Lei obriga ensino de história afro-brasileira

Lei obriga ensino de história afro-brasileira

Por Emily Santos, g1 — São Paulo    

A professora de história Lavínia Rocha e seus alunos — Foto: Arquivo pessoal

A professora de história Lavínia Rocha e seus alunos — Foto: Arquivo pessoal

A lei que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de todo o Brasil completou 20 anos neste mês de janeiro. Apesar do período em vigor, ainda está longe de ser realidade e enfrenta uma série de desafios para ser posta em prática, segundo especialistas na área.

Educadores e historiadores ouvidos pelo g1 destacam a importância do tema ser debatido em sala de aula como forma de combater o racismovalorizar a diversidade e reconhecer a contribuição e o papel fundamentais do povo negro na construção da nossa sociedade.

Eles ressaltam, porém, que, em geral, o assunto é tratado nas escolas - quando é tratado - com superficialidadeestereótipos e materiais desatualizados. Também relatam falta de apoio na formação dos professores.

1. O que diz a lei? 

A lei 10.639 tem o objetivo de resgatar "a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil". Ela especifica os temas que devem ser abordados obrigatoriamente em sala de aula, incluindo:

  • História da África e dos africanos;

  • A luta dos negros no Brasil;

  • A cultura negra brasileira; e

  • O negro na formação da sociedade nacional.

Esses conteúdos devem ser dados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A lei modificou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional, que define os conteúdos obrigatórios que devem ser desenvolvidos pelas escolas - tanto da rede pública quanto privada. A LDB também traz orientações como a de que o ensino considerar o pluralismo de ideias, respeito à liberdade e garantia de padrão de qualidade.

2. Por que é importante o ensino de história afro-brasileira nas escolas?

Não existe história do Brasil sem a história afro-brasileira.

Para especialistas, não dá para falar do Brasil sem considerar a influência da população negra.

"Os negros estiveram no Brasil na colonização, na Independência, na República, na ditadura e na redemocratização. E permanecem. Trabalhar estes assuntos em sala de aula sem reforçar isso pode levar ao erro de reduzir a presença negra apenas a situações diretamente ligadas à escravidão ou de extrema marginalização."
— Wilson Mattos, professor titular da Universidade do Estado da Bahia (Uneb)

"Não há história e história afro-brasileira. A história é uma só. Cultura é uma só", ressalta o professor, que leciona Teoria da História e Historiografia.

Segundo ele, essa noção é essencial na construção de uma sociedade antirracista por reconhecer a importância da diversidade do país e ajudar na integração de pessoas negras em espaços em geral negados a elas.

Quando é abordado nas aulas, Mattos pondera que é tratado com superficialidade, estereótipos e materiais desatualizados.

3. Papel da escola no combate ao racismo

O ensino de história afro-brasileira foi um dos critérios avaliados pela defensora pública Carolina Anastácio na hora de escolher a escola do filho, Pedro Ivo, de 7 anos, que estuda em um colégio particular do Rio de Janeiro.

Como mulher branca, ela se preocupa com as referências que ele vai levar para a vida. Por isso, considera importante que a escola ensine sobre aspectos sociais e históricos para ajudar a combater o racismo.

Pedro Ivo, filho de Carolina, com a professora Jojô. — Foto: Arquivo pessoal

Pedro Ivo, filho de Carolina, com a professora Jojô. — Foto: Arquivo pessoal

 

Além disso, Carolina também faz seu papel em casa. Ela e o marido, que também é defensor público, estimulam o filho a observar, desde muito jovem, o ambiente ao seu redor.

"Se estamos em um espaço majoritariamente branco, ele já consegue questionar isso. E sabemos que a escola proporciona e vai proporcionar as ferramentas para ele entender por que isso acontece, enquanto damos o apoio para ele levantar estes questionamentos", diz.

"É um trabalho conjunto, em casa e na escola, que vai ajudar o Pedro a formar um pensamento crítico no futuro."
— Carolina Anastácio, mãe do Pedro Ivo, de 7 anos.

