Justiça de Transição
Justiça de Transição, periferia e democracia
– por Clarissa Ramos Duarte
Relatório publicado em 2021 de pesquisa realizada pelo CRISP/UFMG em parceria com o NEV/USP, evidenciou que a tortura no Brasil é cotidiana e tem como principais vítimas jovens negros e pobres, o que demonstra que persiste o núcleo de necropolítica de poder dentro do Estado brasileiro
Créditos: Arquivo Pessoal.
Por Clarissa Ramos Duarte
Clarissa Ramos Duarte é advogada e articuladora estadual do movimento nacional de direitos humanos de Minas Gerais (MNDH-MG).
Escrito en DEBATES el 19/11/2022
O tempo, muito mais do que significar a contagem dos dias, medida forjada, criada por nós, traz em si a capacidade de reverberar os desdobramentos de fatos que não experimentamos. O tempo não é algo que está posto, no sentido de que apenas localiza, situa, caracteriza os acontecimentos, mas antes, o tempo carrega a capacidade de despertar, ou recobrar, ou perpetuar e até de ressignificar acontecimentos que, embora não tenham sido vivenciados por nós, conhecemos por conta da história, em suas variadas formas e/ou padecemos dos seus ecos.
A maioria das pessoas, por exemplo, que lerá este artigo, não existia, quando da Segunda Guerra Mundial. No entanto, isso não impede de termos conhecimento sobre um dos mais terríveis genocídios amargados pela humanidade e não somos indiferentes quando sabemos que 6 milhões de pessoas foram violentamente assassinadas porque eram judias, ou homoafetivas, ou atípicas. Saber disso nos causa horror, ao ponto, portanto, de, nem por hipótese, ser aceitável, para nós que estes acontecimentos se repitam.
Ou seja, o tempo carrega a capacidade de perpetuar em nós sensações que, originalmente, não foram nossas, o que nos auxilia a compreender que na história, os acontecimentos influenciam o presente e também o futuro. É incontroversa, entretanto, a constatação de que para algumas populações, os acontecimentos pretéritos encerram, de modo trágico, elemento constitutivo de seu presente.
Relatório publicado em 2021 de pesquisa realizada pelo CRISP/UFMG em parceria com o NEV/USP, evidenciou que a tortura no Brasil é cotidiana e tem como principais vítimas jovens negros e pobres, o que demonstra que persiste o núcleo de necropolítica de poder dentro do Estado brasileiro, como também subsistem as bases sob as quais o Brasil se constituiu, enquanto uma oligarquia escravagista.
Em última análise, a pesquisa mencionada, ratificada por outros dados, que veremos adiante, denuncia a falta que faz a realização de processos adequados de justiça de transcrição para o desenvolvimento de um país.
O que é justiça de transição e qual a sua instrumentalidade ?
Compreende-se por justiça de transição, os processos e mecanismos jurídicos ou não, por meio dos quais, uma sociedade procura superar o legado de um passado, marcado por violações e abusos de direitos humanos em larga escala, orientada pela busca da justiça, na transição para a paz e a democracia.
Esta definição está assentada no Relatório do Secretário Geral da ONU para o Conselho de Segurança, de 2004, sendo que, no mesmo ano, um outro Relatório, também foi publicado, encerrando um aperfeiçoamento daquele, e que trata do Estado de Direito e justiça de transição em conflito e pós conflito, por meio qual, restou evidenciado que todas as estratégias a serem adotadas nos processos transicionais devem ser holísticas, incorporando atenção integrada aos processos individuais, bem como reparações, busca da verdade, reforma institucional e/ou a combinação de todos estes objetivos.
Embora estes documentos sejam, de certo modo, recentes, é preciso que se diga que os processos transicionais de justiça atravessam a história dos países e, assim, do direito internacional. A título de ilustração, cito a Resolução 1999/28 de 1999, intitulada Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na Justiça Criminal e também a Resolução da Assembleia Geral n.º 56/261, de 2002, que cuidou do Planejamento das Ações para a Implementação da Declaração de Viena sobre Crime e Justiça.
Justiça de transição na América Latina e no Brasil
A América Latina vivenciou, do início da década de 60 até o final da década de 80, diversas ditaduras. No Chile, de 1973 a 1990; no Uruguai, de 1973 a 1985; Argentina, de 1976 a 1983 e o Brasil, por sua vez, amargou uma ditadura civil militar que durou 21 anos, de 1964 a 1985.
Não é desnecessário reafirmarmos que, sim, o Brasil viveu 2 ditaduras, sendo que esta última, contou com a participação das Forças Armadas e de grandes corporações. Esta afirmação não possui caráter opinativo, mas científico, epistemológico, senão, vejamos, a despeito do conceito de ditadura remontar a Roma antiga e etimologicamente tratar-se de um termo de origem latina, não é possível estabelecer paralelos entre as ditaduras antigas e o sentido que ela adquiriu, desde a modernidade, a partir dos séculos XVII, XVIII, sentido, portanto, já muito bem delineado na década de 60.
Na antiguidade, a ditadura romana tinha por principais características a excepcionalidade, um tempo de duração previamente fixado e que não podia ultrapassar 6 meses e o ditador não detinha poderes ilimitados, principalmente no que toca à Constituição que não podia ser mudada, tampouco revogada.
Atualmente, a expressão ditadura serve para designar os regimes de governo não democráticos ou antidemocráticos. Ela se impõe pela força e subverte as ordens política e jurídica, promovendo rupturas indeléveis na ordem social.
E quando sublinho que minha afirmação não expressa minha opinião, recordo a todos que no dia 02 de abril de 1964, o Estado Brasileiro, através, do Congresso Nacional, decretou a vacância da Presidência do País, e, poucos dias depois uma Junta Militar assumiu o Poder.
