Gritos de Independência

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Gritos de Independência

Frei Betto   23/08/2022

Dom Pedro I - Quem foi? Biografia e Feitos - Gestão Educacional

 


Co­me­mora-se no pró­ximo 7 de se­tembro o bi­cen­te­nário da in­de­pen­dência do Brasil. Consta que não houve sangue, apenas um grito, o do Ipi­ranga. Teria mar­cado a rup­tura da tu­tela por­tu­guesa, assim como hoje somos su­pos­ta­mente so­be­ranos frente ao FMI... E man­teve no poder o por­tu­guês D. Pedro I, que se pro­clamou im­pe­rador do Brasil. Ter­minou seus dias como Duque de Bra­gança. Fi­gura, na re­lação di­nás­tica, como o 28º rei de Por­tugal.

Entre o fato e a versão do fato, a his­tória ofi­cial tende à se­gunda. Ainda hoje se dis­cute se o grito de­correu do sonho de uma pá­tria in­de­pen­dente ou da am­bição de um im­pério tro­pical. Ficou o grito pa­rado no ar, ex­presso nos rostos con­tor­cidos das fi­guras de Por­ti­nari, no ro­man­ceiro de Ce­cília Mei­reles, no samba agô­nico de Chico Bu­arque, no co­ração de­so­lado das mães bra­si­leiras que en­terram, todo ano, recém-nas­cidos pre­co­ce­mente tra­gados pelos re­cursos que faltam à área so­cial e são ca­na­li­zados para abas­tecer o pan­ta­grué­lico or­ça­mento se­creto. Mães que choram, in­con­so­ladas, seus fi­lhos mortos por balas “per­didas” ou ví­timas do be­li­cismo po­li­cial que sa­cri­fica Ge­ni­valdos sem que os as­sas­sinos sejam in­cri­mi­nados pela Jus­tiça.

O Brasil, pá­tria ve­getal, os­tenta o sem­blante de uma cor­di­a­li­dade re­ne­gada por sua his­tória. Sob o grito da in­de­pen­dência res­soam os gritos dos in­dí­genas tru­ci­dados pela em­presa co­lo­ni­za­dora, agora res­tau­rada pela as­sepsia ét­nica pro­posta pelos in­te­gra­ci­o­nistas ogro­pe­cuá­rios, que julgam os ter­ri­tó­rios dos povos ori­gi­ná­rios pri­vi­légio na­ba­besco.

Ecoam também os gritos das ví­timas in­de­fesas de en­tradas e ban­deiras; Fernão Dias sa­cri­fi­cando o pró­prio filho em troca de um pu­nhado de pe­dras pre­ci­osas; ban­dei­rantes tra­ves­tidos em he­róis da pá­tria pelo re­lato his­tó­rico dos brancos – versão bar­roca do es­qua­drão da morte rural, di­riam os in­dí­genas se fi­gu­rassem como au­tores em nossa his­to­ri­o­grafia.

Abafam-se, em vão, os gritos ar­ran­cados à chi­bata dos ne­gros ar­ras­tados de além-mar, sem contar as re­voltas po­pu­lares que minam o mito de uma pa­cí­fica ab­ne­gação só pre­sente no ufa­nismo de uma elite que julga vi­o­lento o MST, e não a ar­caica exis­tência do la­ti­fúndio im­pro­du­tivo.

Pá­tria ar­mada de pre­con­ceitos ar­rai­gados, casa grande que traça os li­mites in­trans­po­ní­veis da sen­zala na pen­dular po­lí­tica de pe­ríodos au­to­ri­tá­rios al­ter­nados com ci­clos de de­mo­cracia tu­telar, já que, neste país, a coisa pú­blica tende a ser ne­gócio pri­vado, com ta­belas para par­tidos de alu­guel.

In­dí­genas, ne­gros, mu­lheres, de­sem­pre­gados, sem-terra e sem-teto não me­recem a ci­da­dania, reza a prá­tica da­queles que se­quer se en­ver­go­nham de le­gislar em prol do pró­prio bolso. Para a ga­lera, as tripas, marca in­de­lével em nossa cu­li­nária, como a fei­joada. Cor­rompem-se so­nhos, va­lores e sen­ti­mentos ao ven­derem por trinta di­nheiros o pro­jeto li­ber­tário de uma ge­ração. Os que querem go­vernar a so­ci­e­dade não su­portam os que querem go­vernar com a so­ci­e­dade, abra­çados aos fun­da­mentos da de­mo­cracia.

Fe­rida em sua au­to­es­tima e com mais de 30 mi­lhões de fa­mintos e quase 70 mi­lhões en­di­vi­dados, a pá­tria na­vega a re­boque do re­cei­tuário ne­o­li­beral, que di­lata a vi­o­lência, exalta as mi­lí­cias, o poder pa­ra­lelo do nar­co­trá­fico, a con­cen­tração de renda. Se o sa­lário não paga a vida, a vida pa­rece não valer um sa­lário. Os que pro­clamam que a única utopia é acre­ditar no fim das uto­pias tra­fegam cer­cados de es­quemas de se­gu­rança pelas ruas in­fes­tadas de fa­mí­lias mi­se­rá­veis e nos se­má­foros se exibem jo­vens ma­la­ba­ristas do circo de hor­rores. Não se dão conta de que grades e guardas os fazem pri­si­o­neiros da pró­pria os­ten­tação.

No Brasil, a in­flação corrói o parco au­xílio, a agri­cul­tura fa­mi­liar não me­rece cré­dito, os hos­pi­tais estão do­entes, a saúde se en­contra em es­tado quase ter­minal, a es­cola ga­ze­teia, o sis­tema pre­vi­den­ciário as­socia-se ao fu­ne­rário e a es­pe­rança se reduz a um novo par de tênis, um em­prego qual­quer, alçar a fan­tasia pelo con­solo ele­trô­nico das te­le­no­velas.

O grito dos ex­cluídos ecoa neste bi­cen­te­nário da in­de­pen­dência. Ecoa na con­tramão dos ca­mi­nhos que res­tauram o pas­sado, tra­çados por aqueles que ainda in­censam a di­ta­dura e re­forçam o apartheid so­cial. Ecoa in­dig­nado frente à ava­lanche de cor­rupção que ameaça nossa frágil de­mo­cracia. Ecoa do peito da­queles que exigem o di­reito dos po­bres acima da ga­nância dos cre­dores. Ecoa do clamor por ética na po­lí­tica, trans­pa­rência nos po­deres da Re­pú­blica e se­vera pu­nição aos que traíram os an­seios do povo, ino­cu­lando-nos o medo de ter es­pe­ranças.

 

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