Gestão democrática na escola militar

Gestão democrática na escola militar

MILITARIZAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS NO DF: A GESTÃO DEMOCRÁTICA SOB AMEAÇA

Em sequência aos trabalhos e estudos sobre o processo de militarização na educação pública brasileira e todos os transtornos que eles causam, divulgamos o segundo artigo. Com o tema Militarização de escolas públicas no DF: a gestão democrática sob ameaça, Erasmo Fortes Mendonça aponta as circunstâncias que propiciaram a origem do processo de militarização de escolas públicas no Brasil, tomando como exemplo a experiência em curso no estado de Goiás, no sentido de compreender a iniciativa do governo eleito em 2018 de militarização de escolas públicas do Sistema de Ensino do Distrito Federal.

Esta série de trabalhos é produzido pela Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, periódico científico editado pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), e tem o objetivo de difundir estudos e experiências educacionais, promovendo o debate e a reflexão em torno de questões teóricas e práticas no campo da educação.

O sindicato recomenda a leitura deste material para todos(as) os(as) professores(as) que tiverem interesse em aproveitar os trabalhos para pesquisas.

Confira abaixo o trabalho na íntegra:

Vem ganhando corpo no país a discussão sobre a militarização de escolas públicas, fenômeno que tem crescido exponencialmente nos últimos anos. Em geral, os governadores justificam a necessidade da transferência da gestão escolar para a Polícia Militar de seus estados em razão dos bons resultados escolares conquistados pelos alunos dos colégios militares stricto sensu, proporcionando um rigoroso padrão de qualidade expressado pelas avaliações de larga escala como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) ou pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). As supostas credibilidade e eficácia dessas escolas, aliadas ao rigoroso controle disciplinar e ao respeito à hierarquia, além da valorização do civismo seriam razões suficientes para entregar a gestão da escola pública à corporação dos policiais militares. Aliados a esses pretextos, o combate à violência, ao envolvimento com drogas aparentam também povoar o imaginário das famílias como bons argumentos para apoiarem a iniciativa governamental.

Essas eventuais vantagens parecem obnubilar a visão das famílias que, como compensação, nas diversas experiências estaduais de militarização, permitem se aceitar cotas para filhos de militares, processos de seleção para ingresso, pagamento de mensalidades, custeio de uniformes bastante mais caros que os habitualmente usados nas escolas públicas, normas disciplinares extremamente duras, inclusive com adoção de castigos há muito banidos das escolas civis, dentre outros procedimentos típicos das escolas militarizadas, além da interferência dos setores de segurança pública nas políticas educacionais. É importante registrar, no entanto, que as escolas propriamente militares fazem parte de um sistema específico que não é regulado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), uma vez que o seu Artigo 83 dispõe que o ensino militar é regulado em lei específica. Portanto, a comparação da dinâmica escolar de unidades pertencentes a sistemas diferentes, regidos por legislação e normas diferentes nem sempre pode ser eficaz, já que as normativas aplicadas a uma não são necessariamente adequadas à outra. As escolas militares organizam se com base em rígida hierarquia, férrea disciplina, obediência incontestável aos superiores, proibição de determinados comportamentos socialmente normais em outros ambientes, como demonstração de afeto, uso de adereços, cortes personalizados de cabelo, dentre outros elementos que marcam a identidade das pessoas, particularmente em uma fase como a adolescência. O ensino escolar civil, por sua vez, tem seus princípios insculpidos no Artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que inclui, dentre outros, igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais, liberdade de divulgar o pensamento, pluralismo de ideias e, especialmente, gestão democrática.

Apesar de não termos, ainda, um quadro objetivo dessa realidade, com dados atualizados e avaliações fidedignas dos processos de gestão ali instalados, há alguns elementos que podem ser recuperados no sentido de permitir uma visão ainda que parcial do processo de militarização de escolas públicas, tal é a velocidade com que o modelo de militarização tem sido aplicado no país. Um eventual panorama nacional sobre o tema retrataria, apenas, uma informação provisória, uma fotografia de um processo que é dinâmico.

