Inventar o fracasso escolar
Inventar o fracasso escolar e impor reformas
Inventar o fracasso escolar e culpar a escola para impor reformas
Editorial do Jornal Pensar a Educação em Pauta, Ano 6 – Nº 213/ sexta-feira, 14 de Setembro de 2018
Semana passada comentamos em Editorial três tragédias que caíram sobre nós nos últimos dias, trazendo dolorosas perdas para o Brasil e o seu povo: a aprovação, pelo STF, da terceirização irrestrita de todas as etapas do processo produtivo, que produzirá precarização radical do mundo do trabalho; a decisão do Supremo Tribunal Eleitoral, de desacatar tratados internacionais assinados pelo Brasil para cassar direitos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva; e a destruição do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, um crime de lesa-pátria contra a memória e a história do Brasil, e da humanidade.
Havia uma quarta tragédia em curso naqueles mesmos dias, essa na Educação Pública. Uma falsa ‘tragédia’, aliás, fabricada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), vinculado ao Ministério da Educação: a invenção de um fracasso escolar na educação brasileira. A decisão de elevar a nota de corte dos resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB/Prova Brasil), produziu uma avaliação artificial da educação pública, totalmente descolada da realidade.
Veja-se a opinião de um ex-presidente do INEP, José Francisco Soares, professor da UFMG e membro do Conselho Nacional de Educação, dos mais entendidos em avaliação escolar: “as escolhas de pontos de corte que definiram os níveis produziram uma mudança drástica no diagnóstico da realidade educacional brasileira. Experiências consideradas exemplares até 2015 se tornaram fracassos com a nova metodologia. Por exemplo, a cidade de Sobral, que era considerada exemplo nacional, passou a ter apenas 13,4% dos alunos com aprendizado adequado em língua portuguesa, ao invés de 79,8 % em 2015. Na realidade não ocorreu nenhum desastre educacional nos últimos dois anos, mas apenas a introdução de uma forma equivocada de sintetizar os dados da Prova Brasil.”
Sugerimos a leitura de seu texto a respeito, com críticas à metodologia empregada para se chegar aos resultados do SAEB 2017, que mostrariam o tal ‘fracasso’ da escola.
Em síntese, ele defende a necessidade de “usar evidências empíricas em relação aos resultados educacionais (acesso, permanência na escola e aprendizado, assim como indicadores das condições das escolas)”, o que “exige a criação de consensos baseados em análises compartilhadas dos dados”. Não se trata de desconsiderar que “o sistema educacional brasileiro tem sérios problemas no aprendizado de seus estudantes, assim como de condições”, mas ele pondera que “uma mudança abrupta de metodologia não ajuda no debate.”
Concordamos com ele que “o governo federal deveria usar a oportunidade para não só corrigir o diagnóstico apresentado como também para iniciar um processo público de definição dos níveis de referência oficiais para a análise dos dados de aprendizado obtidos pela Prova Brasil.”
A respeito, Luiz Carlos de Freitas, da Unicamp, reconhecido pesquisador em avaliação escolar, escreveu: “O órgão (INEP) se defende dizendo que foi um grupo de especialistas que definiu as novas regras. Mas, de fato, a credibilidade do órgão que já vinha sendo desafiada pelos seus dirigentes, acabou. Não se faz uma mudança dessa sem um amplo debate. De fato, as divulgações do INEP sobre esta rodada do SAEB estão marcadas por um claro desejo de promover o caos para justificar apoio às reformas do governo Temer.” Nenhuma novidade, portanto.
Também Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, recomenda cautela ao considerar os resultados do SAEB, pois não estão sendo consideradas as desigualdades regionais nem as condições de trabalho dos profissionais de educação e das escolas: “A culpa desse resultado acaba injustamente recaindo sobre o estudante que realizou a prova e do professor que ensinou aquele aluno”, pondera, em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz. E completa: “Nós entendemos que a aprendizagem dos alunos só pode ser avaliada considerando as condições de oferta da educação. Não se pode comparar um aluno que está em zona urbana estruturada, que recebe financiamento para suas escolas, com um aluno que está em área rural, onde o número de profissionais da educação é escasso e os recursos são menores. As condições de partida desses dois são totalmente diferentes.”
Há sempre que perguntar: esse fracasso escolar inventado, a quem pode interessar? Não cabe aqui a ingenuidade. Já sabemos bem a quem serve essa narrativa.
Desqualificar a Educação Pública, seus sujeitos e suas práticas, é projeto já de longa duração de certo pensamento brasileiro, retomado, atualizado e praticado pelo ilegítimo governo Temer. A estratégia é evidente: culpar a escola pelo fracasso e impor as reformas de ensino por ele pretendidas (especialmente a Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio), sem discussão, e que atendem aos interesses daqueles que fazem da educação um grande negócio.
O fracasso não é da escola pública, tampouco de seus sujeitos: ela e eles são vítimas de todo e qualquer governo que não faz da educação pública prioridade política absoluta porque crucial para o desenvolvimento do País. É esse o fracasso a ser combatido.
Felizmente, em registro bem distinto, uma outra tragédia para a Educação foi evitada essa semana, e sobre a qual comentamos recentemente aqui: o Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 12 de setembro que é a Escola o lugar de formação acadêmica sistematizada da infância e da juventude, definindo que as famílias não têm direito de ensinar a seus filhos exclusivamente em casa, a chamada educação domiciliar (ou homeschooling). Os juízes, com a triste exceção de Luiz Roberto Barroso, afirmaram ser necessária e obrigatória a frequência de crianças e jovens à escola, lugar de experiência importante para o acesso ao conhecimento sistematizado em ambiente que promova a sociabilidade entre estudantes, e deles com outras gerações. A Constituição, segundo o STF, estabelece que o dever de educar exige cooperação entre Estado e família, mas não dá aos pais o direito de retirar seus filhos da escola para educá-las exclusivamente no espaço privado da casa. Saiu derrotado por 9×1 o Juiz Barroso, que tem se esmerado, por sinal, em obedecer ditames da grande mídia e do empresariado. Importa destacar e comemorar esse placar tão expressivo: a instituição escola restou fortalecida em sua responsabilidade social de formação das pessoas. É esse lugar que precisa ser cada vez mais reconhecido e afirmado, com investimentos públicos que garantam as melhores condições para a realização de boas práticas educativas.
Defender a escola pública do fracasso inventado por um governo fracassado. Afirmar a escola como lugar de formação pública cidadã. Estão aí dois compromissos políticos inarredáveis. Para enfrentar fabricantes de tragédias.
Imagem de destaque: GERJ