Para os estudantes Rahzel Malik, de 20 anos, e Mileenna Lekysha, 17, moradores do Jardim Brasil, na Zona Norte de São Paulo, faltou esse apoio da escola. Oriundos de colégio público, o conteúdo afro-brasileiro foi abordado de forma estigmatizada.

Quando surgiam dúvidas sobre questões relacionadas à sua negritude e o papel dos negros na história e na sociedade brasileiras, era ao pai, Wellington de Paula (conhecido como Akilah Jelani) que recorriam.

" Boa parte do que eles sabem hoje, souberam por mim. Na escola, aprenderam pouco sobre a história dos negros brasileiros e, quando aprenderam, foi naquela narrativa de quase como se os africanos escravizados tivessem vindo para o Brasil por vontade própria, e depois tivessem sido libertos por boa vontade dos colonizadores."
— Akilah Jelani, pai de dois estudantes de São Paulo.

Mesmo assim, ele tentou despertar a curiosidade e trazer para os filhos a noção básica de negritude e pertencimento. Akilah, que trabalha como agente de transformação social em coletivos culturais, levava os filhos para ações que trabalhavam aspectos culturais e estéticas afro-brasileiros.

Agora, Rahzel cursa ciências da computação e Mileenna está prestes a concluir o ensino médio, mas o pai acredita que a escola falhou no desenvolvimento do pensamento crítico dos filhos.

Formação dos professores

A especialista em educação do Itaú Social Juliana Yade defende que o trabalho de transmitir este conhecimento aos alunos deve começar pela formação adequada dos docentes já na graduação.

" Ninguém pode ensinar se não aprender. Há quem aprenda pela vivência, há quem aprenda por conta própria, mas é necessário haver uma padronização nas instituições oficiais do ensino para formar profissionais qualificados."
— Juliana Yade, especialista em educação do Itaú Social

Ela também cobra mais atuação das secretarias de educação, que devem oferecer formação continuada aos professores em atividade.

Em algumas redes, isso já acontece. No Espírito Santo, por exemplo, a Secretaria de Estado da Educação deu cursos de formações continuadas aos professores da rede pública estadual. Entre os temas de formação, estavam “Raízes: Educação das Relações Étnico-raciais” e “Educação das Relações Étnico-raciais e Modalidades Indígena e Quilombola”.

Falta de incentivo

No entanto, esse cenário não é unânime. A professora Lavínia Rocha, que leciona história em duas escolas privadas em Belo Horizonte, opina que falta incentivo.

"Muitos colegas acabam se informando e 'se formando' por conta própria, porque se interessam pelo tema. Mas é difícil se manter atualizado se não houver estímulo das secretarias de educação. Para um professor que trabalha 40 horas por semana, que precisa preparar aulas e corrigir provas, não resta muito tempo livre para estudar.

Ela lembra que aprendeu pouco sobre África e do contexto afro-brasileiro durante sua licenciatura e foi só durante o processo de descobrimento de sua identidade racial que aprofundou seus conhecimentos sobre o assunto.

"Me formei com defasagem no ensino. Não estudei África pré-colonial na faculdade, não vi nada sobre o assunto na escola. Então, estou correndo atrás, e é graças ao meu interesse pelo tema que consigo ensinar com mais empenho", diz.

Recentemente, um vídeo de Lavínia viralizou nas redes sociais. Na gravação, ela mostra o avanço dos alunos de 5º ano após aulas sobre o continente africano no período pré-colonial. Ela conta que ficou feliz com a repercussão e os elogios recebidos, mas que a parte mais positiva da experiência foi ver a animação dos próprios alunos.

"Todos se empenharam para aprender, mas senti a empolgação principalmente nos alunos negros, que sentiam vontade de conhecer a história de seus antepassados, de entender como eles chegaram até aqui e estavam curiosos sobre que a existência deles representa", diz a professora.




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