Hepatite pela Ivermectina
Casos de hepatites causados por Ivermectina assustam hepatologistas em Salvador
Uso do medicamento explodiu durante a pandemia; especialistas fazem alertas
Em mais de três décadas de trabalho como hepatologista, Raymundo Paraná havia atendido dois pacientes com lesões no fígado provocadas por Ivermectina, um vermífugo. Havia, até outubro do ano passado. Nos últimos cinco meses, recebeu no consultório, em Salvador, mais gente lesada pelo medicamento que em 35 anos. Nove pessoas o procuraram. Todas ingeriram doses excessivas do remédio – cinco delas com prescrição médica.
De “evento raro”, como descreve Paraná, a procura de pacientes com problemas no fígado desencadeados pelo medicamento se “tornou frequente”. O perfil de quem procura hepatologistas como Paraná varia de jovens a idosos, que viam na Ivermectina uma fantasia de cura ou prevenção contra o coronavírus. Chegam com olhos amarelados, urina escura e náuseas, geralmente.
O CORREIO tentou falar com, pelo menos, dez pessoas com efeitos da Ivermectina no fígado. Nenhuma quis - mesmo sob anonimato.
“Quando você usa indiscriminadamente, é um absurdo. Eu já vi paciente usando três vezes ao dia”, conta Paraná.
Normalmente, a dose de um vermífugo como a Ivermectina é anual. Na pandemia, ele tem sido, sem aval científico, propagandeado como uma opção para prevenir ou diminuir os riscos de uma evolução grave da covid-19. Nenhuma das premissas se provou. Todas ficaram no campo das convicções, que, no campo de saúde, cobram um preço. O fígado é um dos que pagam.
A fabricante do remédio, a Merck, veio a público informar, há duas semanas, que ele deve ser ingerido apenas em doses adequadas contra verminoses, não para tratar ou prevenir o coronavírus, contra o qual não existe sequer uma cartilha de tratamento. Procurada pela reportagem, a empresa não quis se pronunciar
A Ivermectina é colocada no centro do debate por duas razões: em dezembro passado, o governo federal autorizou a compra do medicamento sem prescrição; e as altas doses ingeridas, por ser equivocadamente citado como um remédio que, se não fizer bem, mal não faz.
Os medicamentos são recebidos pelo corpo como uma substância estranha, aquele visitante que precisa ser recebido primeiro para depois dizer a que veio. O fígado faz esse papel de anfitrião. Na linguagem médica, ele metaboliza o composto ingerido.
Cada remédio tem um princípio ativo e a maioria deles começa sua ação no corpo a partir desse órgão, uma espécie de filtro. Os rins também atuam no processo, mas o fígado é o protagonista.
A depender de como ocorre a metabolização, o fígado pode sofrer efeitos que o inflamam em níveis leves, médios ou graves. “De acordo com a maneira e velocidade de metabolizar, você pode gerar um metabólico que é tóxico para o fígado”, explica Paraná.
Há também o risco de a Ivermectina, depois de ingerida, “dialogar” com outros medicamentos que, em excesso, também danificam o fígado. Essa “interação medicamentosa” pode tornar ainda mais tóxico o efeito no fígado, porque é como se as substâncias disputassem para ser metabolizadas. Nesse processo, uma substância também pode cortar o efeito da outra.
O resultado é a possibilidade de formação de dois tipos de hepatite, termo usado para se referir a qualquer inflamação no fígado: medicamentosa, tratável a curto e médio prazo, com a suspensão da dosagem; e fulminante, mais grave, que pode levar a perda das funções hepáticas e necessidade de um transplante de órgão.
Uma hepatite medicamentosa também pode evoluir para um problema crônico, sem cura, no fígado. Segundo Paraná, 10% dos casos podem evoluir para isso.
“Tomar esse remédio contra coronavírus é como apontar uma arma para a cabeça, com uma bala só, e disparar. Uma roleta russa”, ilustra o hepatologista.
As pesquisas ainda não conseguem precisar quais grupos têm mais ou menos risco de contrair um problema hepático.
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Dopados de Ivermectina: excesso de uso pode levar à necessidade de transplante de órgão
A Ivermectina é utilizada desde os anos 70 para tratar de verminoses, na pecuária. Só entre o final da década de 90 e o início dos anos 2000, passou a ter uso humano. Durante a pandemia, começou a ser utilizada em escala muito maior. Doses anuais tornaram-se diárias, semanais, relatam médicos, e, às vezes, associadas a outros medicamentos sem comprovação de eficácia contra o coronavírus que também podem ser tóxicos ao fígado, como o antibiótico azitromicina e a cloroquina, contra malária.
Esses remédios chegaram a ser distribuídos juntos, por prefeituras ao redor do Brasil, como o chamado “kit covid”, criticado pela falta de eficácia científica e pela possibilidade de causar efeitos colaterais graves.
Combinação de medicamentos pode ser ainda mais grave ao fígado, dizem hepatologistas (Foto: Agência Brasil) |
Na semana passada, o médico pneumologista Frederico Fernandes divulgou o caso de uma jovem que, depois de ingestão excessiva de Ivermectina, evoluiu para uma hepatite fulminante, a ponto de precisar de um transplante. Ele foi convidado para avaliar as disfunções pulmonares da mulher, em São Paulo.
“Relatei com intenção de alertar e acabei sendo atacado por isso. Foi uma coisa empática em relação a uma pessoa jovem que estava a ponto de precisar de transplante porque exagerou na Ivermectina”, contou o médico ao CORREIO.
A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) afirmou à reportagem que dos 22 transplantes de fígado realizados desde março do ano passado até o momento, um foi por hepatite fulminante – caso em que a legislação permite a prioridade na fila, sem espera, pelo risco iminente à vida.
Sobre esse caso, não foi informada a causa da hepatite. Mas, uma pesquisa divulgada neste ano, mostrou que uma em cada três pessoas que tiveram hepatite fulminante sofreu lesões no fígado provocadas por medicamentos.
A lesão hepática provocada por medicamentos é diagnosticada em exames que medem a quantidade de enzimas do fígado, pelo tipo de reação, relação de causa e consequência, e exclusão de outros motivos, explica o hepatologista Paulo Bittencourt, presidente do Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig).
Alguns indivíduos podem evoluir e chegar ao nível de precisar de transplante. "Sem ele, a sobrevida é nula”, afirma o hepatologista.
Leia continuação: Lesão no fígado por medicamentos como Ivermectina pode tornar covid mais grave