Formação geral de 2.400 horas é viável
Formação geral de 2.400 horas no Ensino Médio é viável e fortalece o Ensino Técnico
Ainda assim, Mendonça Filho e fundações empresariais querem reduzir carga horária da formação geral e da formação técnica
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Na consulta pública realizada pelo Ministério da Educação (MEC), uma das principais reivindicações de escolas, professores e estudantes foi a recomposição da Formação Geral Básica do Ensino Médio para 2.400 horas, com a garantia da oferta das 13 disciplinas escolares (Artes, Biologia, Educação Física, Espanhol, Filosofia, Física, Geografia, História, Inglês, Matemática, Português, Química e Sociologia) em todos os anos e de forma equilibrada. Não obstante necessite de aperfeiçoamentos, o PL n. 5.230/2023 responde a uma demanda social concreta.
Contudo, o relator da matéria, deputado Mendonça Filho (União/PE), desconsiderou os resultados da consulta pública e apresentou texto substitutivo que diminui a carga horária da FGB para 2.100 horas, adotando a falsa justificativa de que o aumento da carga horária da FGB inviabilizaria a oferta de cursos técnicos.
O relator também mantém a contratação de profissionais com “notório saber”, pessoas sem formação na área educacional ou mesmo curso superior, para os chamados “itinerários profissionalizantes”.
Mas será que o ensino técnico realmente seria inviabilizado pelas 2.400 horas de formação geral e sem a contratação por “notório saber”? A resposta é não.
Segundo o Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos (CNTC), os cursos técnicos no Brasil podem ter entre 800 e 1.200 horas: nele constam um total de 215 cursos, a maior parte com carga horária de 1.200 horas (147 cursos), seguidos de cursos de 1.000 horas (27 cursos) e de 800 horas (57 cursos). O CNTC não prevê a existência de cursos técnicos de 900 horas, como quer dar a entender o deputado Mendonça Filho, ex-ministro da educação do governo Michel Temer e pai da atual reforma do Ensino Médio.
Além disso, esses cursos podem ser oferecidos de forma: 1) concomitante (estudante faz o ensino médio numa escola e o curso técnico em outra); 2) integrada (ensino médio e curso técnico na mesma escola e com projeto pedagógico único); ou 3) intercomplementar (ensino médio numa escola e curso técnico em outra, com o currículo pensado de forma unificada).
Dentre essas três possibilidades de oferta, o ensino médio integrado ao curso técnico (EMI) é o modelo com melhores resultados, pois articula a formação geral com uma formação específica e prepara os/as jovens tanto para o prosseguimento dos estudos em nível superior quanto para uma inserção qualificada no mercado de trabalho. Não é à toa que os cursos integrados – modelo ofertado nos Institutos Federais (IFs) e Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) – são os mais procurados pelos/as jovens brasileiros/as.
No Pisa 2022 (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), enquanto a média do Brasil em Matemática, Leitura e Ciências foi, respectivamente, de 379, 410 e 403 pontos; a Rede Federal apresentou 433, 474 e 467 pontos, resultado significativamente superior à média brasileira, mesmo após os grandes cortes orçamentários sofridos desde 2016.
O clamor das escolas e da população brasileira vocalizado na consulta pública do MEC é pela recomposição da FGB para 2.400 horas. Nesse caso, os cursos técnicos integrados teriam uma carga horária de 3.600 horas (2.400 + 1.200 horas).
Isso seria razoável, considerando que esses cursos conferem aos/às estudantes um diploma único que contempla formação geral básica sólida e habilitação profissional técnica de nível médio. Esse modelo de integração curricular é perfeitamente compatível com a promessa do “Novo Ensino Médio” (NEM) de ampliar a jornada escolar para 4.200 horas.
Quem argumenta que a manutenção de 2.400 horas na FGB inviabiliza o ensino técnico, na verdade pretende construir no país um modelo de profissionalização rebaixado via “itinerário formativo” profissionalizante, especialmente por meio de parcerias com o setor privado.