Neste artigo, aponto as circunstâncias que envolveram as origens do processo de militarização de escolas públicas no Brasil, tomando como exemplo a experiência em curso no estado de Goiás (GO), onde o processo tem mais tempo de implantação e está mais consolidado. A seguir, apresento a iniciativa de militarização de escolas públicas do Sistema de Ensino do Distrito Federal (DF) a partir dos marcos regulatórios que a sustentam, da descrição dos mecanismos utilizados para iniciá-lo na forma de projeto piloto em quatro escolas, a expansão do projeto e as dificuldades e contradições dela decorrentes. Por fim, indico alguns elementos que sugerem o confronto das características do projeto aplicado no DF com o princípio constitucional e legal da gestão democrática do ensino público, bem como indicações de estudos e pesquisas que possibilitem obter dados qualitativos que permitam analisar criticamente a militarização como forma de gestão escolar.

ORIGENS DO PROCESSO DE MILITARIZAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS NO BRASIL

O processo de militarização de escolas públicas pode ser analisado no conjunto dos procedimentos que instalam novas formas de organização da gestão educacional e escolar, em particular os processos de privatização que se realizam por meio de parcerias.

Tomarei, para fins de análise nesse artigo, as origens do processo de militarização ocorrido no estado de GO, por ser uma unidade da federação considerada emblemática e pioneira na adoção desse mecanismo, tendo o maior número de escolas militarizadas dentre todo os estados e o DF.  Em um artigo que analisa a expansão dos colégios militares em Goiás, Alves, Toschi e Ferreira apontam que foi nos mandatos do governador Marcone Perillo (1999-2002; 2006-2011 e 2015-2018) que o processo foi iniciado e consolidado. A primeira iniciativa se dá com a solicitação ao Conselho Estadual de Educação de GO para autorização da oferta de Ensino Fundamental e Ensino Médio na Academia de Polícia Militar. Essa situação não se caracteriza, ainda, como militarização de escola pública, já que se tratava de uma Escola da Polícia Militar propriamente dita, ainda que a solicitação incluísse a admissão de matrículas de servidores e dependentes legais de funcionários públicos, além de já contar com professores da rede pública de ensino estadual colocados à disposição da corporação policial. No contexto das políticas de segurança pública, várias escolas miliares da PM-GO foram criadas por projeto de lei, cuja mensagem à Assembleia Legislativa de GO citava o atendimento à expectativa da população, que se teria manifestado por abaixo assinado.

Em 2015, a proposição à Assembleia Legislativa de criação de cinco novos colégios em escolas estaduais já existentes se dá como uma reação ao enfrentamento de professores em greve durante um evento oficial em que o governador é vaiado, razão por que é interpretada pelas autoras do artigo como um castigo a professores baderneiros (ALVES, TOSCHI & FERREIRA, 2018). Ainda que a reação do governo ao movimento grevista dos professores possa não ser tomada como motor principal do processo de militarização de escolas estaduais, é digno de nota que, na origem dessa nova forma de organização da gestão escolar nesse estado, haja elementos de reação à autonomia organizativa e controle da categoria de professores. A expansão das escolas militarizadas no estado de GO parece ter contribuído para a criação desse tipo de escolas país afora. Às seis primeiras escolas criadas em GO em 2001 somaram-se outras dezoito em 2013. Até 2018, sessenta escolas militarizadas estavam em funcionamento no estado de Goiás.

A militarização de escolas no estado de Goiás passou a ser objeto desejo de prefeitos que solicitam ao governo estadual que contemple suas cidades co o processo de entrega de escolas públicas à gestão da Polícia Militar. É possível observar que, quando não conseguem convencer o governo estadual, os prefeitos procuram assessorias e Organizações Não Governamentais (ONG) para implantar o regime militar em suas próprias escolas municipais. Em março de 2019, o jornal O Popular divulgou uma reportagem em que situa a militarização de sete escolas municipais em dois anos. As prefeituras, em face de não terem conseguido trazer a militarização de escolas estaduais para seus municípios, decidiram desenvolver seus próprios modelos por meio de leis aprovadas nas respectivas Câmaras Municipais. Para efetivar o processo, as prefeituras contratam policiais militares da reserva para ocuparem cargos de gestão nas instituições de ensino. Como não obtêm aval do Comando de Ensino da PM-GO, as escolas criam fardas e símbolos particulares que fazem alusão ao militarismo, mas diferentes dos utilizados nas escolas estaduais militarizadas.

