MEC retoma Projeto Rondon

MEC retoma Projeto Rondon

Ministro fala em retomar “valores fundamentais”. NOVA ESCOLA ouviu ex-participantes do projeto

POR:    Samanta do Carmo   
Integrante do Projeto Rondon durante uma aula na Operação Parnaíba, no Piauí

Integrante do Projeto Rondon durante aula no Piauí

Foto: Projeto Rondon/Divulgação Facebook

 

“Na primeira operação, na Ilha do Cardoso, em São Paulo, eu peguei malária. Viajávamos com eles (os militares), mas não tínhamos muito contato. Nosso contato direto era com o pessoal da Universidade de São Paulo (USP). Hoje eu vejo que era bastante estranho, na época eu achava normal, apesar de eu ter sido muito rebelde naquela época, ter sofrido muito… Imagine, eu fui fichada no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) só porque era presidente do centro acadêmico”, diz Ilza Maria Silveira assistente social há mais 30 anos.

Hoje ela trabalha com comunidades quilombolas em Rondônia, mas já atuou com saúde indígena, em clínicas de atendimento a pessoas com dependência química e foi feita refém durante uma rebelião em um presídio, tudo isso ao longo da carreira que começou na Bahia, estado que ela conheceu quando ainda era estudante na Universidade Católica de Santos (SP) e voluntária no Projeto Rondon, anos 1970.

“Eu sou apaixonada pela minha profissão e (participar do Projeto Rondon) era poder colocar em prática aquilo que estava aprendendo”, acrescenta a assistente social.

Por que o tema voltou à discussão?

Na semana passada o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, anunciou em um vídeo institucional que o Projeto Rondon será impulsionado pela pasta como esforço de retomada do ensino de “valores fundamentais, fundantes da nossa vida cidadã” no âmbito universitário.

Uma das referências que o ministro da Educação fez ao mencionar a retomada do Projeto Rondon foi à situação de Roraima. “O Projeto Rondon leva o jovem universitário a visitar as regiões menos desenvolvidas do país, aquelas que foram esquecidas pelo mercado e que precisam ser incorporadas à vida nacional; hoje por exemplo temos em Roraima uma situação de extrema pobreza de pessoas que estão buscando refúgio no Brasil, a presença de jovens universitários lá será uma coisa importante para a valorização de suas profissões em relação às necessidades da sociedade brasileira”, comentou Ricardo Vélez Rodríguez.

Procurado pela reportagem da NOVA ESCOLA, o Ministério da Educação ainda não deu detalhes sobre o que está sendo pensado para impulsionar o Projeto Rondon.  

História do projeto

A primeira fase do projeto Rondon funcionou entre 1967 e 1989, em sua maior parte durante o período da ditadura no Brasil, servindo aos princípios da integração e segurança nacional que norteavam a atuação do então Ministério do Interior. Pensado em conjunto por professores da então Universidade do Estado da Guanabara e instrutores da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, o objetivo era envolver os jovens brasileiros na ocupação dos “espaços geográficos vazios”, na linguagem militar, e, logo, no processo de integração do país.

Em 2005, o programa foi retomado pelo Ministério da Defesa com a participação da União Nacional dos Estudantes (UNE). A presidente da entidade, Marianna Dias, afirma que a UNE vê o programa como “um importante braço de extensão [universitária], de interação da universidade com o povo”. “A experiência regional de conhecimento popular era marcante no projeto, permitia integração de diferentes regiões e culturas do nosso país”, completa a líder estudantil.

Como o MEC se relaciona com esse projeto?

Atualmente, quem coordena o programa é o Ministério da Defesa, em parceria com o Comitê de Orientação e Supervisão (COS), órgão interministerial, cuja presidência é ocupada pelo Ministério da Defesa e que faz o planejamento do Projeto Rondon. Ele reúne representantes dos ministérios da Educação, da Saúde, do Meio Ambiente, da Cidadania, além da Secretaria de Governo da Presidência da República. O decreto que instituiu o Comitê precisa ser alterado por causa da reforma ministerial feita pelo governo de Jair Bolsonaro.

