Ideologia na alfabetização
Governo Bolsonaro: Contra 'ideologia' na alfabetização, novo secretário quer guinada metodológica no ensino
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14 janeiro 2019
"O trabalho do Carlos Nadalim é a única alternativa aos 80% de analfabetos funcionais das universidades brasileiras", exalta postagem de 2017 em uma das páginas oficiais de Olavo de Carvalho no Facebook.
Essas elevadas expectativas poderão agora ser testadas na prática. Carlos Nadalim, coordenador pedagógico de uma pequena escola em Londrina (PR) e autor do blog "Como Educar seus Filhos", estará à frente da nova Secretaria de Alfabetização, criada pelo ministro da Educação, Ricardo Vélez, outro nome elogiado por Olavo.
Para o novo secretário de alfabetização, uma das causas principais do alto analfabetismo funcional (quando a pessoa reconhece as letras, mas não consegue interpretar textos simples) no Brasil é a prevalência nas diretrizes do Ministério da Educação de métodos de ensino "construtivistas" - abordagem em que a criança é vista como construtora do conhecimento e o aprendizado do alfabeto ocorre de forma integrada com o uso social da leitura e escrita.
Nadalim defende como alternativa o "método fônico", que apresenta as crianças às letras e aos sons da fala antes de iniciá-las em atividades com textos.
Esse tipo de disputa em torno da melhor forma de ensinar o alfabeto não é exclusiva do Brasil. Em países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, o conflito ficou conhecido como "reading wars" (guerras da alfabetização) e acabou influenciando debates em outros locais.
Mas o que dizem os especialistas sobre o assunto?
"Vilão da alfabetização"
Em um dos seus vídeos no YouTube, onde tem um canal com mais de 5 milhões de visualizações, o novo secretário Carlos Nadalim argumenta que o que chama de método construtivista "demonstra uma preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista, em formar leitores críticos, engajados e conscientes".
Por outro lado, diz na gravação, as diretrizes do Ministério da Educação (MEC) não trazem "uma orientação clara com base em evidências científicas comprovadas e atualizadas de como alfabetizar as crianças".
"Há tanta preocupação em fomentar a socialização e em promover uma visão crítica na criança que resta pouco tempo e pouco investimento para ensinar o básico, o fundamental", conclui Nadalim, após criticar a educadora Magda Soares, professora emérita da UFMG tida como referência nacional em alfabetização.
Para o novo secretário, o "letramento", conceito difundido no país a partir dos anos 1980 pela educadora e usado nos documentos do MEC, é o "vilão da alfabetização" no país.
Como saída, Nadalim e outros adeptos da ênfase na fonética defendem o "método fônico". Nele, a criança deve primeiro ser exposta a atividades que reforcem a relação entre as letras e os sons da fala (grafemas e fonemas), pois assim aprendem a decodificar e codificar a linguagem escrita, para depois evoluir aos textos. Seus defensores argumentam que estudos internacionais já comprovaram a superioridade dessa abordagem.
Em outro vídeo, Nadalim exemplifica como usar o método usando o livro "O Batalhão das Letras", de Mario Quintana, que traz grandes desenhos do alfabeto. Ao abrir a página do "F", ele fala os nomes correspondentes a desenhos enfatizando o início das palavras: "Ffffrades, ffffformigas, ffffiga, fffflor", recita o secretário.
"Guerrinha de métodos é perda de tempo"
Não se sabe ainda como, mas a expectativa é que Nadalim tentará implementar grandes mudanças nas diretrizes de alfabetização do país. A BBC News Brasil tentou contato com o secretário em seu blog e no MEC, mas a assessoria do ministério disse que a nova equipe ainda não está atendendo pedidos de entrevistas.
Pesquisas deixam claro que há um problema a ser enfrentado. Numa lista de 70 países analisados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), o Brasil está na 59ª posição em leitura e na 66ª colocação em matemática.
Já um estudo realizado no ano passado pelo Ibope Inteligência em parceria com a ONG Ação Educativa estima que 29% dos jovens e adultos brasileiros de 15 a 64 anos (cerca de 38 milhões de pessoas) sejam analfabetos funcionais.
Para estudiosos da alfabetização ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, esse quadro não pode ser atribuído a uma questão de método. Parte dos entrevistados considera, inclusive, que Nadalim tem percepções equivocadas sobre o que seja construtivismo, letramento e a abordagem fônica. E ressaltam que, na prática, o que se vê na sala de aula é um mix de ferramentas teóricas e metodológicas.
"Eu acho uma perda de energia, tempo e neurônios estabelecer essa guerrinha, essa oposição entre método fônico e um método mais global ou construtivista. É absolutamente improdutivo", afirma a professora Izolda Cela, hoje vice-governadora do Ceará.
Cela esteve à frente do processo que, a partir de 1997, implementou um programa de alfabetização extremamente bem-sucedido em Sobral (CE). No ranking de redes de ensino municipais, a cidade tem os maiores nota no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) para o ensino fundamental. No caso dos anos iniciais (1º ao 5º ano), o Ideb de Sobral é de 9,1, contra 5,5 da média de todas as redes municipais de ensino do país.
Para a vice-governadora, que coordenou o programa e depois se tornou secretária de educação de Sobral e do Ceará, o sucesso do programa não decorre do método, mas de um conjunto de fatores como a valorização e qualificação constante dos professores, o planejamento detalhado das atividades em sala de aula com alinhamento ao material didático, as metas claras de alfabetização e as avaliações externas realizadas pelo município semestralmente para medir a aprendizagem dos estudantes.