Como o atendimento em escolas municipais abrange a Educação Infantil e os primeiros anos do Ensino Fundamental, observa-se que a militarização de escolas municipais acaba por atingir crianças pequenas. O município de Moiporá desenvolve a gestão militarizada de escolas até na Educação Infantil. Um deputado, para sensibilizar o governo estadual a apoiar as iniciativas municipais, chega a dizer que o método militar é eficiente até para os bebês, ao observar que uma criança no colo do pai num desfile de 7 de setembro fica praticamente marchando. Ou ainda, “Se colocar ela pequenininha no chão, ela já começa a marchar imitando o soldado da PM. É uma maneira lúdica de incutir esses valores na cabeça dela” (MUNICÍPIOS, 2019).

MARCOS REGULATÓRIOS DO PROCESSO DE MILITARIZAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS NO DISTRITO FEDERAL

O governador do DF, eleito em 2018, Ibaneis Rocha (MDB) não incluiu em seu programa de campanha (PLANO DE GOVERNO, 2019-2022 2018) qualquer referência à militarização de escolas públicas. Na temática da educação referiu-se, dentre outras questões, à reforma de escolas, ampliação de vagas em creches, remuneração de professores, compra de tablets, educação integral, repasse de recursos para atender às necessidades das escolas, criação da universidade pública do DF etc. Ao citar parcerias com o setor da educação, menciona as áreas de esporte, cultura e lazer, sem qualquer referência à segurança pública e suas corporações militares. A inclusão da política governamental de entregar a gestão de escolas públicas à PM parece ter sido um alinhamento político com o governo federal, na esteira das propostas do presidente eleito no ano de 2018.

O plano anunciado pelo governo federal seria inaugurar uma escola militar em cada unidade da federação e, posteriormente, criar na estrutura organizacional do Ministério da Educação (MEC) uma Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico Militares vinculada à Secretaria de Educação Básica para cuidar da preparação de um projeto para ampliar a participação de militares na gestão de escolas vinculadas aos sistemas de ensino.

Aos sete dias de governo, o Secretário de Educação Rafael Parente, ao conceder entrevista ao jornal Correio Braziliense, assim se expressa sobre a militarização de escolas do sistema público do DF: “O governador viu experiências de outros estados e percebeu que os resultados nas notas de escolas militares são superiores aos outros modelos. O estado de Goiás, por exemplo, ampliou esse método e teve bons resultados” (RIOS, 2019).

A partir daí, iniciou-se um processo de organização interna para implantar um projeto piloto de entrega de quatro escolas públicas à gestão da Polícia Militar do DF. A Portaria que dispõe sobre a implementação do projeto piloto denominado Escola de Gestão Compartilhada, pela transformação de quatro escolas em Colégios da Polícia Militar do Distrito Federal, elenca, dentre outros objetivos, a facilitação da construção de valores cívicos e patrióticos, a melhora de indicadores do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), a busca de melhores índices de aprovação em certames externos à escola, a diminuição da evasão escolar.

Sob o nome de Gestão Compartilhada e não de militarização das escolas públicas, o projeto piloto prevê uma estrutura de gestão em que as atividades de direção escolar são divididas em duas vertentes, a Gestão Disciplinar Cidadã, sob responsabilidade da PMDF e a Gestão Pedagógica, sob responsabilidade da SEEDF, ambas possuindo o mesmo nível de hierarquia e submetidas à Gestão Estratégica, esta sob comando da PMDF e cuja estrutura administrativa será disposta em portaria complementar que ainda não chegou a ser divulgada.

A tramitação interna desse instrumento não ocorreu sem traumas. A análise desenvolvida pelo então Subsecretário de Educação Básica, por meio de nota técnica, apontou diversas inconsistências jurídicas e pedagógicas no projeto, considerando que a PMDF deveria atuar junto às escolas pelo resgate do papel histórico do projeto Batalhão Escolar por meio do qual a presença de policiais no entorno da escola poderia garantir um ambiente seguro e favorável ao trabalho educativo que deve ser desempenhado por profissionais da educação e não por policiais militares. O parecer do subsecretário, após ser publicado no Sistema

Eletrônico de Informações (SEI), sistema oficial de circulação de documentos institucionais, ganhou grande repercussão tendo em vista que, por razões diversas, o texto circulou em redes sociais pondo a nu a divergência interna na SEEDF.

