Impacto de transtornos mentais em alunos
Até 11% dos casos de repetição de ano, bullying e distorção idade-série seriam evitados com tratamento de saúde mental, diz pesquisa
Pesquisadores calculam o impacto de transtornos mentais em alunos da rede pública em Porto Alegre e São Paulo
06/01/2022
Desde 2010, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com outras instituições do país e do exterior, acompanharam 2.511 famílias com estudantes de seis a 14 anos de escolas públicas de Porto Alegre e São Paulo. Dessa pesquisa, surgiu uma conclusão: transtornos mentais durante a infância impactam o desempenho escolar de estudantes e, com melhor acompanhamento psiquiátrico, é possível aprimorar o desempenho educacional de alunos.
Com base nos dados de 2014, os pesquisadores estimaram que 154 mil casos de repetição de série, 591 mil casos de distorção idade-série e 236 mil casos de bullying ocorreram no Brasil devido aos transtornos mentais não prevenidos ou tratados.
Segundo os pesquisadores, seria possível evitar de 5 a 11% dos casos de repetição de ano escolar, bullying e distorção idade-série no Brasil com melhores condições de tratamento em saúde mental durante a infância e adolescência.
A pesquisa resultou na publicação do artigo The impact of child psychiatric conditions on future educational outcomes among a community cohort in Brazil (O Impacto de Condições Psiquiátricas Infantis em Futuros Resultados Educacionais entre um Grupo de Coorte no Brasil, em tradução livre). O artigo foi publicado no periódico Epidemiology and Psychiatric Sciences, editado pela Universidade de Cambridge.
De acordo com Maurício Hoffmann, professor do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pós-doutorando da UFRGS e um dos autores do artigo, Porto Alegre e São Paulo foram escolhidas por serem grandes capitais e serem a base de boa parte dos pesquisadores, que além da UFRGS também trabalham na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
— A ideia era observar crianças que já apresentavam algum problema de saúde mental lá no início e ver como isso se desenvolveria no futuro — diz Hoffmann.
A pesquisa, que também contou com a participação da London School of Economics e da Johns Hopkins University, teve por base uma pesquisa anterior encabeçada pelo Instituto Nacional de Psiquiatria para o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (INPD), instituto criado em 2009. O diferencial deste projeto é o cruzamento com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apresentam indicadores de cobertura educacional em nível nacional. A pesquisa também lançou mão de mecanismos de análise genética e por imagem, como no caso de ressonâncias do cérebro.
Até 11% dos casos de repetição de ano escolar, bullying e distorção idade-série no Brasil seriam evitados com melhores condições de tratamento em saúde mental, segundo pesquisa. Jefferson Botega / Agencia RBS
O que foi descoberto
Entre os 2511 estudantes que fizeram parte do estudo, foram priorizados 1500 que tinham registro de algum tipo de transtorno mental em suas famílias, como Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), ansiedade, esquizofrenia e depressão. O objetivo era o de formar uma base transgeracional a partir do estudo, observando os reflexos no desempenho escolar de pais para filhos.
— Se há casos [de transtornos] na família, há um alto risco para que a criança os desenvolva. Para que tivéssemos mais casos incidentes, o alto risco familiar se fazia necessário — explica Hoffmann.
Hoje, 80% dos estudantes, muitos já formados, seguem participando do estudo. A ideia é que o trabalho abarque mais de duas gerações, para que os filhos dos estudantes também sejam inseridos na base da pesquisa apresentada. Segundo o pesquisador, seria o primeiro estudo no Brasil a utilizar um recorte com tantas gerações e que abranja análise genética e de imagem.
Os transtornos que mais impactam no processo escolar são os externalizantes, ou seja, aparentes em comportamentos, como o TDAH e o transtorno de conduta na infância, que é a atitude mais agressiva e impulsiva por parte de crianças.
— Depressão e ansiedade também foram encontrados, além de fobias específicas — complementa o pesquisador.
Dentro do estudo, há a divisão dos estudantes entre o sexo feminino e o masculino. Hoffmann explica que a diferenciação se faz necessária porque em determinadas áreas, como é o caso da Educação e da saúde mental, de fato os resultados são muito diferentes de um sexo para o outro.
— Meninas tendem a ter menos problemas de desempenho escolar. Quando há algum caso de déficit de atenção, os efeitos são ainda mais importantes. E, por exemplo, não se espera que meninos manifestem sintomas depressivos e eles acabam mais excluídos, reprimidos. Meninos com transtornos depressivos repetem mais de ano — exemplifica Hoffmann.
