Interdisciplinaridade
INTERDISCIPLINARIDADE
Isabel Brasil Pereira
Ainda que pese a polissemia do termo, a interdisciplinaridade pode ser traduzida em tentativa do homem conhecer as interações entre mundo natural e a sociedade, criação humana e natureza, e em formas e maneiras de captura da totalidade social, incluindo a relação indivíduo/sociedade e a relação entre indivíduos. Consiste, portanto, em processos de interação entre conhecimento racional e conhecimento sensível, e de integração entre saberes tão diferentes, e, ao mesmo tempo, indissociáveis na produção de sentido da vida.
Há que se afirmar interdisciplinaridade como um conceito historicamente e socialmente produzido, apresentando no campo epistemológico, no mundo do trabalho, e na educação, movimento de continuidade e ruptura em relação às questões que busca elucidar, e que simultaneamente a constituem. O caráter de continuidade da interdisciplinaridade tem implicações com questões, incessantemente, em pauta na história da humanidade, tais como: de que maneira e forma pode o homem conhecer? Como se dá a relação do homem com a natureza e a sociedade, de forma fragmentada, como fato isolado, ou de forma integrada em que o observado e/ou vivido está inserido numa rede de relações que lhe dá sentido e significado? A partir de que forma e sentido pode o homem transmitir esse conhecimento?
O caráter de ruptura no que a interdisciplinaridade é chamada a responder, ou seja, a fragmentação do saber, instituída pela ciência moderna sob a égide do capital, do mundo do trabalho e da cultura, e transmitida pela prática educativa. A transmissão da fragmentação do saber na prática educativa reflete e ao mesmo tempo responde aos processos conflituosos e contraditórios do mundo do trabalho e da própria produção do conhecimento científico que com o advento da ciência moderna, passou por um profundo processo de esfacelamento em função da multiplicação crescente das ciências, cujo desenvolvimento se fez às custas da especialização (Japiassú, 1976).
Embora dito e redito que a ciência moderna tem como inerente à sua própria instituição os métodos analíticos de Galileu e Descartes, é sempre bom lembrar que no pensamento deste último está presente o desejo de reconstituição da totalidade e a necessidade das conecções entre as ciências (Pombo, 1994).
Ainda que compreendamos as diversas tentativas do homem conhecer como intrínsecas ao trabalho humano, à produção cultural e à necessidade de autoconhecimento e sobrevivência, o fato é que a busca por saberes tão diversos perderam-se nos desvãos da ideologia e serviram a mestres menos nobres. Não à toa as especializações, sob a égide do capitalismo, apresentaram características cada vez mais reducionistas, perdendo-se de vista a possibilidade da totalidade do conhecimento, e mesmo as conecções mais profundas entre as ciências.
No final do século XIX, as ciências haviam se dividido em muitas disciplinas e a busca pela interação entre estas disciplinas ecoa forte no sentido de promover um diálogo entre elas. Na Educação, a preocupação com formas e maneiras de atender ao apelo a uma integração e interação entre as ciências, sob as quais essa prática social se constrói, ocorre de maneira mais nítida, no início do século XX. Nesse caminho, outros conceitos ganham força, dentre eles a transdisciplinaridade. Para Piaget (1981, p.52), a interdisciplinaridadepode ser entendida como o “intercâmbio mútuo e integração recíproca entre várias ciências”. A interdisciplinaridade, para o autor, é uma interação entre as ciências, que deveria conduzir à transdisciplinaridade, sendo esta última, concepção que se traduz em não haver mais fronteiras entre as disciplinas. Piaget aposta na transdisciplinaridade, entendida como integração global das ciências, afirmando ser esta uma etapa posterior e mais integradora que a interdisciplinaridade, visto que, segundo o autor, alcançaria as interações entre investigações especializadas, no interior de um sistema total, sem fronteiras estáveis entre as disciplinas.
Atualmente, a interdisciplinaridade continua seu caminho pela (re)construção do conhecimento unitário e totalizante do mundo frente à fragmentação do saber. Na escola, essa noção é materializada em práticas e reflexões como a integração de conteúdos e a interação entre ensino e pesquisa.
Do ponto de vista da diretriz de política governamental, o Ministério da Educação por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1999) procura orientar quanto a atitudes e ações interdisciplinares. De acordo com Kaveski (2005, p.128, grifos meus) “a interdisciplinaridade é entendida no PCN do ensino médio como função instrumental, ‘a de utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista’ a partir ‘de uma abordagem relacional’...”.
