Grupos privados avançam sobre a educação pública
Grupos privados aproveitam Novo Ensino Médio para avançar sobre a educação pública
Seduc utiliza o Novo Ensino Médio para acelerar proposta de educação empreendedora em parceria com instituições privadas
03/8/2022 - Por Luís Gomes
*Colaborou Duda Romagna
A implantação do Novo Ensino Médio em toda a rede de educação do Rio Grande do Sul, como vimos nas primeiras reportagens desta série especial, está sendo influenciada pelo velho problema da falta de professores nas escolas públicas e pela oferta reduzida e pouco qualificada de opções na comparação com as instituições privadas. Mas, paralelamente a estes problemas, existe um terceiro eixo que tem marcado esse processo: a inserção cada vez maior de institutos privados dentro da educação pública, o que não ocorre apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil. Um processo que se aproveita das brechas criadas pela dificuldade da rede estadual em trabalhar por conta própria a formação de professores para disciplinas criadas no Novo Ensino Médio e de oferecer material didático com estes novos conteúdos, mas também um processo que contribui para alimentar um desejo da atual gestão da Secretaria de Educação (Seduc) de instalar uma “educação empreendedora” nas escolas gaúchas.
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Integrante do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado (GPRPPE), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Adriano Pires de Almeida destaca em sua pesquisa que três instituições privadas têm papel fundamental na estratégia da Seduc de aplicar a “lógica da educação empreendedora”, que comporia uma estratégia maior do governo de transformar o Estado em empreendedor.
A primeira delas é o Instituto Lemann, criado no ano de 2022 pelo empresário Jorge Paulo Lemann, fundador da Ambev e um dos homens mais ricos do Brasil. A primeira parceira significativa firmada entre a Secretaria de Educação e o Instituto Lemann foi o projeto Qualifica RS, criado em 2019 com o objetivo de fazer a seleção para a contratação de 30 novos coordenadores regionais de educação e três novos agentes de controle externo de gestão vinculadas à pasta — a parceria ainda previa a contratação de três pessoas para cargos na então Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão (Seplag).
Na época, o Instituto Lemann publicou, em nota, que a participação da entidade visava ajudar a melhorar o processo de seleção com critérios claros e transparentes, olhando para as competências das pessoas – além de seu desenvolvimento e valorização da carreira. “Isso significa ter profissionais mais bem preparados em cargos de liderança e, por consequência, oferecer serviços cada vez melhores para a sociedade”, diz a nota.
No entanto, um levantamento realizado à época pelo Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS) indicou que 20 dos 30 novos coordenadores contratados eram filiados a partidos da base do governo ou tinham ligações familiares com políticos dessas agremiações.
Já em 2021, o Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação, braço educacional do Instituto Lemann, foi encarregado pela Seduc de promover o “acolhimento, engajamento e participação” dos jovens no Novo Ensino Médio.
Uma segunda entidade com papel importante na implantação da estratégia empreendedora da Seduc é o Instituto Ayrton Senna. Em fevereiro de 2022, a entidade firmou parceria com a secretaria para apoiar a recuperação da aprendizagem perdida durante a pandemia de covid-19 e “aumentar o engajamento do estudante com a escola e com seu projeto de vida”. Um dos eixos deste trabalho foram os “encontros formativos online”, ministrados pelo Instituto Ayrton Senna, que promoveram junto aos educadores o conceito da alfabetização integral.
No âmbito desta parceria, foi implementado um projeto piloto em dez escolas que passaram a adotar metodologias de ensino criadas pela entidade. Segundo dados do próprio instituto, a ideia é alcançar, neste ano, 9 mil educadores, o que atingiria mais de 200 mil estudantes.
Paralelamente, em maio deste ano, o Instituto Ayrton Senna iniciou outro trabalho piloto de formação de professores de 50 escolas estaduais para o desenvolvimento socioemocional dos estudantes. A iniciativa é voltada para educadores da disciplina Projeto de Vida, mas inicialmente trabalha com os anos finais do Ensino Fundamental.
Uma terceira entidade chave apontada pelo pesquisador é o Sebrae, que, por meio do Centro Sebrae de Referência Educação Empreendedora (CER), promoveu em 2020 e 2021 oficinas direcionadas a professores da rede estadual. Pela proposta do CER, a educação empreendedora seria “um dos principais vetores de transformação de uma comunidade, cidade ou país”.
