Golpismo na Bolívia

Golpismo na Bolívia

Pesquisador analisa golpismo na Bolívia e afirma que América Latina vive 3ª onda autoritária

Professor na UnB, Jacques de Novion, também destacou o papel da mobilização sindical e popular contra o golpe

 

Tentativa de golpe começou na praça Murillo, em frente ao palácio do governo.
- Foto: Agência Boliviana de Informações]

Na tarde desta quarta-feira (26) o mundo e, principalmente a América Latina, acompanharam com apreensão o ex-comandante do Exército Boliviano, Juan José Zúñiga, na tentativa de golpe contra o presidente da Bolívia, Luis Arce. A população boliviana se levantou contra o ato, o presidente enfrentou os golpistas, o golpe fracassou e no mesmo dia Zúñiga foi preso.

No entanto, o episódio reforçou a importância da mobilização sindical e popular na avaliação do historiador e professor Martin Leon Jacques Ibanez de Novion, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Brasília (UnB).

“Considero fundamental a imediata mobilização sindical e popular como reação às tentativas de golpes de qualquer tipo contra nossas democracias. São elas que expressam a vontade popular em contraposição às ações de grupos de poder que se definem representantes desse mesmo povo”, destacou Jacques de Novion, em entrevista ao Brasil de Fato DF.

De acordo com o professor, a convocação da Central Obrera Boliviana (COB) para uma greve geral, demonstra a importância central na defesa da democracia e na “necessidade constante de organização da sociedade, preponderantes para a defesa de nossas sociedades e de nossos futuros”.

Jacques de Novion, que é doutor em Estudos Latino-Americanos, explica que a situação política da Bolívia está classificada dentro da terceira onda autoritária na região. “Existem novas ferramentas, mas [os golpes] pertencem a uma historicidade própria de nosso continente”, analisou o professor ao lembrar do histórico de golpes na América Latina.

Pesquisador do Grupo de Trabalho da Rede Clacso ‘Estudios Latinoamericanos: perspectivas nacionales, regionales y transnacionales’, Jacques também destacou os interesses geopolíticos e das elites locais na tentativa de golpe, tendo em vista que a Bolívia tem uma das maiores reservas de lítio do mundo – elemento que tem se tornado cada vez mais importante por ser usado nas baterias de telefones e computadores.

“Trata-se de garantir o controle dos recursos empenhados na produção sistêmica. Governos de elites alinhadas aos interesses hegemônicos repetidamente encampam as velhas narrativas de privatização da vida como modelo de futuro”, avaliou o historiador.

 


Jacques Novion é pesquisador da UnB e doutor Estudos Latino-Americanos /
 Foto: André Gomes/Secom UnB

 

 

Confira a entrevista

Brasil de Fato DF - A Bolívia viveu nesta quarta-feira (26 de junho) mais uma tentativa de golpe de Estado. Como você avalia essa situação, o que impediu a tomada de poder pelos militares?

Jacques de Novion - Esta última tentativa fracassada de golpe na Bolívia, mantidas suas particularidades e especificidades locais, não se resumem a um acontecimento próprio e isolado. Compõem o que considero ser a terceira onda autoritária em nosso continente, iniciada na tentativa de golpe contra Hugo Chávez, em 2002, na Venezuela.

O fracasso dessa investida militar, ator comum nas três ondas autoritárias, tem relação com a imediata reação e mobilização das organizações sociais e da população; da coragem do presidente Arce e seu gabinete em enfrentar o General golpista; da rápida ação internacional nas redes sociais e na imediata reação contrária ao golpe por parte dos governos da região.

A Bolívia tem uma das maiores reservas de lítio do mundo e já fechou parcerias com a China para a exploração desse recurso. Essa questão geopolítica e econômica do país podem ter contribuído com essa tentativa de golpe?

Sem dúvida! Diria mais, é a razão central neste momento. Equiparável às situações anteriores, como na Guerra da Água em Cochabamba [2000], a Guerra do Gás [2003], entre outros. Em síntese, trata-se de garantir o controle dos recursos empenhados na produção sistêmica. Governos de elites alinhadas aos interesses hegemônicos, repetidamente, encampam as velhas narrativas de privatização da vida como modelo de futuro.

Governos não alinhados e de perfil popular freiam essas contínuas tentativas entreguistas e reivindicam suas soberanias, razão pela qual sofrem continuamente tentativas de golpe. Sobram exemplos recentes, que atentam contra nossas sociedades como as sucessivas tentativas de golpe na Bolívia, Nicarágua, Equador, Venezuela, Guatemala e Cuba ou nos golpes efetivados como no Haiti, Honduras, Paraguai, Brasil, Bolívia e Peru.

Soma-se a tudo isso a evidente ordem multipolar, com a ampliação das relações internacionais Sul-Sul [global], como na plena ascensão dos Brics [Grupo de países emergentes formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia e China]. Importante salientar que nesta atualidade complexa, o Brasil figura como membro fundador dos Brics e o único em nosso continente. Elemento que não pode ficar ausente de qualquer análise geopolítica e de segurança.

 


Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Luis Arce Catacora durante coletiva de imprensa
nesta sexta (28). / Foto: Agência Boliviana de Informação

 

 

Para além da Bolívia, a história da América Latina é marcada por golpes de Estado e desrespeito à vontade popular. No entanto, nos últimos anos vimos uma série de golpes ou tentativas golpistas em vários países, como no próprio Brasil. Existe um contexto de novo golpismo na América Latina ou é o mesmo cenário, existe conexão entre esses golpes?