Dentre os pontos assinalados como vulnerabilidades do projeto, a nota técnica indicou o desalinhamento com a Lei nº 4.751/2012, que dispõe sobre a Gestão Democrática no Sistema de Ensino do DF, especialmente por não vislumbrar a participação da comunidade na escolha dos responsáveis pela Gestão Estratégica e pela Gestão Disciplinar. Do mesmo modo, o parecer aponta para os impactos que a criação de uma estrutura de pessoal desigual para apenas quatro escolas poderia causar no sistema em face da inexistência de profissionais exclusivos para o acompanhamento disciplinar de todas as demais escolas, recomendando, por fim que fosse feita proposição de programa alternativo com apoio de profissionais da educação, psicólogos e outros, que componham uma equipe multidisciplinar, chamando atenção de que já existiam, à época, várias demandas para autorização de projetos pedagógicos de escolas que não vinham sendo atendidos pela SEEDF.

O jornal online Metropolis publicou, 25 dias depois de iniciado o governo, a notícia de que o subsecretário estava sendo exonerado por criticar o projeto de militarização das escolas. O secretário de educação valeu-se do microblog Twitter para afirmar que “não há mais espaço para deslealdade, desrespeito, fofoca, rebeldia, atitudes vaidosas ou egocêntricas. Jogar em time é tão importante quanto ser íntegro e competente”. Em outra publicação do mesmo microblog, afirmou que cumpriria todas as determinações do governador (VINHOTE; TAFFNER, 2019).

A subsecretária que substituiu o gestor exonerado, provavelmente com a incumbência de dar fim ao processo de desgaste, produziu parecer substitutivo no qual afirmou que o projeto não conflitava com a Lei de Gestão Democrática, que as gestões disciplinar e pedagógica convergiam para um único objetivo, não havendo, por isso, qualquer conflito com os marcos regulatórios da educação brasileira ou local sem, no entanto, apontar qualquer evidência para esse alinhamento com a legislação em vigor. Ao afirmar que o projeto faz parte do planejamento estratégico da Secretaria de Educação, terminou por considerar que o projeto consta no Plano de Governo que foi referendado nas urnas, além de ser um anseio das comunidades locais. Como já visto, no entanto, o Plano de Governo apresentado à sociedade no período de campanha eleitoral não inclui uma palavra sequer sobre o processo de militarização de escolas da rede distrital de ensino. Duas vertentes de inciativas ocorreram no sentido de questionar a legalidade e o mérito da portaria conjunta que dispôs sobre o projeto piloto de gestão compartilhada. A primeira, por iniciativa do Deputado Leandro Grass (Rede Sustentabilidade), apresentando à Câmara Legislativa do DF (CLDF), em 8/2/2019, o Projeto de Decreto Legislativo nº 008/2019, com o objetivo de sustar os efeitos da portaria conjunta, sob argumentos diversos, dentre os quais dispor em sentido contrário ao que determina a Lei de Gestão Democrática ou por não ter sido ouvido o Conselho de Educação do DF (CEDF).

O projeto tramitou nas Comissões de Educação, Saúde e Cultura, com parecer contrário, e na Comissão de Constituição e Justiça, com parecer favorável, mas terminou derrubado pelo plenário da CLDF, tendo por fim o arquivamento em 23/4/2019.

A segunda vertente, por iniciativa do Deputado Fábio Félix (PSOL), contrário à implementação do projeto piloto, e por responsáveis legais de um estudante cuja identificação foi mantida em sigilo em respeito a exigências do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ambos acionaram a Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (PROEDUC) do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) na tentativa de interromper a implantação do projeto.

Em 13/2/2019, foi emitida a Nota Técnica nº 001/2019-PROEDUC/ MPDFT (DISTRITO FEDERAL, 2019), por meio da qual esse órgão se manifestou acerca da legalidade da política pública consistente na implementação do projeto piloto de colaboração da Pasta de Segurança Pública em quatro unidades de ensino da rede pública do DF, ressaltando, no entanto, que excluíram se da Nota Técnica quaisquer abordagens de conteúdo de mérito, uma vez que, pelas atribuições constitucionais, esse órgão não tem legitimidade para formulação ou execução de políticas públicas ou por emitir juízo de valor de escolhas políticas do Poder Executivo.

Para emissão de seu juízo de legalidade, considerou a PROEDUC que a SEEDF e SSPDF expediram a portaria conjunta dentro dos limites regulamentares e da discricionariedade do Poder Executivo, além de estar consoante aos princípios norteadores da educação, em especial o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Além disso, considerou que as escolas não foram obrigadas a aderir ao projeto piloto, uma vez que a imprensa noticiou ter havido reuniões com equipes gestoras e comunidades escolares.