No caso da escola estadual Presidente Roosevelt, uma das 264 escolas-piloto que começaram a adotar o currículo do Novo Ensino Médio em 2020, o diretor Márcio Freitas conta que a formação pedagógica que ocorre antes de cada ano letivo teve respaldo em materiais do Sebrae.
Além disso, no dia 3 de junho, a Seduc, em parceria com o Sebrae, promoveu o evento “Crie o Impossível”, no estádio Beira-Rio, em que palestrantes, dentre os quais a influencer Bianca Andrade, conhecida como Boca Rosa, compartilharam experiências de empreendedorismo com os estudantes de escolas estaduais de Ensino Médio.
A lógica do Estado empreendedor está descrita na Lei nº 15.410, de 19 de dezembro de 2019, que institui a Política Estadual de Empreendedorismo, a ser desenvolvida nas escolas técnicas e de nível médio. A redação da legislação teve a colaboração da área de Políticas Públicas do Sebrae.
O texto da lei define o empreendedorismo como “aprendizado pessoal, impulsionado pela motivação, criatividade e iniciativa, com a capacitação para a descoberta vocacional, dar oportunidade e elaborar um projeto de vida”. A lei prevê que o empreendedorismo seja promovido através de disciplinas, técnicas de ensino, materiais didáticos, pesquisas, projetos interdisciplinares, eventos culturais, feiras, programas de tutoria e mentoria.
O terceiro artigo da legislação define as diretrizes para implantação e execução da Política Estadual de Educação Empreendedora: estimular a implantação de práticas educacionais que explorem ideias de negócios; oferta de conteúdos de empreendedorismo nos currículos; desenvolver a autonomia e o protagonismo como características comportamentais empreendedoras. Nesse caso, o empreendedorismo vem sendo inserido no currículo escolar com propostas da classe empresarial e de instituições do terceiro setor, como na Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio.
Outra entidade privada que firmou parcerias importantes com a Seduc foi o Instituto Iungo, entidade voltada para a formação de professores e ligada a fundações criadas por grandes empresas como as construtoras Cyrela e MRV Engenharia, a empresa de aluguel de veículos Localiza, instituições financeiras, entre outras.
Em 2021, Seduc e Instituto Iungo firmaram um termo de cooperação para a oferta de cursos de formação por meio da plataforma Nosso Ensino Médio. Inicialmente, a vigência da parceria iria até 31 de dezembro de 2021, mas o prazo foi posteriormente estendido para 31 de dezembro de 2024.
Atualmente, o portal da Seduc informa que o Instituto Iungo oferece o curso Ensino Médio Gaúcho e Integralidades, uma formação de 40 horas, das quais 11h30 são no formato webconferências e 28h30 nos formatos trilhas formativas e prática reflexiva. Em 2022, foram ministrados sete webnários entre 22 de março e 5 de julho, com os temas (pela ordem):
– O novo ensino médio no RS e a importância das comunidades de aprendizagem;
– O educador de Ensino Médio: caminhos para integração;
– O trabalho por áreas de conhecimento na Formação Geral Básica;
– A integração pelas metodologias;
– A integração pela avaliação;
– A aula invertida por homologia;
– Diálogos entre Formação Geral Básica e os projetos de vida dos estudantes.
As trilhas de aprendizagem, também divididas em sete etapas, foram ministradas entre março e junho, com os temas (pela ordem):
– O que há de novo no Ensino Médio;
– Convite à comunidade de aprendizagem;
– O educador do Ensino Médio: competências e práticas;
– Integração curricular: o que, por que e como;
– Personalizada por área de conhecimento;
– Núcleo de autoria e criação docente;
– O lugar da avaliação.
As práticas reflexivas consistiram em três oportunidades de orientação a respeito dos webnários 3, 4 e 6, ocorrendo nos meses de maio, junho e julho.
Procurada pela reportagem, a Seduc informou que atua em parceria com instituições da sociedade civil que contribuem com especialistas em ações formativas voltadas para a implementação do Ensino Médio Gaúcho e que estas parcerias não resultam em custos para o Estado. A secretaria destaca entre as parcerias projetos de formação de professores para a implementação dos novos componentes curriculares e oferta de material de apoio.
“Essas instituições contam com especialistas que estiveram envolvidos no desenvolvimento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estão apoiando redes pelo Brasil, tanto na Formação Geral Básica, quanto dos componentes Projeto de Vida, Mundo do Trabalho, Cultura e Tecnologias Digitais”, diz a Seduc em nota.
