Imprensa distorce estatísticas
Imprensa distorce estatísticas e dá munição a classismo e xenofobia de Bolsonaro
UOL, CNN e outros veículos reproduziram correlação enganosa entre “voto errado” e falta de letramento formal, que serviu de artilharia para Bolsonaro.
SE A TELA DA SUA TV, computador ou celular não foi invadida na última semana por uma onda de chorume xenofóbico dirigido ao Nordeste brasileiro, você é privilegiada sim.
O tsunami de preconceito e violência começou logo após a divulgação do resultado das urnas no primeiro turno e alcançou seu auge quando o triste senhor à frente da presidência fez uma live decantando sua sempre explícita visão preconceituosa sobre a região. Na fala, aos coices, o incumbente disse que o analfabetismo e a “falta de cultura” do NE eram culpa da esquerda. Logo depois, uma série de veículos, em tom de crítica, repercutiu o fato:
É aí que mora a perversidade da questão: não foi o presidente, e sim a imprensa quem primeiro publicizou essa correlação nefasta, mentirosa e classista. Meios como UOL e CNN publicaram a notícia nos dias 3 e 4 de outubro. Depois, no dia 5, elas foram replicadas pelo pai de Carluxo, que citou as manchetes e os dados presentes nos textos. Ele e seus seguidores, é óbvio, usaram a imprensa – que tem credibilidade apenas quando lhes convém – como combustível para o jet ski de preconceito do mandatário.
Foi desta maneira, aliás, que me deparei com o terrível título do UOL, aí abaixo. Ele servia como defesa de um bolsonarista às diversas críticas dirigidas às declarações do infelizmente presidente:
Estas matérias não só apareceram aos montes nos perfis dos supostos patriotas e nos ataques a nordestinas e nordestinos: elas serviram para que o próprio presidente, em seu perfil no Twitter, se defendesse das críticas enquanto tirava uma boa onda da auto-proclamada imprensa profissional.
É o crime perfeito: tocam fogo no circo e depois ganham cliques falando do incêndio.
Há poucos dias, comentei com um amigo que tinha a impressão de estar escrevendo a mesma coluna desde 2018, quando achatamos a cara no paredão da extrema direita. Foi exatamente essa a sensação quando me deparei com esses textos carregados com o que há de pior na formação cultural brasileira. Entendi que precisava voltar ao tema eleições, jornalismo, Nordeste e preconceito (falei a respeito aqui, aqui e aqui) não porque gostaria, mas por me ver de novo no meio do redemoinho de ódio a pobre, suposta objetividade e falsa isenção que domina um naco expressivo do jornalismo brasileiro.
O UOL e a CNN, além dos outros veículos que reproduziram a correlação enganosa, se utilizam de uma falácia que serve há tempos para parte da imprensa disseminar um conteúdo tão mentiroso e tóxico quanto o do presidente: ele combina a ideia de “voto errado” e falta de letramento formal (ou melhor, “voto errado”, falta de letramento formal e Lula). Porém, enquanto o marido de Michelle arreganha os dentes, jornais, sites e televisões investem na performance da democracia: primeiro, fazendo correlações estatísticas frouxas e racializadas; depois, noticiando a xenofobia do incumbente como se não fossem companheiros dos ataques.
É um jogo duplo e rentável que tanto serve de estrutura para o fascismo Vivendas da Barra quanto mantém um certo perfume técnico, objetivo e socialmente responsável. No mesmo UOL, Leonardo Sakamoto fez uma boa crítica mostrando como o presidente manipulou ainda mais a informação, sublinhando ainda que a sugestão de um voto “errado” diretamente ligado ao nível de escolaridade e mesmo à cor da pele é uma bizarrice.
Essa forma perversa de tentar se impor hierarquicamente através de uma leitura instrumentalizada dos números foi tema de um livro clássico “Como mentir com estatística”, de Darrell Huff, publicado pela primeira vez nos EUA em 1954. Ele foi bem lembrado por Sílvia Lisboa e Juan Ortiz, aqui do Intercept, quando falamos sobre a cretinice das matérias sobre analfabetos, votos e PT.
Juan, com base em dados estatísticos do IBGE, fez algumas correlações esdrúxulas que explicam bem como esse tipo de expediente pode servir para toda uma sorte de falácias “baseadas cientificamente”. Ele descobriu, por exemplo, que Bolsonaro venceu em 10 dos 15 estados nos quais uma maior porcentagem da população consome bebidas alcóolicas pelo menos uma vez por semana. Depois, que Bolsonaro também ganhou em 13 dos 15 estados onde mais pessoas dizem sempre usar capacete ao dirigir moto. Podemos inferir, assim, que quem mais usa capacete e vota em Bolsonaro dirige bêbado. São dois dados aleatórios reunidos em uma correlação estatística apresentada como se fosse causa e efeito um do outro. Uma distorção óbvia com jeitinho de informação neutra.
Mas é assim, distorcendo o que dizem as estatísticas para sustentar pontos de vista francamente canalhas, que os veículos associam o não letramento formal ao voto no Partido dos Trabalhadores, sugerindo que esse não saber, concentrado em uma região há muito explorada por distintas elites (inclusive nordestinas), baseia a escolha na esquerda e centro-esquerda.
