Homeschooling e Bolsonaro

Homeschooling e Bolsonaro

Duas Crianças Estudando Na Mesa De Uma Sal De Estar – Jessica Lewis   Unsplash

Homeschooling e Bolsonaro: tudo a ver – Parte I

Maria Amália de A. Cunha*

Glauber Loures de Assis**

Caros e Caras leitores e leitoras,

Os efeitos deste isolamento provocado pela gravíssima crise sanitária e política que vivemos têm nos colocado enormes desafios cotidianos. E eles não são poucos. A divisão sexual do trabalho doméstico, o home office, a necessidade do aprendizado rápido de novas ferramentas e linguagens digitais e, claro, o cuidado e a educação das crianças e jovens são esfinges às quais precisamos decifrar dia após dia.

Nesse contexto pandêmico, temos refletido com muita preocupação acerca de uma série de questões educacionais que ainda não tinham atravessado nossa realidade cotidiana de forma tão crua e cruel.

E, como pessoas que têm vivenciado esses desafios no âmbito da educação a partir de um duplo papel -de pai e mãe e também de sociólogos-, queremos compartilhar com vocês algumas dessas reflexões que tem exigido de nós um olhar mais atento e sensível.

Para tanto, partimos aqui do reconhecimento da desigualdade como um fenômeno estrutural que permeia o ensino. Desigualdade que, nunca é demais sublinhar, tem caráter multidimensional e não se reduz a fatores puramente econômicos.

Pensando nesta distribuição tão desigual de recursos que assola o país, que não permeia somente a estrutura das escolas, mas atinge diretamente o seio das famílias e suas mais diferentes configurações e condições socioeconômicas,o fato é que, muitas vezes pela simples e dura falta de alternativas,a maioria das famílias acaba se deparando com o ensino domiciliar.

Em tal cenário, é importante refletirmos sobre o assim chamado homeschooling, e sobre as razões pelas quais esta modalidade de ensino foi reacesa, ainda antes da pandemia, sob o governo Bolsonaro.

Mas o que é exatamente este tal de homeschooling?

homeschooling, ou ensino domiciliaré uma prática adotada em mais de 63 países do mundo. A prática exige um investimento pessoal e técnico dos pais que, como uma espécie de preceptores, tomam para si a responsabilidade de escolarizar seus filhos, através do acompanhamento e uma orientação educacional personalista.

Não temos aqui a pretensão de remontara uma origem do homeschooling, analisando a data do seu surgimento, suas motivações, adesões a este tipo de educação, etc. Isto porque o leitor, em uma rápida pesquisa na internet, pode encontrar dados suficientes para compreender como este fenômeno ressurgiu com bastante força nos EUA na década de 1980, com forte componente religioso, quando houve uma mudança na regulação fiscal das escolas cristãs.

No Brasil, no tocante à educação, até o momento impera a Constituição Federal, no seu artigo 205, que reza: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ainda de acordo com a Constituição, cabe ao Estado prever e prover a educação obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos.

O entendimento do CNE

-Conselho Nacional de Educação- é também aquele que está presente na nossa última LDB (LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL- Lei 9.394 de 1996), que estabelece que o ensino obrigatório deve ocorrer na escola.

Entretanto, nos últimos anos vimos este debate ser pautado em várias instâncias, de maneira relativamente silenciosa, como um dos principais argumentos de que a educação doméstica seria uma alternativa às escolas sucateadas e precarizadas, além de uma forma de ‘proteger’ as famílias contra a violência existente em muitas escolas públicas.

Após a eleição de Bolsonaro, este tema começou a ser pautado de forma mais permanente e pública, por meio da judicialização dos casos de algumas famílias que querem educar os seus filhos em casa, e pela própria defesa da modalidade pelo presidente da república, que a encampa como uma bandeira pessoal. O tema tramita tanto no Congresso Nacional quanto no STF (Supremo Tribunal Federal), e as famílias favoráveis à educação domiciliar aguardam a decisão do Supremo sobre a constitucionalidade de tal prática.

