Matar o melhor sistema educacional do mundo
Governo Bolsonaro quer matar um dos 10 melhores sistemas educacionais do mundo: os institutos federais
Sabe-se lá por que, alguns querem precarizar o trabalho docente e a qualidade do serviço prestado dos IFs
Na última avaliação do PISA (Programme for International Student Assessment), o maior sistema de avaliação de Educação Mundial, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) figuram entre os 10 melhores sistemas de educação do planeta, à frente de países como EUA, Coréia do Sul, Alemanha e Reino Unido.
Essa qualidade irrepreensível só é possível devido à organização pedagógico-científica dos IFs, que até o governo Bolsonaro possuía autonomia para regulamentar as atividades docentes, sem NUNCA negar o tripé Ensino-Pesquisa-Extensão, único caminho viável para atingir tal nível de desempenho internacional.
Os IFs são ilhas de progresso educacional, científico e tecnológico no Brasil que, em vez de serem estimulados e reproduzidos, vêm sofrendo com ataques contundentes ao seu orçamento desde 2016 e, a partir de 2019, com interferência direta na organização do trabalho dos docentes.
A morte anunciada dessa pérola educacional brasileira se deu com a Portaria 983/2020 – MEC, que desconfigura a organização pedagógica-didática-científica dos IFs ao sepultar as atividades de pesquisa, extensão e inovação na carga horária docente. Tal portaria visa transformar os IFs em instituições apenas de ensino, num viés carcomido de educação que se baseia na “transmissão” de conteúdos apenas, à despeito da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
A Portaria estabelece carga horária mínima de aula (14 horas), sem limitar carga horária máxima. Esse estratagema desenha o cenário planejado de sucateamento do melhor sistema educacional da história do Brasil. Se não há carga horária máxima, isso significa que, enquanto os professores não estiverem com toda sua carga horária tomada por aulas, nenhum outro docente poderá ser contratado.
Há de se observar que esse mínimo de 14 horas impossibilita a manutenção da qualidade, já que a Portaria estabelece que a cada hora de aula some-se uma hora de preparação, correção, avaliação etc. Seriam, portanto, no MÍNIMO, 28 horas da carga horária semanal voltadas apenas para aulas. Reitero, isso será o mínimo. Além dessa carga de ensino, os docentes dos IFs são obrigados a participar da gestão, de comissões, grupos de trabalho, coordenações, eventos etc.
Para quem conhece, mesmo que superficialmente, a dinâmica dos IFs, sabe que isso significa o fim da pesquisa, da extensão e da inovação científica e tecnológica. Num país já marcado pelo retrocesso educacional e tecnológico, seu próprio governo age como terrorista anti-educação.
Para os docentes, até mesmo suas progressões de carreira ficarão ameaçadas, já que atividades de pesquisa, extensão, inovação, coordenação de projetos, publicações de livros, artigos, orientações de estudantes etc compõem elementos pesados na pontuação que possibilita aos docentes progredirem. Se não há tempo para essas ações indispensáveis no processo pedagógico, a treva educacional toma conta do ambiente, amputando cognitivamente estudantes que, até então, destacavam-se em eventos nacionais e internacionais, e professores que produzem ciência, inovação, patentes etc.
Os IFs, que têm o potencial de serem o motor propulsor de um novo Brasil, agora se vêm à beira do cadafalso, com os pescoços expostos diante de uma Portaria da Morte: a morte da educação.
O que, por outro lado, impressiona, é a passividade do Congresso Nacional e de gestores dos IFs frente a esse abuso autoritário que atropela a legislação vigente. A corrosão institucional que marca o Brasil da última década se espalha como metástase atingindo órgãos vitais da sociedade, como a educação. A Portaria 983 atropela, flagrantemente, as legislações que estabelecem os princípios da educação profissional, técnica e tecnológica, o que por si só deveria ser motivo de não a cumprir, já que uma portaria está em nível hierárquico menor que uma lei.
A Lei 11892/2008, que criou os Institutos Federais, estabelece entre suas finalidades e objetivos tais ações: desenvolver programas de extensão; desenvolver os arranjos produtivos locais; realizar pesquisa aplicada, empreendedorismo, inovação, cooperativismo e produção cultural; transferir tecnologias para benefício da sociedade; ofertar cursos superiores e de pós-graduação latu e stricto senso (Mestrados e Doutorados) etc.
Pergunto a você, leitor: como realizar qualquer uma dessas atividades supracitadas, que são fundamentais para o desenvolvimento do país, com professores que se tornam máquinas “aulistas”, como se educação se resumisse a isso? Como manter a qualidade destacada pelo PISA, se a Portaria 983 desconfigura toda a dinâmica do trabalho docente? Olhem para a qualidade da educação brasileira, que se resume a aulas, e vejam se é isso que os IFs devem se tornar. Em vez do modelo aulista falido se basear nos IFs para a virada educacional brasileira, ocorre o contrário: querem nivelar por baixo os IFs. A quem interessa tal desmonte?
