Homeschooling como prioridade
Governo define homeschooling como prioridade à frente de temas estruturais apesar de modalidade atingir apenas 0,04% dos alunos
Única prioridade da educação de uma lista de 35 pontos que o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso no começo desse mês, a prática de homeschooling passou à frente de temas que impactam estruturalmente os mais de 39 milhões de alunos brasileiros de escolas públicas. A modalidade, segundo estimativa da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), tem quase 18 mil alunos no país – 0,04% do total de estudantes brasileiros no ensino regular.
– Temos pautas que precisam avançar agora. Temos a regulamentação do Fundeb; o Sistema Nacional de Educação, para uma recuperação melhor da aprendizagem que a gente perdeu na pandemia; e a lei do piso, que está desatualizada – afirma Lucas Hoogerbrugge, gerente de Estratégia Política no Todos Pela Educação. – Sem falar nas medidas emergenciais. Há um projeto de lei para coordenar a volta às aulas, outro para expandir a conectividade dos alunos e também há a respeito de políticas docentes, que precisam ser discutidas.
Defensores da modalidade alegam que o ensino está há 25 anos esperando regulamentação e, com cada vez mais pessoas aderindo à prática, necessita ser juridicamente resolvida.
– A educação domiciliar, como uma realidade social, já existe há algumas décadas no Brasil. O que está acontecendo agora é um movimento de reconhecimento jurídico. O ideal é ter uma boa lei de nível nacional. Não havendo, estados e municípios têm esse direito e isso já está acontecendo – defende Alexandre Magno Fernandes Moreira, advogado autor do livro “O Direito à Educação Domiciliar”.
Em 2018, o STF considerou que os pais só teriam direito a retirar seus filhos da escola em locais com o homeschooling regulamentado. No Distrito Federal, isso foi feito no fim de 2020. Vitória, no Espírito Santo, e Cascavel, no Paraná, também já finalizaram esse processo. Na cidade do Rio, o vereador Carlos Bolsonaro apresentou um projeto de lei do tipo há duas semanas.
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro assinou um projeto de lei (PL) para regulamentar o homeschooling. A expectativa é a de que a eleição de Arthur Lira (PP), deputado aliado do governo federal, para a presidência da Câmara dos Deputados abra caminho para a aprovação da lei.
O PL assinado por Bolsonaro, que ainda está em tramitação, diz que famílias poderão optar pela modalidade se registrando em uma plataforma do governo federal apresentando plano pedagógico individual, proposto pelos pais ou pelos responsáveis legais, e a inserção de registros periódicos das atividades pedagógicas do estudante na plataforma.
Os estudantes, nesse modelo, seriam avaliados anualmente, com a possibilidade de uma prova de recuperação. A família cuja criança que não passar por dois anos consecutivos no exame perde o direito do ensino domiciliar. Caso perca a prova, o aluno também deverá voltar ao modelo escolar de ensino.
– No caso de ser regulamentado, é preciso que o Brasil encontre o seu próprio modelo e não o “importe” de outras realidades, mas que ele seja pensado de acordo com as necessidades das famílias que já praticam a educação domiciliar e que, de fato, necessitam dessa modalidade – afirma Maria Celi Vasconcellos, professora da Uerj e organizadora do livro "Educação domiciliar no Brasil: Mo(vi)mento em debate" .
Perfil variado
O ensino domiciliar é uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro e atende a uma parte da sua base eleitoral. Ele já chegou a afirmar que a modalidade “ajuda a combater o marxismo”. Alexandre Magno Fernandes Moreira, no entanto, afirma que não há uma homogeneidade entre os adeptos do homeschooling.
– Há, de fato, uma proporção grande de conservadores. Mas também tem uma proporção considerável de famílias que estão no campo progressista que veem a escola como uma espécie de centro de formação capitalista – diz. – A classificação que fazem do ensino domiciliar como ‘pauta de costumes’ é uma forma pejorativa para tratar o tema. Essa é uma questão de liberdades civis, autonomia da família. É a possibilidade de cada pai e mãe poderem escolher o que é melhor para os seus filhos.
Pesquisadora do tema, Maria Celi Chaves Vasconcelos afirma que o perfil de famílias que praticam o ensino domiciliar no Brasil vai desde aquelas que podem ser consideradas ligadas a uma religião, na qual outros adeptos a influenciaram a aderir à educação domiciliar, até famílias com estilos de vida alternativo:
– Famílias que viajam constantemente, que têm crianças que necessitam de atendimento especializado, que têm filhos que sofreram bullying na escola… – explica.
A mineira Kátia Nunes, de 36 anos, viveu em cinco cidades, de quatro regiões diferentes do país, nos últimos três anos por causa do emprego do marido, técnico de futebol. Por isso, optou por ensinar os filhos em casa – atualmente, Florianópolis.
– Meus filhos têm uma rotina diária de estudos e acompanham o que aprenderiam na escola, mas no ritmo deles. Caso se interessem por algo, nos aprofundamos no assunto. Se tiverem dificuldade em algo, levamos o tempo que for necessário. Quando tenho problemas para ensinar meus filhos, contrato tutores para eles – conta a mãe de Nina, de 7 anos, e Arthur, de 11.
Formada em enfermagem e gastronomia, Kátia é cristã, crítica do governo Bolsonaro e ensina questões raciais (“Com amor”, ela diz) aos filhos.
– Mesmo as famílias educadoras apoiadoras do governo não são, em sua maioria, fanáticos que ensinam criacionismo aos seus filhos. Não vejo essa loucura fundamentalista dentro da comunidade homeschool. Essa é a minha experiência – conta.
Entre os 36 países da OCDE, 30 têm regulamentações estabelecidas para o ensino domiciliar. Nos EUA, há programas nos quais os alunos aprendem com professores à distância, uma forma similar ao que acontece no Brasil durante a pandemia. Já o modelo inglês é mais parecido ao que o movimento pró-educação domiciliar defende no Brasil, com a família sendo responsável pela educação de seus filhos.
– A experiência americana criou um mercado de soluções pedagógicas que tem o objetivo de diminuir a matrícula na escola. A promessa desses grupos é de que, em casa, você gasta até 60% a menos com a educação de seus filhos. O risco é regulamentar o homeschooling no Brasil, com a justificativa de atender 10 mil famílias, e incentivar modelos flexíveis de escolarização que são perigosos – afirma Salomão Ximenes, pesquisador da UFABC.
Na avaliação do especialista, o momento da pandemia, com restrições orçamentárias severas para gestores públicos, pode transformar o ensino híbrido como uma alternativa permanente, flexibilizando a frequência do estudante e a oferta de vagas.
– Essa alternativa da educação domiciliar adaptada às classes populares pode ser chamativa para gestores preocupados com o orçamento e o impacto das desigualdades educacionais pode ser perigosíssimo – afirma.
Na avaliação de Vasconcellos, o isolamento social mostrou que é preciso mais pesquisas e maior aprofundamento sobre a educação domiciliar para que se possa entender suas possibilidades, limitações e perspectivas para além dos fenômenos conjunturais vividos durante a pandemia.
– Ainda assim, a maior lição que o isolamento social imposto pela pandemia trouxe para a educação foi justamente a importância do cotidiano escolar, a insubstituível presença dos espaços compartilhados entre os estudantes, cada um deles fazendo parte da memória da escola presente em todos nós – alega a especialista.