No caso de Sobral, disse ainda, o programa aplica tanto princípios do letramento, de Magda Soares, como material didático de abordagem fônica do Instituto Alfa e Beto, fundado por João Batista Oliveira. Quando o modelo foi ampliado para outras cidades do estado, conta, o governo pré-selecionou alguns materiais com diferentes ênfases metodológicas e permitiu que as redes municipais escolhessem o que mais se adequasse as suas necessidades.
Ex-secretário-executivo do MEC (1995) e psicólogo com doutorado em educação pela Florida State University (EUA), Batista Oliveira é um dos principais defensores do método fônico no Brasil, ao lado de Fernando Capovilla, professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo). Ambos são citados por Carlos Nadalim ao disparar suas críticas contra Magda Soares.
"Se a escola usa um método ou outro, não é determinante. O importante é se é bem organizado. O fator de fracasso (da alfabetização no Brasil) é o baixíssimo nível de institucionalidade da escola pública", acredita Cela.
"Fico apreensiva quando o novo secretário coloca o método como grande questão da alfabetização", disse ainda.
Mas, afinal, o que é letramento?
A professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Magda Soares está indignada com o que chamou de "forma equivocada e pouco respeitosa" como vem sendo criticada por Nadalim. Aos 86 anos, se recuperando de uma cirurgia, ela ainda assim tem atendido jornalistas para responder ao que classifica como "disparates" do novo secretário.
Seu livro "Alfabetização: a questão dos métodos", em que faz uma ampla revisão dos estudos na área, ganhou o prêmio Jabuti em duas categorias em 2017: melhor obra de não ficção e de Educação e Pedagogia. Desde 2007, a professora coordena de forma voluntária o programa de alfabetização da prefeitura de Lagoa Santa (MG). De lá pra cá, o Ideb para os anos iniciais do ensino fundamental da rede do município passou de 4,5 para 6,4.
Soares refuta a discussão em termos de "métodos fônicos" versus "abordagem construtivista". Ela concorda que a "aprendizagem das relações fonemas-grafemas" é essencial ao processo de alfabetização. Seu entendimento, porém, é que o ensino não deve partir das letras, já que as consoantes são "impronunciáveis isoladamente", mas primeiro da consciência das palavras e sílabas. Além disso, Soares considera "enfadonhos" exercícios fonéticos dissociados de textos escritos que dialoguem com realidade das crianças.
"As crianças aprendem com mais interesse e entusiasmo quando se alfabetiza com base em palavras e frases de textos reais, lidos pela professora, e em tentativas de escrever, de modo que aprender as relações fonema-grafema ganham sentido", defende.
À BBC News Brasil Soares ressaltou também que alfabetização e letramento são coisas distintas. O primeiro consiste na "aprendizagem de uma tecnologia", o sistema alfabético escrito e normas ortográficas, enquanto o segundo é o desenvolvimento de habilidades de interpretação e construção de textos.
"Embora sejam diferentes os processos de aprendizagem e de ensino, a criança se alfabetiza para ler e escrever textos, portanto, é artificial levar a criança a aprender a tecnologia - as relações fonema-grafema - desligada de seu uso. Por isso, a importância de alfabetizar e letrar de forma integrada", defende.
Disputa global
A disputa em torno da melhor forma de ensinar o alfabeto não é exclusiva do Brasil. Em países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, o conflito ficou conhecido como "reading wars" (guerras da alfabetização).
Em um amplo estudo publicado no ano passado, pesquisadoras de universidades britânicas e australiana tentaram por fim à disputa. Nele, as cientistas Anne Castles (Macquarie University), Kathleen Rastle (Royal Holloway University of London) e Kate Nation (University of Oxford) sustentam que a fonética é base essencial para se tornar um bom leitor, mas não é suficiente por si só.
"Uma criança não é alfabetizada a menos que possa entender o que está lendo, portanto, a alfabetização bem-sucedida também exige a aquisição de habilidades sofisticadas de compreensão de texto", disse à BBC News Brasil uma das autoras, Kathleen Rastle.
"Isso não significa que as habilidades devam ser ensinadas ao mesmo tempo. Há um forte consenso na pesquisa científica de que a fonética é base necessária para as habilidades de leitura de alto nível e, portanto, que a instrução inicial deve se concentrar em garantir que o conhecimento fonético da criança seja sólido", acrescentou.
Já a professora de Harvard Catherine Snow, referência no estudo de abordagens de alfabetização nos Estados Unidos, afirma que o ensino do "princípio alfabético", ou seja, a compreensão de que as letras representam sons previsíveis, não deve ocorrer dissociado de atividades que insiram as palavras em frases e histórias com sentido.
"Esse processo envolve lembrar o aprendiz que as palavras que ele pode decodificar pela relação letra-som são reais e com significado, que a razão de ler é entender a mensagem, não apenas pronunciar corretamente", argumenta.
Snow ressalta que os diferentes grupos de pesquisadores em geral concordam "em 90%" do que compõem um bom ensino de leitura e escrita, mas exageram a importância dos 10% de discordância.
"Todos admitem que as crianças precisam entender o princípio alfabético, que precisam ter fortes habilidades de linguagem oral, que devem escutar leituras em voz alta antes que possam ler (por conta própria) e que os materiais de leitura devem ser interessantes e motivadores etc.", ressalta.
"Ignorar esses pontos de concordância por causa de um nível diferente de ênfase na importância de ensinar explicitamente o princípio alfabético teve efeitos muito negativos na instrução de alfabetização nos Estados Unidos. Espera-se que o Brasil não repita essa história", crítica.
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