Por sua vez, também há entusiastas do homeschooling que se aproximam de um movimento que ficou conhecido como desescolarização, que criticava a compulsoriedade da educação escolar, e teve como um de seus expoentes mais conhecidos Ivan Illich, que dizia não ser possível uma educação universal através da escola.

Entretanto, no Brasil, é somente com Bolsonaro que o homeschooling emerge como uma política de governo no Brasil. Resta saber as razões disso, e que forças sociais e grupos de pressão se mobilizam em torno dessa agenda bolsonarista.

O atual governo federal elegeu, desde o início de seu mandato, o homeschooling como uma de suas prioridades.Um marco importante desse posicionamento se dá no dia 11/04/2019, quando o Presidente da República assina um PL que regula o ensino domiciliar de crianças e adolescentes. O PL foi assinado para “comemorar” os 100 dias de governo.

Meses depois, em setembro de 2019, o STF considerou a medida ilegal, por não haver uma regulamentação sobre a prática. Enquanto em sua propaganda o governo estimava a monta de 31 mil famílias adeptas da educação domiciliar, a ANED (Associação Nacional do Ensino Domiciliar) divulgava o número de 7, 5 mil famílias adotando esta modalidade de ensino em 2018.

Se levarmos em conta, segundo os dados da PNAD de 2017, que o rendimento médio domiciliar per capita dos brasileiros girava em torno de R$1.271,00, quem seriam essas famílias dispostas a realizar o ensino domiciliar e qual a razão deste projeto? E, se o número de adeptos corresponde a uma ínfima fração da população brasileira, por que o assunto recebe tantos holofotes?

Antes de respondermos a essas questões, vale lembrar que homeschooling não é sinônimo de ajudar os filhos no “para casa” de matemática, assistir vídeo-aulas no YouTube, contar histórias antes de dormir ou tirar a criança do tédio cantando canções da Galinha Pintadinha.

Uma coisa é atenção familiar, comprometimento afetivo e acompanhamento do percurso educacional das crianças. Outra coisa é homeschooling.

* Socióloga, Professora do DECAE na Faculdade de Educação da UFMG;

** Sociólogo, bolsista CAPES de pós-doutorado (PNPD) noPPGS – FAFICH.


Imagem de destaque: Jessica Lewis / Unsplash

http://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/homeschooling-e-bolsonaro-tudo-a-ver-parte-i/ 

 

Homeschooling e Bolsonaro: tudo a ver – Parte II

Criança Com A Mão Direita Sobre Um Livro, Apontando Para Uma Das Linhas. Priscilla Du Preez   Unsplash

Maria Amália de A. Cunha*

Glauber Loures de Assis**

Homeschooling é uma modalidade específica de ensino, através da qual os pais (ou tutores e professores particulares) se tornam os responsáveis pela formação educacional e a aprendizagem dos filhos, incluindo aí um projeto pedagógico completo, que passa pela alfabetização e pelos diferentes ramos do conhecimento, da matemática à história. É transferir para a esfera familiar o papel atribuído à escola desde a Constituição de 1988.

Para tanto, é necessário, antes de mais nada, tempo livre para a formação educacional das crianças no seio familiar. E você acha que uma diarista precarizada, que ganha um salário mínimo, pega dois ônibus por dia para chegar ao trabalho e dois ônibus para voltar em horário de pico e chegar à noite em casa, tem tempo disponível para se tornar homeschooler?

Ou que um entregador do iFood que se arrisca em jornada dupla pelas ruas de Belo Horizonte para colocar comida na mesa se compraz naturalmente pela construção de um plano de ensino e a organização e acompanhamento diário do percurso formativo de seus filhos em casa?

Tais perguntas, cuja resposta é óbvia, revelam algo muito importante, a saber, que existe um forte componente de classe ligado à prática da educação domiciliar. Para falar na linguagem sociológica de Thorstein Veblen, homeschooling é coisa da classe ociosa. Ou de quem tem dinheiro para pagar babá e professor particular.