Existem novas ferramentas, mas pertencem a uma historicidade própria do nosso continente. Tem nascimento no fim do Século XIX e na implantação do binômio integração e segurança, que estabeleceram relações assimétricas entre Estados Unidos e a América Latina e Caribe. Nesta longa duração, em pleno desenvolvimento ainda hoje, considero ser a segurança hegemônica, não a nossa, o elemento de maior centralidade e importância. Ao longo dos cinco binômios aplicados em momentos específicos, conectados diretamente aos acontecimentos internacionais da época, encontramos três ondas autoritárias.

Uma na primeira [onda autoritária] na metade do século XX, responsável pela série de intervenções estadunidenses, principalmente no grande Caribe, como os casos da Nicarágua, Cuba, República Dominicana, Haiti e [também, por está na América do Sul] o Paraguai.

A segunda [onda autoritária] refere-se ao contexto da Guerra Fria. Coordenação entre os EUA, Escola das Américas e as elites tradicionais. Momento obscuro desencadeado pelos golpes empresarial-militares das décadas de 1960 a 1990. Esta, inclusive, promotora, talvez, da única política de integração hegemônica que, infelizmente, tenha alcançado seus propósitos: a Integração da Morte por meio do Plano e Operação Condor. Recordemos que com apoio do Brasil e dos EUA, o General Hugo Banzer, formado na Escola das Américas, se tornou o ditador da Bolívia nesse período [década de 1970].

E a terceira onda, atual, onde a novidade tem mais relação com o uso das novas tecnologias. Neste momento, coincidindo com Atilio Borón e Noam Chomsky, vemos a incompatibilidade entre Neoliberalismo e Democracia.

Porém, penso que se existe compatibilidade entre ambas, só é possível por meio do autoritarismo, algo bastante elucidativo nas sucessivas tentativas fracassadas ou nos golpes efetivados. Recordemos que a democracia plena do projeto socialista de Allende no Chile, foi violentamente golpeado dando lugar ao que Pinochet [ditador chileno] chamou de Democracia Autoritária, e local de laboratório do modelo que conhecemos por Neoliberalismo.

E quais são as características e semelhanças desses golpes?

O envolvimento direto dos interesses hegemônicos, a contínua participação e implementação das elites de nossos países (econômica, militar, religiosa e midiática), e a centralidade comum em apropriação de nossas riquezas, recursos, conhecimentos tradicionais e força de trabalho. Junto aos atores golpistas históricos também se observa a reedição contínua de uma falsa narrativa de defesa da democracia e da liberdade. Esta, inclusive usada se tempos em tempos como forma de seduzir, principalmente as novas gerações e a juventude.

Por isso, a importância de insistirmos no conhecimento de nosso passado, o entendimento de nosso presente e nossos desejos e esperanças coletivas no futuro que queremos construir.

É possível estabelecer semelhanças entre o que aconteceu na Bolívia com o que aconteceu no Brasil em 2016 e em 8 de janeiro de 2023?

Sem dúvida, como colocado anteriormente, em minha percepção compõem um histórico de longa duração com as particularidades próprias de época, mesmo que com suas particularidades e especificidades nacionais.

Esse cenário da Bolívia pode afetar de alguma forma o ambiente político ou até econômico do Brasil, uma vez que somos parceiros comerciais?

Considero que afetaria caso a tentativa não fracassasse, ou que o golpe se instalasse. Mas não apenas ao Brasil, atingiria toda a região, incluindo os espaços e fóruns de diálogo e integração, como o Mercosul, onde a Bolívia acaba de se tornar membro.

De fato, essa terceira onda golpista, seguindo as anteriores, tem como finalidade aceder aos recursos, riquezas, conhecimentos tradicionais e força de trabalho de nossas sociedades. Atendem ao processo de produção e reprodução sistêmica, mantém a desigual e desumana ordem capitalista.

Não se trata da liberdade e democracia de nossos povos, algo contraditório, por exemplo, no anúncio do golpista Zuñiga [ex-general boliviano] quando afirma libertar os envolvidos no golpe contra Evo Morales em 2019. Não podemos esquecer o envolvimento dos EUA e da União Européia nesse momento, inclusive recordando que Elon Musk [bilionário proprietário do X – antigo Twitter] afirmou seu envolvimento, escorado no alto interesse pelas reservas de lítio na Bolívia.

Esses interesses hegemônicos são historicamente implementados pelas elites de nossos países, que atendem e atuam em troca da manutenção de seu poder local e de parcos privilégios sistêmicos. Afinal, estes não pertencem a elite sistêmica.

 

 


Manifestantes nas ruas da Bolívia. /
Foto: Gustavo Ticona/Agência Boliviana de Informação

 

 

Por fim, vimos na Bolívia uma rápida mobilização popular para impedir o golpe. Qual a importância dessa reação popular para se evitar um golpe de Estado e defender a democracia?

Considero fundamental a imediata mobilização sindical e popular como reação às tentativas de golpes de qualquer tipo contra nossas democracias. São elas que expressam a vontade popular em contraposição às ações de grupos de poder que se definem representantes desse mesmo povo.

A imediata reação, por exemplo, da Central Obrera Boliviana (COB) convocando uma greve geral, demonstra a importância central não só da defesa da democracia, mas da necessidade constante de organização da sociedade, preponderantes para a defesa de nossas sociedades e de nossos futuros. Sem elas, os golpes tendem a triunfar, independente da vontade popular.

Edição: Flávia Quirino

FONTE:

https://www.brasildefatodf.com.br/2024/06/28/pesquisador-analisa-golpismo-na-bolivia-e-afirma-que-america-latina-vive-3-onda-autoritaria?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR2OSTCz6jhr-k3WnySNFc60XQf1CXAKrXT40WtBnnPXSC3LpVmbcJPDcc0_aem_rB8Tt5w4lhLJF6PKFvwfZg 

 




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