Como contraponto à fragmentação do conhecimento escolar, do ensino e do conhecimento educacional, a interdisciplinaridade tem como primeiro desafio perceber que: esta fragmentação na educação - como já desvelado pelo pensamento crítico - reproduz o mundo fragmentado, fruto das relações de produção e reprodução social. A consciência sobre isso permite pensar a interdisciplinaridade com base no seu próprio limite. Isso significa se debruçar, sem idealização de um alcance absoluto da sua missão, sobre a seguinte questão: Quais são as (im)possibilidades da interdisciplinaridade no âmbito escolar? A partir dessa questão, outras se derivam, dentre elas: Quais os cuidados que se deve ter ao integrar os conhecimentos disciplinares? De que formas e maneiras a interdisciplinaridade no âmbito do conhecimento escolar pode ser construída? Quais são os lugares e ações da prática escolar, hoje, onde se busca a interdisciplinaridade?
A superação, no âmbito escolar, da forma em que o conhecimento é apresentado e construído não pode entender a escola e o conhecimento separados da vida social de outras esferas da vida humana. Para tanto, é necessário entender a interdisciplinaridade no âmbito de uma dimensão política e ética.
A busca pela integração e interação entre as diferentes áreas de conhecimento e/ou disciplinas tem de estar atenta para o grau de autonomia necessário a cada uma delas. Há que se ter, portanto, cuidado com a armadilha positivista (que apresenta aí marcas da sua ambigüidade, pois foi o positivismo significativo na fragmentação do saber) quando afirma que as diferentes áreas da ciência podem ser analisadas e compreendidas sob o mesmo método e/ou sob a mesma lógica. Como exemplo dessa armadilha, a notória e por vezes ideológica apropriação do conceito de evolução de Darwin sobre a natureza, sendo aplicada para se pensar e compreender a sociedade.
Em relação a já mencionada especialização que se traduz em autonomização gerando fragmentação do conhecimento, é sempre bom avisar que: há que se não confundir a crítica à especialização, com uma especificidade necessária, como o enfoque do conhecimento, devido ao seu acúmulo ao longo da existência humana como síntese dos saberes construídos histórico-socialmente, que levam em conta a totalidade no próprio campo da ciência e na sociedade.
Deve ainda a interdisciplinaridade estar atenta para a relação forma e conteúdo dentro de uma mesma disciplina no que tange aos níveis de complexidade do conhecimento, de grande importância para a prática educativa.
A interdisciplinaridade pode se materializar nas metodologias de ensino, no currículo e na prática docente. Na educação profissional em saúde ela tem se traduzido em tentativas, por vezes bem sucedidas, de projetos e concepções diversos, mas que partilham a necessidade de perseguir, de acordo com o que pensam ser isto, o saber unitário. Indo além, nesse caminho coloca-se a necessidade da interação entre escola e serviço de saúde, entre escola e as demandas de saúde da população urbana e do campo.
A partir do olhar histórico que desvela que o processo de fragmentação do saber se acentua com o processo de fragmentação do trabalho, deve-se estar atento para que formas de organização do trabalho em saúde, que não primam pela integralidade, possam acentuar a fragmentação do conhecimento escolar.
O termo interdisciplinaridade é também aplicado com base em um deslocamento de sentido e/ou apropriação deste conceito por correntes hegemônicas da educação profissional a favor do capital. Hoje, há processo de formação profissional que adere a uma concepção da totalidade como soma das partes, e visa a uma formação polivalente do trabalhador. A qualificação profissionalpautada pela polivalência justapõe conhecimentos técnicos, de modo a garantir a organização do trabalho em que o mesmo trabalhador possa desempenhar várias funções outrora realizadas por mais trabalhadores. Nessa história, recente e atual, é demandado aos sistemas educacionais um ajuste às novas maneiras que o capital encontra para administrar as suas crises, no caso a produção de um trabalhador polivalente, com capacidades, ‘conhecimentos’, valores e atributos, destreza e capacidade de resolver problemas, compatíveis com o mundo do trabalho em mutação (Pereira, 2002).
Trata-se assim de perceber que a característica central do capitalismo, lembrando aqui Marx (1999), é estar em constante expansão, buscando novos mercados, pesquisando novas tecnologias, rompendo tradições às vezes milenares e criando relações de trabalho que tendem à mudança. Como derivado desse movimento, ou seja, de acordo com as novas formas pelas quais o capital organiza a produção e o trabalho assalariado, tal organização, assim como o avanço científico e tecnológico seriam indicativos do desejo da junção de áreas de conhecimento, ou seja, um sentido de interdisciplinaridade que, a partir da soma das partes, vai gerar novas formas de organização curriculares e de enfoque metodológico.