Mas, como já lembramos aqui, a realidade social é complexa, e o componente econômico não dá conta de explicar as afinidades eletivas entre o bolsonarismo e o homeschooling. Um componente igualmente importante é o fundamentalismo religioso.

Uma constante na defesa do ensino domiciliar são as justificações de cunho religioso, inclusive nos casos judicializados. A recusa em colocar os filhos em contato com a obra de Charles Darwin, o temor de pensar o ser humano como “evoluído do macaco”, a crítica à física newtoniana e à hipótese do Big Bang são posicionamentos comuns entre homeschoolers. Bem como o temor da “subversão” das relações e papeis de gênero, afinal, “menino veste azul e menina veste rosa”. Ao fim e ao cabo, em pleno século XXI revisita-se no país a relação beligerante entre igreja e Estado, público e privado, ensino confessional e ensino laico.

Tal cenário é reforçado pelo protagonismo de agentes religiosos na esfera política, como é o caso dos representantes da assim chamada “bancada evangélica”, de prefeitos pastores e de ministros de Estado que adotam uma postura assumidamente proselitista em seu ofício, como é o caso de Damares Alves, que chefia a pasta da Mulher, dos Direitos Humanos e da Família e é uma das principais porta vozes do ensino domiciliar no governo, sem falar no “Ministro Pastor”, Milton Ribeiro, Ministro da Educação e Pastor presbiteriano nas horas vagas.

Matéria da Folha de São Paulo do dia 13 de setembro de 2020, a chamada ‘pauta dos costumes’ é reacesa no Congresso: “A gente quer tocar homeschooling, armas e trânsito”, sentencia Ricardo Barros, o líder do Centrão e do Governo na Câmara.

Sabe-se que Bolsonaro foi eleito com o apoio massivo de religiosos, especialmente evangélicos, tendo feito, em contrapartida, uma série de acenos a esses setores, como ter sido batizado no rio Jordão pelo Pastor Everaldo, então presidente do Partido Social Cristão, que se encontra hoje encarcerado preventivamente por desvios na verba da Saúde do RJ. A defesa do homeschooling também cumpre a função de agradar a esses setores religiosos fundamentalistas que compõem uma importante base do bolsonarismo.

De forma complementar ao fundamentalismo religioso e à classe ociosa, completam o quarteto fantástico do ensino domiciliar bolsonarista o neoliberalismo, representado por grupos como MBL e por agentes como Paulo Guedes, adeptos da privatização irrestrita da educação, e setores político-ideológicos conservadores, como o “Escola Sem Partido”, que promovem uma cruzada moral contra o “comunismo”, a “ideologia de gênero” e outros temas considerados como “ameaças” à família e aos bons costumes.

Sob o embrulho poético da proteção das crianças e de uma educação humanista e personalizada, a defesa do homeschooling no Brasil revela sobremaneira uma agenda política específica e consciente de seus objetivos. Anti-iluminista, privatista, fundamentalista e excludente, ela defende o domínio da família e da religião na formação das crianças. Despreza a importância da socialização em ambiente escolar, a diversidade de visões de mundo como componente constitutivo da formação para a cidadania e o direito universal à educação, garantida pelo Estado.

Longe de propor soluções para os problemas estruturais das políticas públicas e das desigualdades educacionais no Brasil, o homeschooling é só mais um sintoma da crise, que anda de mãos dadas com o fundamentalismo religioso, a perda de direitos fundamentais e o desmonte dos serviços públicos.

Tudo a ver com Bolsonaro.

* Socióloga, Professora do DECAE na Faculdade de Educação da UFMG;

** Sociólogo, bolsista CAPES de pós-doutorado (PNPD) noPPGS – FAFICH.

Confira a primeira parte desse texto.


Imagem de destaque: Priscilla Du Preez / Unsplash

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