Em continuidade ao processo de organização dos marcos regulatórios para oficialização de um programa que venha a consolidar o projeto piloto implantado em quatro escolas, o governador do DF publicou em 9/4/2019, decreto (GDF, 2019) criando Grupo de Trabalho para realização de estudos para análise, aperfeiçoamento e extensão do projeto Escola Gestão Compartilhada.

O decreto fixa o prazo de noventa dias, prorrogável por igual período, para conclusão dos trabalhos e apresentação de relatório ao governador. Cabe ao GT definir as competências de cada uma das secretarias envolvidas, os critérios de escolha de unidades escolares, os indicadores de avaliação de desempenho, as metas a serem atingidas, o número de cargos em comissão no âmbito da SSPDF, a garantia de liberdade pedagógica dos professores, a edição de normas jurídicas para criação do projeto, analisar modelos já existentes no país e adequação do projeto local ao projeto do MEC, dentre outras.

Chama atenção a composição do GT presidido pelo governador, pela prevalência da SSPDF sobre a SEEDF, a primeira com oito membros e a segunda com apenas dois, num evidente desequilíbrio para um projeto que traz em seu nome a expressão “compartilhada”.

O PROJETO PILOTO EM FUNCIONAMENTO

Feitas essas considerações iniciais que emolduram com elementos históricos e marcos normativos o projeto piloto de militarização de escolas públicas no Sistema de Ensino do DF, é pertinente considerar como se deu sua implementação nas quatro escolas escolhidas pelo governo, indicadas na portaria conjunta. As quatro escolas são Centros Educacionais, cuja modulação atende, em geral, adolescentes e jovens dos últimos anos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio: Ced 3 de Sobradinho, Ced 308 do Recanto das Emas, Ced 1 da Estrutural e Ced 7 de Ceilândia.

Em respeito à norma que reza que as escolas devem manifestar livremente sua adesão ao projeto, nas quatro escolas realizaram-se reuniões abertas denominadas “audiências públicas” e, em sequência, votação formal plebiscitária. Registre-se que as tratativas da SEEDF com as direções escolares ocorreram em pleno período de recesso escolar, com professores e estudantes em férias. O Sindicato de Professores no Distrito Federal (SINPRO-DF) capitaneou o movimento de resistência ao projeto do governo, participando de discussões com professores nas escolas indicadas, fazendo publicações de jornal institucional, panfletos e outros materiais, além de participar de entrevistas e debates nos órgãos de mídia local (CAIXETA; TEIXEIRA; FUZEIRA, 2019; ALCÂNTARA, 2019).

De modo geral, o sindicato representante da categoria dos professores e técnicos em educação elenca em suas críticas o fato de ser utilizado o processo de militarização das escolas como panaceia para atos de indisciplina e, mesmo, de violência no interior das escolas e como metodologia capaz de aumentar significativamente os índices de resultados de aprendizagem medidos pelo IDEB.

No entanto, o processo é visto como um malabarismo para tirar o foco dos reais problemas da rede pública de ensino, que vão da falta de investimentos adequados à falta de equipe pedagógica em número suficiente para fazer frente aos problemas da escola. Ao invés, haveria uma espetacularização da violência como pretexto para a entrada de policiais na escola, de forma atropelada e sem diálogo prévio com a comunidade escolar e com a sociedade, de maneira a levar a população a acreditar que a militarização das escolas é solução para a insegurança cotidiana a que é submetida, sem considerar que a violência é estrutural na sociedade, sendo a escola apenas um reflexo da sociedade onde ela está inserida.

A imposição de rígidas normas disciplinares e de conduta conduzidas por policiais fardados e armados no interior da escola, em postos de gestão escolar, levaria professores e estudantes que não se adaptam a serem excluídos da escola. Até normas que regulamentam a aparência física são impostas, como corte curto de cabelos para meninos e coque para meninas, como o padrão militar; cabelos e barbas bem aparados para professores; vedação de uso de acessórios considerados extravagantes para meninas e professoras; blusa para dentro da calça para estudantes e jalecos até os joelhos para professores e professoras. O punitivismo adotado pelos modelos militares, no entanto, é considerado uma forma de violência pelo SINPRO-DF.