Mendonça Filho e os apoiadores da reforma do ensino médio encastelados nos institutos e fundações empresariais tomam como base para o ensino médio brasileiro um teto de 3.000 horas, das quais apenas 2.100 horas seriam de FGB e as 900 horas restantes seriam de itinerário profissional. Eles ainda preveem a possibilidade de composição da carga horária com 1.800 horas de FGB e outras 1.200 horas de formação profissional, mantendo o que preconiza o fracassado e amplamente rejeitado NEM.
ETrata-se, portanto, da adoção de um modelo substitutivo para o Ensino Médio (curso profissionalizante no lugar da FGB) que vai na contramão das evidências que apontam o sucesso do modelo integrado da Rede Federal nas avaliações em larga escala.
Nas redes estaduais que implementaram o NEM nos últimos anos, a oferta massificada de cursos profissionalizantes precários e superficiais vem se dando por meio da injeção de recursos públicos em contratos com instituições privadas com credenciais acadêmicas questionáveis, seja por meio de telecursos, do EaD ou da contratação de professores sem formação adequada nem vínculos com as escolas.
O ensino técnico não pode ser reduzido a um itinerário ofertado em escolas regulares sem infraestrutura, laboratórios e equipamentos. Tampouco pode ser implementado – como deseja o relator do PL n. 5.230/2023 – por meio da contratação de profissionais com “notório saber” para ministrar disciplinas de formação técnico-profissional.
A noção de “notório saber”, defendida desde sempre pelos elaboradores da reforma de 2017, implica que qualquer pessoa pode lecionar as disciplinas técnicas, o que acarreta prejuízos à formação dos/as estudantes. Nenhuma rede de ensino técnico de qualidade no Brasil admite esse tipo de rebaixamento curricular, que visa baratear a formação das juventudes, sobretudo as mais vulneráveis.
Essa visão deprecia o ensino médio como direito de todos/as e acaba com a possibilidade de uma educação profissional de qualidade. Não é aceitável que 88% dos/as jovens brasileiros/as matriculados/as nas redes públicas de ensino recebam uma formação precária e sejam impedidos de competir em condições de igualdade no mercado de trabalho.
A redução da carga horária da FGB e a contratação por “notório saber” são duas faces de um mesmo projeto: estruturar um modelo de profissionalização no ensino médio simplificado nas exigências de oferta (carga horária e contratação de professores) para criar um novo mercado de cursos a ser explorado pelo setor privado, à custa da formação científica, artística e humanística das juventudes nas redes públicas de ensino.
Assinam este artigo:
Ana Paula Corti (IFSP | REPU), Andrea Caldas (Setor de Educação/UFPR), Andressa Pellanda (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Ângela Both Chagas (UFRGS), Carlos Artexes Simões (CEFET-RJ), Carlota Boto (FE/USP), Carmen Sylvia Vidigal de Moraes (FE/USP), Catarina de Almeida Santos (FE/UnB), Christian Lindberg (UFS | OBSEFIS), Cleci Körbes (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Cristiano das Neves Bodart (CEDU/UFAL), Daniel Cara (FE/USP | Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Elenira Oliveira Vilela (IFSC | Sinasefe | Intersindical CCT), Elizabeth Bezerra Furtado Bolzoni (UECE), Fernando Cássio (FE/USP | REPU), Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva (IFC), Gaudêncio Frigotto (UERJ), Idevaldo Bodião (Faced/UFC), Jaqueline Moll (Faced/UFRGS), Jean Ordéas (FE/USP), Lucas Barbosa Pelissari (FE/Unicamp), Manoel José Porto Júnior (IFSul | Direção Nacional do Sinasefe), Márcia Aparecida Jacomini (Unifesp | REPU), Maria Ciavatta (UFF), Marise Nogueira Ramos (Fiocruz | UERJ), Mateus Saraiva (Faced/UFRGS), Monica Ribeiro da Silva (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Nilson Cardoso (UECE), Rafaela Reis Azevedo de Oliveira (UFJF | ABECS), Renata Peres Barbosa (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Salomão Barros Ximenes (UFABC | REPU), Sandra Regina de Oliveira Garcia (UEL), Sergio Stoco (Unifesp | Cedes | REPU), Thiago de Jesus Esteves (CEFET-RJ | ABECS) e Viviane Toraci (Fundaj)
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