Lições da privatização na educação
3 lições da privatização na educação e uma solução para o contexto da pandemia
Como reconstruir sistemas de educação resilientes? Normas e princípios ligados aos direitos humanos são mais relevantes do que nunca
Texto publicado no blog do Global Education Monitoring Report (GEM Report), relatório independente anual publicado pela UNESCO, e assinado por entidades do PEHRC (Consórcio Global sobre Privatização da Educação e Direitos Humanos), incluindo a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Para entender os efeitos da pandemia, membros do PEHRC (Consórcio Global sobre Privatização da Educação e Direitos Humanos, segundo o acrônimo em português), uma rede informal de organizações regionais, nacionais e globais que colabora na análise e resposta a desafios impostos pelo crescimento rápido de atores privados na educação da perspectiva de direitos humanos e propor alternativas, monitoraram as notícias relacionadas à educação privada no contexto da pandemia de COVID-19. Da análise, surgiram três lições principais.
1. Empresas de tecnologia não estão diminuindo desigualdades educacionais, e podem até perpetuá-las
Autoridades da educação de todo o mundo tentaram rapidamente mudar modelos educacionais para garantir a continuidade do “aprendizado”, com muitos deles apoiando várias soluções digitais. Conforme discutimos abaixo, existem diferentes formas de oferecer educação a distância, incluindo a “alta tecnologia” (geralmente por meio de equipamentos de Tecnologia da Informação), e baixa ou nenhuma tecnologia (como no uso de programas de rádio, por exemplo).
De acordo com estimativa da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), 95 países introduziram soluções online durante a pandemia, e o ensino remoto está se tornando cada vez mais uma parte integral da educação no mundo. Isso levou à criação de uma narrativa sugerindo que a educação a distância e a tecnologia poderiam ter um papel central na solução de desafios educacionais. Grandes corporações de tecnologia como Google, Microsoft e Facebook ganharam ainda mais exposição global com a educação, publicando estudos como o “Educação Reimaginada”, sugerindo uma mudança de paradigma na educação, e empresas educacionais começaram a vender plataformas online que promovam essas alternativas de longo prazo para a educação.
Entretanto, as soluções online não funcionam bem para todos e estão causando grandes preocupações em relação a igualdade e equidade nos sistemas educacionais. Atualmente, pelo menos 500 milhões de crianças não estão acessando alternativas de ensino remoto e 47% dos estudantes de educação primária e secundária (do ensino fundamental ao médio), que são público-alvo de plataformas online, não têm acesso à internet. Exemplos são inúmeros: no Paquistão, apenas 31% das casas têm acesso à internet; na América Latina, 46% de meninos e meninas entre 5 e 12 anos vivem em casas sem acesso à internet; no Quênia, apenas 22% das crianças têm esse acesso. Esse não é um problema apenas do sul global. Em certas regiões da Espanha, até 20% dos estudantes não têm acesso aos materiais online; nos EUA, uma em cada dez crianças de famílias de baixa renda tem acesso reduzido ou nenhum acesso à tecnologia para o aprendizado.
A educação a distância, feita particularmente por meio de soluções de alta tecnologia promovidas por empresas privadas, pode ser, portanto, uma concretização muito problemática do direito à educação. Além disso, depender de corporações multinacionais para entregar soluções educacionais é contribuir para o surgimento de novas formas de privatização e comercialização da educação, suscitando muitos outros receios, por exemplo, os ligados ao controle democrático da educação.
Conforme expressado pela Relatora Especial da ONU para o Direito à Educação, Koumbou Boly Barry, em seu relatório sobre a COVID-19, “a digitalização da educação nunca deve substituir a educação presencial com professores, e a numerosa chegada de atores privados por meio da tecnologia digital deveria ser considerada um grande perigo para os sistemas educacionais e os direitos educacionais para todas e todos.”
2. Em muitos casos, a privatização cria sistemas de educação não resilientes e insustentáveis
A crise destacou muitos casos de vulnerabilidade surgindo de sistemas educacionais dependentes de atores privados e resultando em riscos para o direito à educação.
Mostrou que escolas privadas não têm a capacidade de enfrentar a crise por muitos motivos, que incluem a dependência de mensalidades cobradas a famílias com baixa renda, pressão para a manutenção de lucro, má gestão focada em curto prazo, e falta de acesso a crédito. Peru, Paquistão, Índia, Reino Unido e Argentina enfrentam a possibilidade de fechamento massivo de escolas privadas. No Quênia, no Marrocos e no Senegal, governos tiveram que intervir para salvar escolas privadas, e no Nepal e no Paquistão houve pressão por parte de escolas privadas para que os governos dessem apoio durante a crise. Vimos práticas como essas sendo permitidas, com fundos de emergência do coronavírus sendo entregues para escolas privadas nos EUA - o que foi logo depois derrubado por um juiz de instância federal pois a aplicação violaria a lei.