Pensar a interdisciplinaridade no currículo voltado à formação técnica em saúde significa ter como premissa que as práticas curriculares são marcadas tanto pela historicidade da construção do próprio conhecimento, como também pelo pensamento hegemônico no mundo do trabalho, em que as exigências de uma formação humanista e crítica entram em constante choque com as exigências pragmáticas e objetivas do conhecimento.
Ainda sobre interdisciplinaridade e currículo, lembremos que:
Visando ao menor isolamento possível entre as disciplinas, a idéia do Currículo Integrado aproxima-se das concepções de Bernstein (1996), denominadas pelo autor de Classificação (quanto maior o isolamento entre o conhecimento organizado em Disciplinas, maior será o grau de classificação). Para o autor, as questões mais relevantes no campo do currículo são as que abordam as relações estruturais entre os diferentes tipos de conhecimento que o constituem. Em Berstein, o Currículo Integrado tem como característica o fato de que as áreas de conhecimento não estão isoladas, possibilitando, por exemplo, que o mesmo conceito possa ser trabalhado por áreas diversas, favorecendo aspectos da interdisciplinaridade (Pereira, 2002).
Quanto à relação interdisciplinaridade e prática docente, partir da premissa de que o docente é educado no conflito e na contradição, não é uma tábula rasa nem tampouco chegará a condições ideais de promover práticas interdisciplinares que superem a contento lacunas da sua formação profissional, da sua história de leitura e de vida.
Frigotto (1995), chama a atenção para o fato de que se no campo da produção científica os desafios ao trabalho interdisciplinar são grandes, no cotidiano do trabalho pedagógico percebemos que estamos diante de limites cruciais. Para o autor, a formação fragmentária, positivista e metafísica do docente, assim como a forma de organização do trabalho na escola e na vida social em geral constituem barreiras, por vezes intransponíveis, para o trabalho interdisciplinar.
A ação docente pautada na sua concepção de ciência, política, cultura e postura ética são os esteios centrais sob os quais podem ser delineadas, com êxito ou não, as práticas interdisciplinares. A interdisciplinaridade é entendida por Fazenda (1999) como ação, enfatiza que depende de uma atitude, de uma mudança de postura em relação ao conhecimento, uma substituição da concepção fragmentária para a unidade do ser humano. Diante disso, é bastante evidente a ênfase dada ao sujeito, para que se promova uma transformação no conhecimento, o que coloca a formação docente e as condições objetivas do trabalho docente como eixos centrais da promoção do trabalho interdisciplinar na escola.
Por último, há que se compreender que a interdisciplinaridade na educação do trabalhador não pode ser construída a partir de premissas que percam de vista a totalidade das questões que ela tem a enfrentar. Como exemplo, é no mínimo ingênuo pensar que abolir o currículo por disciplina é a solução para acabar com a fragmentação do saber escolar. Ou seja, trocar o currículo por disciplina por outra forma de organização curricular, por si só nada significa para um avanço do trabalho interdisciplinar. Mais importante é a escola estar atenta aos limites e possibilidades do conhecimento escolar no processo de mudança de paradigma das ciências e da transformação do mundo do trabalho, perceber neste processo para qual projeto de sociedade irá contribuir, e abrir espaço a toda ação visando à interdisciplinaridade - que não confunda integração e articulação com justaposição e que não caia em um relativismo que nada institui – valorizando os pequenos avanços do trabalho escolar neste processo que requer para sua validação ser sempre considerado inacabado.
PARA SABER MAIS
BERNSTEIN, B. Class, codes and control. Londres: Routledge and Kehgan Paul, 1980.
BRASIL/MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SENEB, 1999.
FAZENDA, I (Org.) Práticas Interdisciplinares na Escola. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais. In: JANTSCH, A, & BIANCHETTI, L. (Orgs.) Interdisciplinaridade para além da filosofia do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
JAPIASSÚ, H. Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
KAVESKI, F. C. G. Concepções acerca da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: um estudo de caso. In: II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, Vitória/Vila Velha, 2005.
MARX, K. O capital - crítica da economia política. 17a ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999.
PEREIRA, I. B. A Formação Profissional em Serviço no Cenário do Sistema Único de Saúde. Tese de Doutoramento. Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política e Sociedade. PUC/SP, 2002.
PIAGET, J. Problémes Géneraux de la Recherche Interdisciplinaire et Mécanismes Communs. In: PIAGET, J., Épistémologie des Sciences de l'Homme. Paris: Gallimard, 1981.
POMBO, O. Problemas e Perspectivas da Interdisciplinaridade. Revista de Educação, IV, 3-11, 1994.
http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/int.html