No entanto, Vera Maria Vidal Peroni, coordenadora do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação da Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS, que estuda justamente o crescimento da inserção privada na educação pública, pontua que estas parcerias acabam tendo custos indiretos que são omitidos pelo poder público. Um dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa foi uma análise das parcerias firmadas entre municípios brasileiros e a Fundação Ayrton Senna.
“O que a gente observou, eles falavam que era sem fins lucrativos, só que vendiam material, o município tinha que pagar para colocar os dados no sistema de informação que eles têm, as formações também tinham vários custos. Só que é muito difícil a gente achar isso, inclusive nos balanços dos municípios, porque vem tudo numa rubrica de formação de professores, de material didático, mas não especificando. É muito complicado, a transparência é zero, a gente já vem trabalhando isso como um dado de pesquisa”, afirma.
Por sua vez, Mariângela Bairros, coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Faced, que estuda a implantação do Novo Ensino Médio no Estado, pontua que uma das portas de entrada para grupos como o Instituto Iungo e as fundações Lemann e Ayrton Senna é a formação dos professores. Outra porta é a dos materiais didáticos, com a distribuição de apostilas por organizações como o Grupo Positivo e a Editora Moderna.
“Este é um fenômeno importante da gente registrar quando a gente fala da reforma do Novo Ensino Médio. Um fenômeno que não é de hoje, mas nunca como agora isso esteve tão forte dentro da educação pública, que é a privatização dos espaços públicos com a entrada desses organismos”, diz.
Mariângela avalia que este processo é fortalecido com a crescente “demonização do servidor público” e pela ideia de que os professores precisam ser controlados. “Isso ocorre por meio de livros e apostilas, chega ao cúmulo de professores não poderem pular páginas, porque eles seguem página por página. É um controle extremo sobre a atividade dos professores”, diz. “Empresários entrando para dentro da escola e dizendo o que deve ser feito em educação. Eu costumo usar esse exemplo de que eu não digo para o meu cardiologista o que ele tem que fazer para mim, porque ele estudou para isso. Mas, na educação, sobretudo na educação pública, todo mundo acha que pode vir e dizer que está errado, que está certo. Então, chama a atenção que empresários se deem a esse desfrute, vamos dizer assim”, diz.
O presidente interino do CPERS, Alex Saratt, também expressa preocupação com o avanço das instituições privadas na educação pública já que, em razão da falta de condições das escolas em oferecerem as novas disciplinas, elas acabem por virar “grandes pacotes” comprados prontos desses grupos.
“A gente reforça muito a preocupação de que algumas disciplinas em breve virem grandes pacotões. Já que não tem um professor especializado pra trabalhar com Projeto de Vida, então eu vou comprar lá de um determinado grupo educacional”, pontua.
Um dos grandes problemas que o professor Jardel Cunha, da escola estadual Monsenhor Leopoldo Hoff, de Porto Alegre, vê no Novo Ensino Médio é o fato das disciplinas de Projeto de Vida, Mundo de Trabalho e Cultura e Tecnologias Digitais não serem científicas. “Você retira matérias que são ciências, que têm método e coloca no lugar três disciplinas que tudo que a gente tem é uma ementa. Tu não tem uma formação superior, tem videozinhos e uma formação em parceria com o Sebrae e com o Instituto Lemann. Eles dão os parâmetros, mas cada professor se vira como pode. Aproxima-se cada vez mais daquela coisa do coaching. Qualquer dia nós não vamos ser professores, vamos ser coachs”, diz.
Saratt aponta que é uma contradição a Seduc promover um evento de grande porte, que teve o público estimado em 10 mil pessoas, como foi o caso daquele promovido pelo Sebrae no Beira-Rio, enquanto escolas da rede são interditadas pelo risco de desabamento do teto. Ele também critica o fato de que a Seduc esteja procurando instituições privadas e o Sistema S para realizar a formação dos professores, enquanto o Rio Grande do Sul tem algumas das melhores universidades públicas e comunitárias do País.
“É bom lembrar que, além da contratação de empresas para oferecer material e conteúdo, o Novo Ensino Médio instituiu o notório saber. Isso existia no passado, meu pai, que é um homem de 72 anos, teve aulas com pessoas que eram da área, por exemplo, do direito ou da área médica e pegavam lá uma determinada carga horária para dar aula”, diz. “Hoje nós temos muitos profissionais aguardando por um concurso, por um contrato, e daqui a pouco alguém que não tem formação pedagógica vai lá, porque é uma esteira para favorecimentos, para outras situações”.