Além da Portaria ignorar os princípios basilares da Lei de Criação dos IFs, também vai contra outras Leis, como a Lei 12.772/2012 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). A primeira dispõe sobre os cargos e planos de carreira dos professores do Magistério Federal, que destaca a importância da qualificação docente em cursos de doutorado e o processo de progressão de carreira, que está longe de se limitar a aulas ministradas. A LDB, entre tantas normas afetadas pela Portaria 983, estabelece em seu artigo 57 o mínimo de 8 horas semanais de aulas para o ensino superior.
Oras, mas os IFs são instituições de Ensino Superior? Sim, são, também! Mais que isso, os IFs exigem uma capacidade didática para além do ensino superior, pois os professores lecionam para quase todos os níveis educacionais: FICs, Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional de Nível Médio, Formação de Professores, EaD, Graduações, Especializações, Mestrados e Doutorados. Vejam o universo pedagógico pelo qual circulam os docentes dos IFs e o grau de exigência e qualificação para atividades tão diversas. Os docentes do IF fazem tudo isso e ainda realizam pesquisa, extensão, inovação, empreendedorismo, gestão, palestras, oficinas, workshops, assessoria aos arranjos produtivos locais etc.
Somente na cabeça de gente muito incompetente para gerir a educação nacional, ou de pessoas inescrupulosas, pode sair uma portaria como a 983 que assassina um dos melhores sistemas de educação do mundo. Essa portaria é um crime contra a inteligência brasileira.
As reitorias, os conselhos superiores e as procuradorias institucionais deveriam atuar firmemente na resistência a esse desmonte que, para além das dissensões pedagógicas, maculam princípios legais que criaram e regulamentaram os Institutos Federais. A Lei 11892/08, por exemplo, garante autonomia financeira, administrativa e pedagógica aos IFs, disposição legal anulada pela Portaria 983 em essência.
Cabe mencionar, também, que o Artigo 2º da mesma lei diz que os “Institutos Federais são instituições de educação SUPERIOR, básica e profissional” e, em seu parágrafo 1º, afirma que para fins de regulação, avaliação e supervisão das instituições e dos cursos de educação superior, os IFs são equiparados às universidades. Ora, a lei não deixa brecha para interpretações desarrazoadas. Diz claramente que em termos de regras, avaliação e supervisão das instituições E dos cursos superiores, os IFs devem ser tratados como as universidades. A LDB, lei criada antes da existência dos IFs, impõe que a carga horária mínima dos professores da educação superior será de 8 horas. Que tipo de operador do direito interpreta algo diferente quanto à equiparação em termos de regras e avaliação?
Não há fissuras e nem engenharia narrativa que possa ser coerente em dar outro tratamento aos IFs que são, como a própria lei diz, instituições de ensino superior, também. Mas são mais que isso. São instituições de ensino superior e, ainda, de ensino básico e tecnológico. Têm mais funções que a universidade e, sabe-se lá o porquê, alguns querem precarizar o trabalho docente e a qualidade do serviço prestado.
Que as reitorias, conselhos e procuradorias não se deixem intimidar pela imposição de uma reles portaria que desvirtua leis. A hierarquia jurídica não permite esse tipo de sobreposição e, em termos legais, o servidor público deve se negar a cumprir ordem evidentemente ilegal.
Por fim, há vários Projetos de Lei (PDL) no Congresso que respondem negativamente a essa Portaria, como os PDLs, 483, 484, 485 e 487, todos de 2020. Portanto, para evitar assumir atos ilegais propostos pela portaria e, diante de imbróglio legal sobre o tema sendo debatido no Congresso, insta-se segurar a aplicação dessa Portaria nos Institutos Federais para cumprir os princípios da legalidade, moralidade e eficiência que são diretamente confrontados pela Portaria 983, além da ilegitimidade dela perante os princípios legais mencionados no texto. Uma portaria não pode negar, aleijar e impossibilitar as determinações de leis maiores.
Que os deputados brasileiros, procuradores, conselheiros e gestores dos IFs tenham o mínimo de vergonha em suas respectivas caras e impeçam a destruição de um dos 10 melhores sistemas educacionais do mundo. Se esses não agirem como devem, que as comunidades atendidas pelos IFs se manifestem publicamente contra essa Portaria terrorista.
Rodolfo Fiorucci - Doutor em História pela UFG, docente no Instituto Federal do Paraná – IF Jacarezinho