Ideologia de gênero

Ideologia de gênero

IDEOLOGIA DE GÊNERO

O presidente da república, Jair Bolsonaro, repete com muita frequência que ele luta contra a “ideologia de gênero” que, supostamente, seria trabalhada nas escolas brasileiras. Qual é a origem dessa expressão? O que ela significa? “Ideologia de gênero” existe? Esse é um tema fundamental para a educação brasileira?

Muitos apoiadores do presidente reproduzem suas falas sobre o assunto, se mobilizam “contra a ideologia de gênero”. Será que eles sabem do que estão falando?

Como professor de licenciaturas e doutor em Educação, me sinto impelido a escrever um breve texto para esclarecer essas questões.

Depois da IV Conferência da ONU sobre a Mulher em Beijing, em 1995, intelectuais laicos e lideranças religiosas católicas cunharam a noção de “ideologia de gênero” para contrapor avanços nos direitos sexuais e reprodutivos, pautas trazidas pelos movimentos políticos de mulheres. Em 1997, o então Cardeal Joseph Ratzinger – depois Papa Bento XVI – alertava que o uso do conceito de gênero contradizia o catolicismo. Em 1998 a expressão começou a se disseminar na Conferência Episcopal da Igreja do Peru, e ganhou força em 2007 na conferência do Caribe.

O conceito de gênero trouxe para a agenda de direitos humanos demandas envolvendo sexualidade, em particular, das homossexualidades e das diferentes identidades de gênero.

Passou a estar presente nos acordos internacionais. Algo que preocupou vários grupos religiosos.

Mas o verdadeiro disparador do pânico moral sobre “ideologia de gênero” na América Latina foi o reconhecimento legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo na Argentina, em 2010, e no Brasil, em 2011. Cerca de uma semana depois desse fato no Brasil, o então deputado Jair Bolsonaro encabeçou movimento contra o material (apelidando “kit gay”) que seria distribuído nas escolas para enfrentar a discriminação e a violência contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais.

Bolsonaro logo contou com apoio da chamada bancada evangélica e, de forma menos visível, de congressistas católicos e conservadores agnósticos. Construía-se a imagem da criança sob ameaça (pânico moral - Stanley Cohen), estratégia bem-sucedida pois conseguiu o veto de
Dilma à distribuição do material.

O interesse evangélico, sobretudo neopentecostal, de protagonismo em um Congresso majoritariamente católico fez com que essa bancada concentrasse fogo nessa pauta e passasse a impressão de que eram só eles a evocarem o perigo do que chamavam “ideologia de gênero”.

O debate do Plano Nacional de Educação, feito nesse período e concluído em 2014, foi palco para a bancada evangélica travar uma luta para retirar a palavra gênero da lei, venceram. Na discussão de vários planos estaduais e municipais de educação esse tema foi central.

É em 2014 que uma aliança política fundamental se estabelece. Um movimento inexpressivo, iniciado em 2004 para combater a "doutrinação marxista”, chamado Escola sem Partido, assume protagonismo junto da bancada evangélica na denúncia do que chamam de “ideologia de gênero”.

Estamos falando aqui de uma cruzada moral organizada contra os direitos reprodutivos das mulheres e os direitos dos homossexuais, dois grandes focos de rejeição das doutrinas religiosas que embasam tal movimento. A noção de "ideologia de gênero" traz consigo um discurso e um diagnóstico de que a origem de problemas sociais resulta de mudanças comportamentais das pessoas, mesmo que não haja evidências científicas que sustentem essa tese.

Esse discurso é reproduzido de modo intenso pelo grupo político que está no governo hoje no Brasil. O presidente Bolsonaro se pauta nessa narrativa para propor combater algo cuja existência prática e sistêmica nas escolas não é chancelada por nenhuma produção científica séria.

A força da gramática política envolvendo a noção de “ideologia de gênero” chegou ao seu ápice com a eleição de Bolsonaro. A ponto de ele defender projetos de lei que objetivavam impor como únicos, valores/práticas morais de um grupo específico que faz parte de sua base política.

Essas propostas perderam força porque o STF julgou inconstitucional (fere princípios constitucional da liberdade e do pluralismo – incisos II, III do Art. 206) as propostas do Escola Sem Partido (movimento que acabou em função da decisão ter repercussão geral).

Educação sexual para prevenção de abusos e doenças, combate a homofobia e ao preconceito, ao racismo e trabalhos para o reconhecimento da diversidade humana, denúncia das desigualdades entre os sexos são algumas das ações que os críticos da suposta “ideologia de gênero” combatem. Todas essas ações estão no escopo do papel da escola e são exigências legais.

O art 3° da Constituição Federal traz os quatro objetivos da República Federativa do Brasil, leia um deles:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Veja uma das atribuições da escola prescrita no artigo 12 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB):

IX - promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência;

Veja o que está dito no artigo 26 da LDB que trata do currículo da educação básica:

§ 9º Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher serão incluídos, como temas transversais, nos currículos de que trata o caput deste artigo, observadas as diretrizes da legislação correspondente e a produção e distribuição de material didático adequado a cada nível de ensino.

É obrigação da escola tratar do tema e é parte obrigatória do currículo.

O que produzem, na prática, aqueles que bradam contra a “ideologia de gênero”? A manutenção da subalternidade social daqueles que o conceito de gênero (mais elástico e não binário) acolhe dentro do humano. Dito de outra forma, na medida em que se rejeita a necessária abordagem sobre a diversidade humana e o combate à discriminação nas escolas, está se aceitando que a atual situação de desigualdade que vitima muitas pessoas em função do preconceito é “normal/natural”. O Brasil é o país que mais mata a população LGBTQIA+ (https://www2.camara.leg.br/.../brasil-e-o-pais-que-mais...).

Quem advoga ser contra a “ideologia de gênero” precisa compreender que está propondo delimitar o Estado como espaço masculino/heterossexual, refratário às demandas femininas e de expansão de direitos àqueles que consideram "ameaçar sua concepção tradicional". Está propondo que sua visão religiosa de mundo e de ser humano seja a adotada pelo Estado e suas políticas, como a educacional. O problema é que o Estado é laico e deve garantir o direito de todos.

Não é demais lembrar, portanto, que “ideologia de gênero”, “doutrinação” e outros moinhos de vento ideológicos não estão no rol dos nossos problemas educacionais, crer nisso é tolice, garanto. Quem se arvora no direito de gritar, ameaçar ou reclamar de uma escola com base em prerrogativas ligadas a “ideologia de gênero” saiba que:

1 – você corre o risco de estar passando vergonha ao reproduzir conteúdo conspiracionista de grupos de extrema direita, gestores escolares têm muito claro que isso não é uma questão e sabem muito bem a origem dessas bobagens;

2 – se você acredita genuinamente em tal conteúdo é importante que reflita sobre o volume de preconceitos que informam sua visão de ser humano e de sociedade;

3 - você está falando de um tema que não entende, a educação infelizmente é uma área sobre a qual muita gente se sente autorizada a opinar sem ter formação e conhecimento, imagine isso acontecendo em outros campos profissionais.

Indico a leitura de dois artigos acadêmicos para quem deseja se aprofundar no tema:




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