Além disso, o despreparo educacional dos policiais, que poderão ser convocados para terem presença nas escolas, além de ser um desvio de finalidade para profissionais que deveriam cumprir a sua tarefa institucional de garantia da segurança pública dos cidadãos e cidadãs, reveste-se de uma simbologia nefasta para a categoria dos profissionais da educação, porque atestaria serem eles incapazes de superar os quadros de indisciplina e de educar com democracia, respeito, ética e solidariedade.

Os debates que se seguiram nas escolas como etapa para adesão dessas unidades escolares ao projeto piloto do governo foram palco de muitos desentendimentos, com rejeições fundamentadas, mas em todas as escolas indicadas na portaria conjunta, o processo adotado levou à sua aprovação.

No Ced 308, do Recanto das Emas, por exemplo, inconformados com o fato de a reunião que aprovou a realização do projeto piloto na escola ter sido feita após convocação com os docentes em férias e, na sua avaliação, com chamamento direcionado de pais de alunos, um grupo de professores, pais e alunos decidiu fazer nova discussão em que a medida foi rejeitada. O diretor da escola e a própria administração da SEEDF não reconheceram a citada reunião e o projeto permaneceu aprovado. No CEd 07, de Ceilândia, um estudante de 16 anos, que trabalhou pela rejeição do projeto, afirmou que, se quisesse estudar em um colégio militar teria procurado matrícula em uma escola propriamente militar e não numa escola pública. Nessa mesma escola, a mãe de uma aluna votou contra a vontade da filha considerando que o quesito segurança falava mais alto que o entendimento na família. Esses e outros depoimentos e registros de desavenças foram registrados pelos jornais impressos e eletrônicos que acompanharam o processo de discussão e votação nas escolas.

O CONTURBADO PROCESSO DE EXPANSÃO DO PROJETO PILOTO

Passado o primeiro semestre, com a experiência da militarização em curso nas quatro escolas, antes de ser iniciado o segundo semestre letivo, novamente em período de recesso escolar, que impediu qualquer discussão qualificada em função da ausência de professores e estudantes nas escolas, o Governo do DF (GDF) anunciou a expansão do projeto para mais seis escolas. Mais uma vez, deflagraram-se críticas ao governo a partir da representação sindical dos professores e de gabinetes de parlamentares distritais, tendo-se formado, inclusive, um Observatório da Militarização de Escolas ,com participação de gabinetes parlamentares, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seção DF, de entidades da sociedade civil e de personalidades do campo da educação e da defesa dos direitos humanos. Essa iniciativa resultou na redação de uma carta aberta assinada por inúmeras entidades e personalidades, manifestando a contrariedade com a intervenção militar nas escolas públicas do DF e solicitando que o governo garanta o direito de educação a todos, optando por implementar modelos pedagógicos que tragam resultados concretos para demandas que são usadas como justificativa para alocação de policiais dentro das escolas (ROCHA, 2019).

Como resultado da decisão governamental, as seis escolas passaram por eleição para decisão plebiscitaria sobre aceitação ou não do projeto. Das seis escolas, considerando as normas que regem a Lei de Gestão Democrática local para eleição plebiscitaria, quatro escolas manifestaram sua recusa. No entanto, o governo, desconsiderando a referida norma e contabilizando apenas o total de votos sem discriminar o percentual de cada segmento votante. Ocorreram reações negativas a essa interpretação, apesar de haver também manifestações públicas favoráveis à militarização nas quatro escolas que recusaram o projeto, especialmente
partindo dos pais de alunos. A situação de embate de posições ficou presente na imprensa local por alguns dias até que o governador pessoalmente manifestou-se sobre o assunto, informando que aplicaria a gestão compartilhada de todo jeito, 
inclusive nas escolas que recusaram o projeto, alegando que a eleição tinha efeito apenas consultivo e não vinculante. Suas declarações causaram grande impacto pelo tom imperial utilizado: “Democracia foi no dia que me elegeram governador com mais de um milhão de votos. Me escolheram para poder fazer a mudança, mudar para melhor. Quem governa sou eu; os que estiverem insatisfeitos com a gestão compartilhada busquem a Justiça. Tenho certeza de que as melhorias virão” (ROCHA, 2019). Provocativamente, ainda declarou que começaria o calendário de aplicação do projeto pelas escolas que o rejeitaram.