O especialista acredita que a maior frequência de transtornos depressivos entre meninas se dê por origem traumática, como no caso de abuso sexual ou outros tipos de abuso na infância.
— Isso gera uma consequência. Talvez, se não houvesse esse tipo de trauma, que é uma questão social, as meninas teriam menos depressão — comenta o pesquisador.
Já o TDAH, mais frequente entre meninos, apresentaria maior explicação genética.
— Se tem uma ideia de que o homem pode ter pouco mais de “flutuação”, um atraso na capacidade atencional. Mas não se sabe exatamente ao certo por que entre os homens é mais frequente — complementa Hoffmann.
Como prevenir
A partir de cálculos feitos na pesquisa, um aumento de 10% na cobertura psiquiátrica preventiva em estudantes reduziria em até 8 mil o número de repetências ao ano. Atualmente, 20% das crianças brasileiras recebem diagnóstico ou tratamento por conta de TDAH, o transtorno mais frequente, segundo dados levantados por Paulo Matos, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nós pegamos dados do IBGE para estimar, com alguma margem de erro, o quanto isso se aplicaria ao nível nacional, dando conta de que são escolas públicas de centros urbanos _ explica Hoffmann.
Para Hoffmann, o caminho está em apostar em um rastreio integral das crianças na escola. Segundo ele, há pesquisas que apontam que os professores conseguem prever, com décadas de antecedência, uma série de manifestações futuras em termos de sucesso profissional e saúde mental.
— A escola é o local onde a criança está sendo observada o tempo inteiro. O professor tem um “olho” muito bom. Em termos nacionais, a escola deveria ser um local onde a saúde mental é observada e a criança, encaminhada para tratamento adequado — diz Hoffmann.
Patricia Bado, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Instituto de Ciência e Tecnologia de Okinawa, no Japão, se debruçou sobre os casos de alunos com transtornos mentais durante o período pandêmico. Ela concorda com Hoffmann quanto à necessidade de direcionar esforços a escolas, mas também cita a importância de envolver as famílias na observação.
— Teríamos de desenvolver um projeto que envolva escolas, famílias e jovens. Esse é o diferencial dos projetos bem-sucedidos, conectar a escola às famílias. Temos de ensinar as técnicas também às famílias — comenta a pesquisadora.
Giovanni Salum, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, foi coordenador da área técnica de Saúde Mental de Porto Alegre entre 2017 e 2019. Além de investir em avaliação sistemática anual de saúde e educação em todas as escolas, o professor estimularia atividades físicas e estratégias de mindfulness para adolescentes, uma vez que evidências apontam de que esses componentes previnem problemas de saúde mental, como depressão e ansiedade.
Segundo o professor da UFRGS, os sinais mais importantes para que um professor diferencie emoções e comportamentos típicos daqueles que podem representar um problema são: frequência, intensidade, contexto em que aparecem e impacto na vida diária (escola, amigos, família e nas atividades de lazer).
No Rio de Janeiro, onde atualmente vive Patrícia Bado, um projeto digital ensina técnicas de observação comportamental para pais de estudantes que apresentam sintomas de algum transtorno de saúde mental.
— É um programa que ensina técnicas comumente utilizadas na Clínica para os pais, técnicas que são muito caras e que exigem muitas sessões, e queremos agora levar para os professores — explica Bado, acrescentando que o projeto demanda financiamento junto à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Impactos do ensino remoto em alunos com problemas de saúde mental
Apesar de não estar inserido na publicação, o período da pandemia de covid-19 acabou sendo analisado na continuidade do projeto. Segundo Hoffmann, a capacidade de armazenar conhecimento por parte dos alunos caiu durante o ensino remoto e a evasão escolar, por sua vez, aumentou. Isso se dá porque alunos que possuem algum tipo de transtorno mental não se engajam o bastante para manter uma rotina escolar dentro de casa.
— As associações se mantêm, mas com a Covid as coisas tomaram outro patamar. Pessoas com problemas anteriores não conseguem se engajar no ensino remoto, mas o ensino remoto não está ocasionando novos transtornos — comenta Hoffmann.
Bado, que deve publicar em breve os resultados de pesquisa sobre os efeitos da pandemia de covid-19 em alunos com transtornos mentais, trabalhou com a mesma base de dados que o trabalho liderado por Hoffmann.
— Analisando os resultados, o pessoal que tinha mais sintomas antes da pandemia foi o que mais teve dificuldade em fazer o ensino remoto. Quem já tinha algum problema, acabou se engajando ainda menos — conclui a pesquisadora.