Não deixa de ser interessante pensar como, para isso, ignoram o fato de o mesmo partido ter sido o preferido da classe média de 1985 até 2000, como mostra esta pesquisa de Diogo Frizzo de Medeiros, na qual foca o eleitorado paulistano. Ou, como apontou aqui Beatriz Athayde, há pouco tempo o Bolsa Família servia, para a imprensa, como razão para o Nordeste votar em peso no PT. Agora, apesar do Auxílio Emergencial, a preferência pelo partido se manteve. Resta então dizer que esse fenômeno se dá pela ignorância.
Quero sublinhar um ponto: é comum ver, entre as pessoas que se horrorizam ao ver a xenofobia contra o NE, listas diversas com nomes respeitados nascidos na região. Foi o caso do ex-ministro do STF, Celso de Mello, que enviou para pessoas próximas uma mensagem via WhatsApp falando sobre nordestinos notáveis.
Nela, estão Josué de Castro, Aloísio Azevedo, Anísio Teixeira, Frei Caneca, José de Alencar, Manuel Bandeira, Nise da Silveira, Irmã Dulce, Paulo Freire, Ariano Suassuna, Augusto dos Anjos, Tobias Barreto, Bárbara de Alencar, Deodoro da Fonseca, Epitácio Pessoa, Jorge Amado, Gonçalves Dias, Nísia Floresta. É, de fato, impossível listar a quantidade de intelectuais, artistas, ativistas etc. gestadas aqui. Entendo o expediente retórico e a justa homenagem, mas ela continua, ao seu modo, deslizando em certo classismo. Isso porque os nordestinos e as nordestinas iletrados/as, assim como qualquer pessoa “não ilustre” que habita este país, também merecem respeito. Os seus votos são tão preciosos quanto os de um intelectual famoso ou de uma ministra do Tribunal Superior Eleitoral.
Vergonha, vergonha mesmo, deveria sentir quem tem diploma na parede e aplaude um chefe de estado que usou o bicentenário da Independência do Brasil para falar de sua suposta performance sexual, arrancou máscara de criança no meio da pandemia, tentou botar bomba em Vila Militar (também foi preso por indisciplina) e ainda visitou miliciano na cadeia.
Vergonha, vergonha mesmo, deveria sentir quem tem formação superior, com acesso à informação, e opta conscientemente por um presidente que, desde o início do governo, vem promovendo cortes nas verbas das universidades e na educação básica mesmo após o apagão educacional causado por conta da pandemia.
Vergonha, vergonha mesmo, deveria sentir quem apoia um homem cuja obsessão é desmantelar uma democracia que ainda lutava para se aperfeiçoar.
Vergonha, vergonha mesmo, deveriam sentir os veículos instrumentalizados por este mesmo presidente, meios que viram suas jornalistas mulheres serem atacadas constantemente e agora figuram, de novo, como parceiros da barbárie. É o time que pediu por uma frente ampla capaz de enfrentar a força do bolsonarismo mas que, ao vê-la formada, não lhe deu o devido crédito, provavelmente por que essa frente não é capitaneada pela terceira via que tentaram inflar. Vergonha é achar que pobreza se resolve com wishful thinking, não com redistribuição de renda e política pública.
Entre Lula e o fascismo, há, novamente, a dúvida espalhada em editoriais dos que se dizem democráticos. É estarrecedor.
Um saldo triste e eloquente de toda essa grande ajuda que o bolsonarismo recebe não só da imprensa, mas também das instituições de Justiça que permitem que ele, apesar de usar dinheiro público para fazer campanha e reunir representantes de embaixada para colocar em dúvida nosso sistema eleitoral, esteja apto a concorrer, é seu crescimento sensível nas regiões Norte e Nordeste (de 43% para 45,5% e de 25,9% para 27%, respectivamente).
(…)
Quero finalizar esse texto com as preciosas colaborações sugeridas em um post que publiquei lá no Twitter, no qual falava justamente do título cretino do UOL. Boas sugestões de chamadas apareceram, algumas delas operando no mesmo nível de falsa correlação que UOL, CNN e outros veículos utilizaram:
- No primeiro turno, o presidente venceu nos municípios com maiores índices de mortalidade por Covid-19. Quanto mais crença no incumbente, mais mortes registradas.
- Falando em destruição, o amigo de Queiroz também venceu nas cidades mais desmatadas da Amazônia.
- O homem que visitou o miliciano Adriano da Nóbrega na prisão venceu nas regiões Sul e Sudeste, nas quais há maior ocorrências de grupos neonazistas.
- O marido de Michelle venceu em 9 das 10 cidades mais brancas do Brasil.
- No Acre, onde Bolsonaro ganhou no primeiro turno com 62,5% dos votos (Lula teve 29,26%), a taxa de feminicídios cresceu 300% durante o início da pandemia.
Sobre o assunto, indico mais duas leituras:
- Jânio de Freitas, na Folha, fez um ótimo texto mostrando como o empresariado (incluindo a imprensa) vem criando pretexto para apoiar novamente Bolsonaro.
- Nayara Felizardo também produziu texto analisando a relação óbvia entre racionalidade e voto nordestino.
Em Pernambuco, onde vivo, esse fenômeno se concentra bastante na região Agreste. É ali, por exemplo, que fica Santa Cruz do Capibaribe, único município que deu, por pouco, vitória ao candidato do PL (48,31% dos votos, contra 46,11% do petista). Em Caruaru, cidade vizinha, um outdoor serviu, após o resultado do primeiro turno, para registrar a frase “vergonha de ser nordestino”. Para mim, o texto escrito enquanto imprensa, presidente e população arrotavam superioridade sobre a região, só pode ser explicado pela chave do auto-ódio. É bem triste.