Com essas declarações, o clima político ficou bastante tenso, tendo deputados distritais de oposição se manifestado publicamente acusando o governador de autoritário e exigindo que a Câmara Legislativa seja respeitada como instância competente para aprovação de programas que alteram significativamente as políticas educacionais em curso, cobrança efetivada pelo fato de não haver sido encaminhado, até então, qualquer projeto de lei para aprovação de programa que agasalhe a iniciativa, como consta, inclusive, na portaria conjunta que instituiu o projeto piloto.

Ainda assim, o governador reagiu afirmando pela imprensa, conforme publicado no Portal G1, que não havia assumido o governo para “brincar de administrar” e que “já chamei o secretário e falei que ele está agindo de forma errada” (IBANEIS, 2019) pelo fato de o secretário de educação ter garantido que as escolas que rejeitassem o projeto não seriam obrigadas a implementa-lo.

Pouco tempo depois, o secretario de educação publicou no microblog Twitter sua despedida do governo agradecendo o governador “pelo favor em me exonerar”. Na verdade, apesar do confronto público de opiniões sobre a estratégia de implantação do projeto, durante todo o período de governo o secretário abonou a militarização das escolas, sem nenhuma crítica. Ao contrário, em todas as suas manifestações públicas o projeto foi considerado positivo e benéfico para as escolas e seus profissionais, seus estudantes e suas famílias.

MILITARIZAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS E O CONFRONTO COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA

Muitos são os elementos que podem ser apontados como contradições ou fragilidades no processo de militarização de escolas públicas no Sistema de Ensino do DF. A começar por um detalhe aparentemente insignificante cujo conteúdo institucional passa, muitas vezes, despercebido. Trata-se do nome que é dado às unidades escolares militarizadas. Ao nome oficial de cada escola militarizada é acrescentado o título “Colégio da Polícia Militar”. Desse modo, a título de exemplo, o Centro Educacional 7 de Ceilândia, cuja denominação é “Ced 7 de Ceilândia” passou a se chamar “Colégio da Polícia Militar Ced 7 de Ceilândia”. As implicações são evidentes, a começar pela chancela que qualquer escola precisa ter dos órgãos próprios para esse tipo de alteração (GDF, 2018)4.

Porém, essa é apenas uma questão de caráter burocrático formal. Mais grave é o significado que o nome transmite, de que uma instituição educacional pública, parte integrante do Sistema de Ensino do DF; por meio de um ato conjunto assinado pelos titulares das secretarias de educação e de segurança pública, passa a ser uma escola da corporação militar, caracterizando-se uma situação de interferência da PM nas políticas públicas de educação, prerrogativa da secretaria da área que, ao concordar com essa apropriação, deserta parcialmente de seu dever legal de prover o direito subjetivo à educação.

Os argumentos utilizados para rebater essa análise são voltados às disposições da portaria conjunta que prevê que a gestão pedagógica permanece sendo responsabilidade da SEEDF e apenas a gestão disciplinar e cidadã é responsabilidade da PMDF, ambas com o mesmo nível de hierarquia. Ocorre que a gestão escolar, inspirada nos princípios da gestão democrática, não prevê uma separação de tarefas estanques e independentes. Ao contrário, os processos administrativos, disciplinares e pedagógicos devem funcionar como dimensões de uma mesma realidade que apenas se expressam por meio de atividades diferenciadas, mas sempre em busca de objetivos comuns, de tal maneira que cabe ao dirigente escolar ser aquele que coordena todas as atividades. Não faz sentido, portanto, que à corporação militar seja outorgada uma dimensão do fazer escolar fragmentando um processo que deveria ocorrer de maneira integrada, formando um todo  coerente e harmonioso. Além disso, na proposta de estrutura de gestão prevista haverá, ainda, uma gestão estratégica, sob responsabilidade da PM, à qual as demais estruturas estarão subordinadas. Ou seja, quem passa a ter a prerrogativa que deveria ser do diretor ou diretora escolar é um policial militar, numa clara postura governamental de considerar os profissionais de educação como incompetentes para realizar a atividade para a qual foram formados e selecionados por meio de concurso público.

