Herança maldita
De novo a herança maldita?
Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 9 de novembro de 2022
Quando Lula foi eleito em 2002, o PT se referia à dívida pública deixada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) como “herança maldita” e o seu programa de governo trazia, em seus itens 51 e 60, textualmente:
“O Brasil deve assumir uma posição internacional ativa sobre as questões da dívida externa, articulando aliados no processo de auditoria e renegociação da dívida externa pública, particularmente de países como o Brasil, o México e a Argentina, que respondem por grande parte da dívida externa mundial e, não por acaso, tem grande parte de sua população na pobreza.”
“A perspectiva de colocar o social como eixo do desenvolvimento exigirá uma revisão completa das atuais políticas que colocam a dívida financeira e seus credores como a prioridade número um do Estado brasileiro”.
Se esse compromisso com a realização da auditoria da dívida externa tivesse sido realizado, teriam sido comprovadas as diversas ilegalidades, ilegitimidades e até fraudes, que permearam as diversas negociações de dívida externa desde o início da ditadura militar.
Isso passa também pelos acordos feitos pelo Banco Central na década de 1980, quando a autarquia assumiu o papel de devedor de dívidas externas do setor privado, incluídas as grandes multinacionais e bancos, seguida de obscura negociação realizada em Luxemburgo no início dos anos 1990.
Foi quando a dívida dos referidos acordos – manchada de suspeita de prescrição – foi ressuscitada e transformada em sete tipos de títulos de dívida externa, os chamados papeis podres resultantes de dívida suspeita de prescrição, que não poderiam ser negociados em nenhuma bolsa de valores do planeta, mas foram aceitos no Brasil como moeda de privatização.
Esses títulos foram usados para comprar nossas estatais, inclusive a Vale do Rio Doce e também transformados em outros tipos de títulos de dívida externa, aparentemente mais institucionalizados, e em dívida interna, dando o pontapé para o crescimento exponencial dessa dívida, graças aos juros exponenciais praticados na década de 1990.
CPI da dívida pública
As investigações não tiveram prosseguimento, o que foi reconhecido como um erro pelo então Procurador Federal Eugênio Aragão em entrevista ao Viva-Roda em 2017.
A dívida interna seguiu crescendo ao longo dos anos, também sem auditoria, e, segundo dados do próprio Banco Central, é uma dívida feita de juros sobre juros, tendo em vista que o estoque de juros nominais acumulado ao longo do tempo supera o estoque da dívida líquida, conforme retrata o gráfico acima.
Portanto, temos uma dívida interna meramente financeira, resultante de juros sobre juros, sem contrapartida alguma em investimentos de interesse da sociedade, como já reconhecido pelo próprio Tribunal de Contas da União (TCU) em audiência pública realizada no Senado Federal.
Nessa audiência, o TCU afirmou que a dívida pública federal não tem financiado investimentos e ficou demonstrado que essa dívida tem servido para alimentar diversos mecanismos financeiros.
Bolsa-banqueiro herança
Dentre esses mecanismos, sobressai a remuneração da sobra de caixa dos bancos e a contabilização de juros como se fosse amortização, burlando-se sistematicamente a Constituição (Art. 167, III), entre outros mecanismos nocivos que nenhum governo tem tido a coragem para enfrentar.
A ausência de uma auditoria da dívida pública com participação social tem permitido o avanço dos mecanismos financeiros que utilizam o Sistema da Dívida para favorecer os bancos e grandes rentistas.
Conforme anunciado pelo Banco Central no início da pandemia, jogaram trilhões de liquidez para os bancos. A aprovação de outro mecanismo visa a remunerar a sobra de caixa dos bancos, os “depósitos voluntários remunerados”, que denominamos Bolsa-banqueiro, entre vários outros, em especial os elevadíssimos juros, sem limite, praticados no país, enquanto quase 80 nações mundo afora já praticam algum tipo de limite, como abordamos na importante Campanha pelo Limite de Juros no Brasil.
O resultado disso é o paradoxo que temos no Brasil: bancos batendo recordes de lucro a cada trimestre, enquanto a economia está estagnada. Voltamos ao mapa da fome e o país desce a ladeira no ranking do PIB mundial, praticamente em recessão, tal como pretendia o atual presidente do Banco Central.
Em números de setembro de 2022, a Dívida Pública Federal interna alcança R$ 7,5 trilhões e a Dívida Pública Federal externa, R$ 256 bilhões. Outra herança maldita?
A herança: dívida insustentável
Se tivéssemos uma dívida desse tamanho, mas que tivesse sido empregada em nosso desenvolvimento socioeconômico, o problema não seria tão grave. Mas até o TCU já afirmou que ela não tem contrapartida em investimentos, como antes comentado.
O problema cresce ainda mais diante dos elevadíssimos juros praticados no Brasil, que fazem com que essa dívida se multiplique por ela mesma e se comporte como uma verdadeira correia de transmissão de dinheiro da sociedade para os bancos e grandes rentistas.
Essa dívida é insustentável!
Há décadas o Tesouro Nacional está emitindo títulos para pagar juros, fazendo a dívida explodir.
Por sua vez, o Banco Central aumenta ainda mais as taxas de juros, sem justificativa sustentável, pois mente descaradamente ao afirmar que precisaria subir juros para conter inflação, quando todo mundo sabe e o IBGE divulga que o tipo de inflação que existe no Brasil decorre do aumento dos preços administrados (combustíveis, energia, medicamentos etc.) e de alimentos, os quais não reduzem quando os juros sobem.
Só esse recente aumento dos juros pelo Banco Central (de 2% para 13,75% a.a.) corresponde a um aumento dos gastos com juros da dívida pública em mais de R$ 410 bilhões por ano.
A cada 1% de aumento na Selic, o gasto com juros da dívida tem um aumento de R$ 34,9 bilhões, segundo divulgado pelo Banco Central..
Essa dívida gigante tem sido usada como justificativa para contínuas contrarreformas como a Administrativa e da Previdência; privatizações insanas como a Eletrobras, refinarias da Petrobras, Porto de Vitória, Santos etc.; além de contingenciamentos, corte e teto de gastos para que mais e mais recursos se destinem ao pagamento dessa chamada dívida pública.
Dinheiro do povo para os especuladores
Nesse contexto, ainda tem gente que diz que a dívida não seria um problema e que pelo fato de estar em sua maior parte em reais, bastaria o Banco Central emitir moeda e pagá-la.
Ora, quem diz isso ainda não enxergou o funcionamento do Sistema da Dívida.
Caso o BC independente emita moeda e pague essa dívida de quase R$ 8 trilhões, no dia seguinte ela nascerá novamente, pois esse dinheiro irá parar nos bancos e o BC irá enxugá-lo por meio das Operações Compromissadas e gerar a mesma dívida novamente, cada vez mais onerosa.
Temos que lutar para que o BC emita moeda direcionada para investimentos geradores de emprego, renda e resgate da dignidade da economia brasileira, completamente subjugada a interesses especulativos e falta de transparência.
Outros dizem também que estaríamos apenas “rolando” a dívida…
Ora, os que afirmam isso desconhecem a manobra da contabilização dos juros como se fosse amortização.
Não estamos rolando, mas sim pagando juros com a emissão de novos títulos, sobre os quais incidirão novos juros sobre juros, provocando o crescimento exponencial do esquema de transferência de dinheiro do povo para os especuladores.
Todas essas evidências reforçam ainda mais a necessidade de realização da auditoria integral da dívida pública, com participação social, para enfrentarmos de vez essa maldita herança.
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.