Gaza antes de ser uma prisão
Como era Gaza antes de ser uma prisão?
A maioria dos combatentes do Hamas e dos soldados israelenses não conheceram outra realidade para além da cidade murada, a maior prisão do mundo
NACHO GARCÍA PEDRAZA - 15/10/2023
Esta pergunta poderia ser feita para quase todos os que integram as forças armadas israelenses e palestinas atualmente. A grande maioria deles são provavelmente jovens entre os 19 e os 25 anos, que não têm memória de uma Gaza sem muros, não viram uma Palestina sem checkpoints, sem assentamentos, sem apartheid.
A maioria está interagindo pela primeira vez com alguém do outro lado, através dos canos de suas armas. Já quase não há memória viva de como as coisas costumavam ser, 75 anos depois da Nakba – a expulsão em massa e consentida de centenas de milhares de palestinos das suas casas –, 35 anos depois de um processo de paz que só serviu para estabelecer as bases do regime de ocupação e apartheid que temos agora, 20 anos desde a construção do muro da vergonha – vergonha para todos aqueles que ainda têm a capacidade humana de se envergonharem de que tal coisa exista –, 15 anos desde que Gaza se tornou uma prisão a céu aberto, um experimento de repressão e contenção em massa de dois milhões de habitantes confinados em uma faixa de 40x12 quilômetros.
São jovens que vivem na deterioração lenta e progressiva de algo que sempre parece não poder se deteriorar mais. Nos anos em que lá estive, estas duas ideias ecoavam frequentemente na minha cabeça, como duas contradições permanentes: por um lado, a percepção da urgência, a importância de todas as notícias, a sensação de que tudo pode mudar a qualquer momento – nunca estive num lugar com tanta gente lendo tanto as últimas notícias, consumindo-as avidamente à espera de que algo aconteça –, confrontadas com a lenta deterioração unidirecional de uma opressão imutável, e por outro lado a ideia de um futuro sem fronteiras, de um Estado único, com a imagem de dois povos que em breve não terão mais ninguém para se lembrar de nada, a não ser os muros desta prisão.
Lembro-me também, como outra experiência contraditória, que Gaza, apesar de estar cercada, tinha um ambiente menos denso, mais alegre, e os olhares menos cansados do que na Cisjordânia. Crianças brincando nas ruas, risos, celebrações, um cotidiano alegre que coexistia com a tristeza e a tragédia da sua situação. Não é que isso não acontecesse na Cisjordânia, mas é como se em Gaza você pudesse, em algum momento, vislumbrar a ideia de viver sem ocupação, como se não ter soldados israelenses circulando permanentemente em sua vida mudasse sua visão. Você poderia olhar para o mar e ver o horizonte, mesmo sabendo que não se poderia ir muito longe, não agora. Conversávamos e partilhávamos a sensação de que aquele era um lugar onde se vivia mais perto de se revoltar contra a situação, não apenas por desespero, mas cada vez mais por não ter nada a perder.
Lembro de me envolver muitas vezes na complexidade do conflito, em todas as suas arestas, de experimentar o emaranhado de argumentos a partir de posições equidistantes, com a comparação dos sofrimentos, de recuar historicamente para reconhecer a singularidade dos dois povos e, de vez em quando, de regressar a explicações simples, à descrição simples que os meus filhos me dão agora quando vêem o que existe.
Há os que ocupam e os que são ocupados, os que exercem o apartheid e os que o sofrem. Sem nos darmos conta, nos tornamos parte da lenta deterioração que aumenta a pressão sobre o povo palestino, e perdemos a perspectiva: até onde pode ir esta pressão sem que tudo exploda? Quanto é que eles são capazes de suportar e quanto é que nós somos capazes de suportar, do exterior, como testemunhas de tal opressão? Mais uma vez, volto às análises simples, à frieza de alguns dos muitos números que existem sobre esta ocupação – sem menosprezar a complexidade, que existe – para ter uma perspectiva, e vejo que nos últimos 35 anos este aumento progressivo da pressão tem, a cada 7 ou 10 anos, momentos em que dá um salto, como se fosse libertado ou ajustado, mas visibilizando quem está de cada lado do muro.
1987-1993. Primeira Intifada. 1.374 palestinos mortos, 93 israelenses mortos.
2000. Segunda Intifada. 3.800 palestinos mortos, 600 israelenses mortos.
2007-2008 (Natal) Operação Chumbo Fundido. 1.314 palestinos mortos, 14 israelenses mortos.
2014. Operação Mighty Cliff. 2.200 palestinos mortos, 72 israelenses mortos.
2023. Guerra em Gaza. 1.537 palestinos mortos, 1.300 israelenses mortos (em 13 de outubro).
Estes números simples também me permitem recordar que sofro com todas as vítimas, que tenho amigos em Israel e na Palestina a quem telefono nestes dias para saber como estão, e reivindico que nem um nem outro me faça sentir culpado, porque me afetam igualmente, mas também me ajudam a ver que, até este último episódio, chorei quase 9 mil vezes por uns e 800 vezes pelos outros.
Será que desta vez vai ser diferente? Será que este é mais um momento "de ajuste”, em que a situação de novo tomará outro rumo? Será que a situação se acalmará quando morrerem dez vezes mais palestinos do que israelenses, para seguir a média? Será que vamos aguentar estes números? É certo que esta crise não é como as anteriores; em apenas alguns dias causou mais vítimas em Israel do que nos últimos 35 anos e, em conversas com amigos de lá, tenho a sensação de que há mais apoio popular na Palestina para que se vá até onde seja preciso, que não têm nada a perder, que estão cansados e que há mais indignação com a reação do Ocidente.
Hoje em dia todo mundo me pergunta por esses meus amigos, todos estão preocupados, e eu relaciono essa preocupação com outra que também começou a me assombrar quando estive na Palestina, que é o número de coisas que estão acontecendo por lá e que nós estamos exportando aos poucos, como se ali se experimentasse um modelo específico de enfrentamento a grandes crises, para ver qual é o resultado: o endurecimento dos fascismos, a sua ascensão ao poder, o cerceamento das liberdades de setores da população no interesse da segurança nacional, as explosões de violência em protestos e a utilização destes episódios para silenciar qualquer crítica, para unir aqueles que reprimem a fim de salvar a ordem estabelecida.
Talvez estas ligações não sejam muito precisas, são apenas reflexões, mas servem para preencher a anestesia emocional que por vezes sinto quando leio as notícias, para reduzir a distância entre as imagens que vejo e as que vivi, que não parecem ser do mesmo lugar. Não sei se é por insensibilidade, proteção emocional, choque ou simplesmente distância, mas relacionar os fatos me ajuda a conectar.
Estas recordações, somadas a estas preocupações que retornam agora, têm ainda menos força do que as imagens cheias de vida, de brilho, da Gaza que conheci, que não é a Gaza antes dela ser uma prisão, da qual só tenho as histórias que me contaram. A memória reconstruída não como âncora de um passado que não voltará, mas como força que ajuda a imaginar outros futuros, que não precisam ser os mesmos, e sim melhores do que este presente. São memórias de uma Gaza em que as pessoas olhavam para o mar como se estivessem olhando para um futuro desejável, algo que parecia distante, inatingível, mas apenas por enquanto.
(*) Tradução de Raul Chiliani
FONTE:
https://operamundi.uol.com.br/guerra-israel-hamas/83318/como-era-gaza-antes-de-ser-uma-prisao
O pesadelo militar de Israel, com Breno Altman | Podcast do Conde