Além disso, como todos sabemos, a posição oficial do Estado Brasileiro é explicitada por meio de seus documentos oficiais, especialmente o ordenamento jurídico.
Entre 1995 e 2011, foram instituídas, por lei, 3 Comissões de Estado, todas com atribuições relacionadas a esse período nefasto pelo qual o Brasil passou, sendo que graças aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, sabemos que, pelo menos, 20 mil Pessoas foram torturadas, estando sob a custódia do Estado durante a última ditadura civil/militar; números oficiais falam que 357 Pessoas morreram ou desapareceram. Familiares de vítimas, no entanto, falam em 426 Pessoas. Mas há estudos que apontam que este número pode ser 3 vezes maior, haja vista que, somente no cemitério de Perus, em São Paulo, foram encontradas 1000 ossadas, todas enterradas, durante os anos de chumbo.
E sabemos, sem tergiversações, que o quê vivenciamos não foi apenas uma ditadura militar, mas uma ditadura civil/militar. Em setembro de 2020, a Volkswagen do Brasil assinou, junto ao Ministério Público Federal, ao Ministério Público Estadual e ao Ministério Público do Trabalho, um TAC, comprometendo-se a pagar R$36.000.000,00 (trinta e seis milhões de Reais) a serem utilizados para indenizar ex funcionários seus, que foram perseguidos e torturados, como também para a implementar ações de promoção dos direitos humanos. Este acordo foi homologado pela Procuradoria Geral de Justiça em janeiro de 2021 e é paradigmático porque em 2014 a Comissão Nacional da Verdade apontou em seus relatórios que 53 empresas nacionais e estrangeiras contribuíram de modo ostensivo com a violação de DHs na ditadura.
Apenas duas justificativas podem explicar o porquê de ainda haver pessoas que negam que não houve uma ditadura muito violenta no Brasil: a ignorância ou má fé, razões que, por si mesmas, mas não apenas, justificam a necessidade da implementação de um processo de justiça transicional efetivo e eficiente, como vem ocorrendo em outro países, como a Argentina e o Chile.
As consequências desta falta, deste hiato, são muitas, e todas são, não somente perversas, mas determinantes para que nos seja possível ou não o vislumbre de uma sociedade menos violenta, mais promissora e também mais harmônica sob os pontos de vista existencial e social.
Para se ter uma ideia, o Brasil é o único País da América Latina em que não houve a prisão de nenhum ex-agente da ditadura militar que tenha praticado tortura durante aquele período. Há, inclusive um estudo feito pela cientista política Kathryn Sikkin, da Universidade do Minessota, que demonstra que, atualmente tortura-se mais hoje, no Brasil, do que na ditadura. E como já observamos, no início deste artigo, a UFMG e a USP demonstraram, por meio de pesquisas, que, para jovens negros, moradores das periferias brasileiras, a tortura é cotidiana.
O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão. E, dados como estes, escancaram, de forma inegável que permanecemos fomentando o racismo em nosso País.
A lei Áurea mais se assemelha a um diploma de conclusão de curso do que um documento legal propriamente dito. E conclusão de um curso que jamais poderia ser de técnica legislativa, pois restringiu-se a dizer: “decreto extinta a escravidão no Brasil”.
Houve previsão da inclusão das pessoas no mercado de trabalho, nas escolas? Não. Garantiu-se o acesso à moradia ou á saúde para elas? Também não. Algumas Pessoas foram mesmo obrigadas a permanecerem onde estavam porque se imaginou que, por abstração, o sequenciamento de horrores que envolvia, desde o comportamento patológico, por meio do qual algumas pessoas se sentiam “proprietárias” de outras “pessoas”, até a negação dos direitos mais básicos de sobrevivência, estaria resolvido.
É pertinente lembrarmos que o Brasil é o terceiro país com o maior número de pessoas presas e todos os levantamentos sobre o perfil das pessoas, que hoje, estão no cárcere, em nosso país, dizem que em sua maioria são negros e pardos e sabermos disso nos conduz a conclusão óbvia de que o Estado brasileiro, também, aqui, permanece reproduzindo toda sorte de violências contra estas pessoas, demonstrando mesmo que, para nós, o passado não passou.
Nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido na história. Tanto na história política, como individual, os acontecimentos influenciam no presente. "E se nos perdermos, nem os mortos estarão a salvo".
Conclusão
A memória deve ser concebida por nós como um direito. Um direito que nos permite a compreensão sobre os caminhos que nos trouxeram para onde nos encontramos, ainda que este caminho não tenha sido perfeito pelos nossos passos. Porque disso é feito o tempo histórico: ocorrências das quais não participamos, mas que nos trouxeram para onde estamos. O conhecimento, a verdade e o manejo destas ocorrências nos garantem a possibilidade para o passo adiante.
Um dos grandes entraves para a realização da democracia em nosso país consiste mesmo na usurpação do nosso direito de elaborarmos nossos traumas.
Como consequências disso, temos vivido um arremedo de democracia. Uma democracia, que só existe para alguns setores da sociedade, enquanto para outros o que resta é a repetição contínua de toda sorte de violência. E numa democracia movediça, que não se sustenta, nem o direito, nem ninguém está assegurado.
Quando Adorno nos explica sobre a importância de se compreender o passado, ele quer nos dizer, grosso modo, que somente a partir de sua elaboração é possível o vislumbre e construção de um futuro melhor.
Nosso país precisa realizar esta travessia e possuímos todas as ferramentas necessárias para fazê-lo, com eficiência, elegância e beleza.
*Clarissa Ramos Duarte é advogada e articuladora estadual do movimento nacional de direitos humanos de Minas Gerais (MNDH-MG)