Essa fragilidade das escolas privadas claramente teve um efeito nas crianças que precisaram estar fora da escola, assim como suas famílias. Embora muitas famílias tenham perdido suas fontes de renda, um número significativo de escolas privadas continua cobrando mensalidades, mesmo quando não conseguem continuar oferecendo seus serviços. Por exemplo, na Tunísia, pais ficaram apreensivos sobre como continuar pagando suas mensalidades nos próximos meses; na República Democrática do Congo, escolas privadas pressionaram as famílias a pagaram as mensalidades, e na Índia escolas privadas continuam a aumentar taxas, apesar de orientações contrárias do governo.
A crise também expôs a falta de proteção de leis trabalhistas para professores de escolas privadas. Exemplos incluem professores de escolas privadas da Somália encarando incertezas quanto à manutenção dos salários atuais, e escolas privadas de Paquistão, Maláui, Senegal, Marrocos, Chade, República Democrática do Congo e Jordânia se organizam para pagar seus profissionais da educação, com escolas privadas da Índia decidindo pagar seus professores por carga horária trabalhada em vez dos salários mensais. Na Índia, instâncias judiciárias garantiram que, se as escolas privadas continuarem a receber mensalidades também devem priorizar o pagamento dos profissionais da educação com o dinheiro que receberam. A BIA (Bridge International Academies) também sofreu fortes críticas. No Quênia, profissionais da BIA foram desligados com apenas 10% do pagamento devido, e continuam sem saber como podem receber o que têm direito, e na Libéria o Ministério do Trabalho iniciou investigação sobre queixas de que a BIA reduziu salários de seus empregados entre 80% e 90% apesar de norma do governo proibir cortes além de 50%.
Em outros casos, governos interferiram a favor das escolas privadas especificamente quanto ao pagamento de salários, refletindo o papel central dos governos federais em assegurar a sustentabilidade de um serviço como a educação e de direitos trabalhistas básicos. Esse foi o caso do Congo e da Costa do Marfim, enquanto professores do Togo e da Mauritânia pediram assistência ao governo.
3. A solução urgente: investimento em educação livre e pública, e reconstruir sistemas sustentáveis
A crise da COVID-19 e seu efeito nos sistemas educacionais revelou mais uma vez a importância de sistemas educacionais estáveis, livres, público, inclusivos e bem financiados que sigam princípios dos direitos humanos – e mostra que isso não pode ser alcançado sem as autoridades públicas.
Se existe uma lição para tirar dessa crise da educação é o aspecto indispensável em criar espaços alinhados aos direitos humanos e não mercantilizáveis, com um setor público forte que garanta serviços equitativos para todos, mesmo em casos de contingenciamento.
Normas e princípios ligados aos direitos humanos são mais relevantes do que nunca nesses tempos, e os recentemente adotados Princípios de Abidjan dão recomendações claras sobre como os países podem criar sistemas educacionais mais equitativos, sólidos e efetivos.
Talvez seja mais crítico garantir que, no período de pós-pandemia, os sistemas de educação públicos e livres sejam sustentavelmente financiados por meio de ações de participação no orçamento, tributação progressiva, aumento de auxílios, moratória de dívidas e a rejeição de políticas de austeridade (como articulado no recente chamado para o aumento de investimento público em educação). Esse fundo deveria ser usado para desenvolver sistemas educacionais públicos, sustentáveis e resilientes. Quando governos financiam escolas privadas ou atuam em parceria de grandes empresas de tecnologia para a educação a distância, medidas regulatórias devem ser tomadas para assegurar o direito à educação e a proteção das pessoas em situações de vulnerabilidade.
Enquanto políticos e tomadores de decisão estudam formas de reconstruir suas economias, os governos têm uma oportunidade única em aprender com a crise atual e construir sistemas de educação públicos, livres e sólidos que vão ajudar a humanidade a enfrentar os desafios que vão surgir nas próximas décadas.
Por:
Global Initiative for Economic, Social and Cultural Rights
Solidarité Laïque
Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Initiative for Social and Economic Rights
Global Campaign for Education-US
Asociación Civil por la Igualdad y la Justicia (ACIJ)
Oxfam India
ActionAid
The East African Centre for Human Rights (EACHRights)
Right to Education Initiative
Latin American Campaign for the Right to Education (CLADE)
The International Federation of Centers for Training in Active Education Methods (Ficeméa)
Equal Education
Members of the Privatisation in Education and Human Rights Consortium
(Tradução: Renan Simão)
(Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)