Outro elemento é a situação da violência fora e dentro da escola, que tem levado as famílias a aprovar essa interferência da PM no ambiente escolar. A narrativa do medo decorrente da espetacularização da violência criou no imaginário dos pais e responsáveis a ideia de que o policial armado dentro da escola é a solução. Os pais têm razão de reconhecer que a escola não oferece a segurança devida a seus filhos. No entanto, sabe-se que a violência não é criada dentro da escola, mas ela reflete aquela que existe na sociedade porque a escola não é uma bolha isenta das mazelas sociais. Não se pode instituir a escola como local de reparação da desordem e da violência que reina na sociedade. É preciso considerar que a polícia que é chamada para impedir a violência na escola é a mesma que não consegue entregar resultados à sociedade em relação às políticas públicas de segurança para as quais ela efetivamente foi criada e existe. A PM faria imenso bem à educação se conseguisse manter a segurança no entorno da escola. Não parece fazer bem ao processo educativo a presença de policiais fardados e armados junto a crianças e adolescentes em situação escolar; não parecem adequadas as rígidas normas de disciplina calcadas apenas na obediência heterônoma, que pouco ou nenhum resultado pedagógico alcança a não ser o adestramento a comportamentos padronizados, inclusive de aparência, de fala, de cumprimento; não parece fazer bem a crianças e adolescentes negar-lhes o direito à diversidade e à própria individualidade obrigando-os a manter determinado corte de cabelo ou proibindo-as de usar certos tipos de adereços próprios da idade em que o vínculo a grupos e tribos é característico. Pensar, em pleno século XX,I a existência de associação entre disciplina ou bom comportamento, com limitação do tamanho dos cabelos masculinos e obrigatoriedade de coque para as meninas é retroceder quanto aos avanços pedagógicos conquistados ao longo de séculos.

Outra contradição é a ilusão de que as escolas militarizadas terão obrigatoriamente resultados escolares superiores às demais escolas. Os resultados positivos não são decorrência da militarização, mas das condições específicas de que são dotadas essas unidades escolares, com reforço de pessoal, maiores recursos, processos seletivos e, especialmente, com a dispensa de alunos que não se adaptam aos rigores dos padrões militares e dos indesejados. Nesse sentido, é sempre bom lembrar que a escola pública é para todos e todas não cabendo escolher quem são aqueles que podem ficar e quais devem ser excluídos. O jornal Folha de São Paulo (ESCOLAS, 2019) cruzou dados do ENEM 2017 por escola, segregando escolas com perfil socioeconômico, tipo de militarização e porte chegando à conclusão de que escolas militares ou militarizadas têm resultados semelhantes a escolas com perfil parecido, sendo que centenas de colégios estaduais com gestão civil e mesmo perfil socioeconômico têm resultado melhor.

Por fim, é mister relembrar o argumento utilizado na nota técnica que resultou na exoneração do subsecretário de Educação Básica da SEEDF ao se pronunciar pela não aprovação do projeto piloto de gestão compartilhada, ao afirmar que são muitos dos projetos alternativos inscritos autonomamente por escolas da rede pública de ensino do DF a esperar que a estrutura de decisões da secretaria autorize suas implantações com alguma condição de pessoal, equipamento ou recursos, que certamente estão muito abaixo da pretensão de contar com mais 25 profissionais e duzentos mil reais de aporte financeiro.

Nesse artigo, apontamos a maneira como se implantou o projeto piloto de militarização de algumas escolas públicas do DF, eufemisticamente denominado “gestão compartilhada”, seus prováveis vínculos com a política pública federal de fomento a escolas cívico-militares nos sistemas de ensino dos estados e municípios, procurando identificar elementos, contradições, acertos ou fragilidades como questões abertas à pesquisa científica. Levantamentos quantitativos e análises qualitativas mais verticalizadas sobre esses fenômenos poderão certamente jogar luz sobre essa realidade a fim de compreende-la em profundidade.

REFERÊNCIAS

ALCÂNTARA, Manoela. Escolas militares na rede pública de ensino divide distritais. Metrópole. Brasília: 13 jan 2019. Disponível em: https://www. metropoles.com/distrito-federal/educacao-df/escolas-militares-na-rede publicadividem-opiniao-de-distritais. Acesso em 27 ago 2019.

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ERASTO FORTES MENDONÇA é Doutor em Educação pela Unicamp, Mestre em Educação pela UnB. Professor aposentado da Faculdade de Educação da UnB de onde foi diretor. Foi membro do Conselho Nacional de Educação e presidente da Câmara de Educação Superior, membro e vice-presidente do Conselho de Educação do DF, professor e diretor da rede pública de ensino do DF. E-mail: erastofm@gmail.com

 

https://www.sinprodf.org.br/militarizacao-de-escolas-publicas-no-df-a-gestao-democratica-sob-ameaca/ 




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