. Parágrafo único – Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.
(…) Art. 4º – No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
(…) Art. 5º – A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II – suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III – proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV – aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de frequentar determinados lugares; c) domicílio determinado, § 1º – O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.
(…) Art. 6º – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
(…) Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
(…) Art. 11 – Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.
Não restam dúvidas, na ditadura não há liberdades.
Espero que, ao reler a infâmia do AI5, o prefeito Melo, refrescando a memória, possa fazer autocrítica e desculpar-se perante toda população porto-alegrense, gaúcha e brasileira. E, caso não o faça, que renuncie ao cargo que a soberania popular lhe concedeu, demonstrando que honra a ideologia que defende. Isto porque, se beneficiar da democracia, defendendo a ditadura, é uma atitude de desonra imperdoável.
(*) Mauri Cruz é advogado socioambiental, educador popular, sócio da Usideias, Diretor Executivo do Instituto de Direitos Humanos – IDhES e membro do CAMP – Escola do Bem Viver.
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2025/01/a-falsa-democracia-dos-ditadores-por-mauri-cruz/