“A Coordenação-Geral do Projeto Rondon já iniciou contatos com diversos ministérios para, em um primeiro momento, buscar a edição de um novo decreto de atualização do COS, visando adequá-lo à nova conformação ministerial do Governo Federal. Em um segundo momento, buscaremos uma participação efetiva de todos os novos membros do COS no incremento orçamentário do Projeto Rondon e no acompanhamento das ações”, informou o Ministério da Defesa à reportagem, por meio de nota.  

O orçamento do Projeto Rondon também sai do Ministério da Defesa. De 2007 a 2014, o programa teve recursos constantes entre R$ 4 milhões e R$ 5,2 milhões, contando com verba de emendas parlamentares em alguns anos. A partir de 2016, com os contingenciamentos impostos pelo governo federal, o orçamento começou a cair, chegando em 2019 com montante previsto em R$ 1, 4 milhão.

A primeira operação do Projeto Rondon em 2019 terminou no último dia 3 de fevereiro. De acordo com o Ministério da Defesa, mais de 300 estudantes e professores permaneceram 16 dias na região do Parnaíba, no Piauí, capacitando cerca de 22 mil pessoas. Foram desenvolvidas atividades como oficinas de captação e tratamento de água, produção de sabão, construção de fossas sépticas, além de rodas de conversas com temas como hábitos saudáveis, qualidade de vida e inclusão escolar. Outras duas operações, uma no Acre e outra novamente no Piauí, estão previstas para este ano.

Desde o relançamento, em 2005, de acordo com dados disponibilizados pelo Ministério da Defesa, foram realizadas 76 operações, em 1.142 municípios de 24 unidades da federação, com a participação de 2.170 instituições de ensino superior e 21.436 universitários e professores, alcançando cerca de 2 milhões de pessoas. As atividades são planejadas pelas universidades e tratam de Cultura e Direitos Humanos, Educação, Saúde, Meio Ambiente, Tecnologia, Produção e Trabalho. Depois, as atividades são adequadas junto com os gestores municipais de acordo com as necessidades das cidades.

Integrante do Projeto Rondon mede a pressão arterial de uma moradora de Bonito, no Pará, em 2012

Integrante do Projeto Rondon mede pressão arterial de moradora de Bonito, no Pará, em 2012

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil - Arquivo

 

Quais as regiões atendidas pelo Projeto Rondon?

A escolha das localidades que recebem o programa é feita pelo Ministério da Defesa junto com o Comitê de Orientação e Supervisão (COS), e durante a ditadura essa decisão também era feita pelos militares. Hoje, o Ministério afirma que usa levantamentos demográfico e socioeconômico dos municípios para diagnosticar os problemas e suas causas e assim planejar as políticas públicas. Os projetos de ações propostos pelas universidades são escolhidos por meio de editais. O edital lançado em 2018, por exemplo, trazia como parâmetro para construção dos projetos de trabalho o documento “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, assinado na Assembleia Geral da ONU de 2015.

Nos anos 1970, por exemplo, várias cidades escolhidas eram estrategicamente importantes para os planos militares, como Picos, no Piauí, ponto quase central da rodovia Transamazônica e que também dava acesso a cidades em que se fortaleciam as associações e sindicatos de camponeses desde a segunda metade dos anos 1950, que mais tarde ficaram conhecidas como Ligas Camponesas. 

As propostas do projeto

Outro padrão que se mantém desde anos 1970 é o tempo de duração de cada operação, entre 15 e 30 dias, de acordo com os períodos de férias escolares. O pedagogo e professor Antônio Carlos dos Anjos, ex-coordenador do Núcleo do Projeto Rondon da Universidade de Brasília (UnB), comenta que a maior transformação que é possível fazer em um mês é na vida dos estudantes e não no cotidiano das cidades que recebem as operações. “Quem mais ganha é o universitário, quando você pega um estudante de uma capital, que come três vezes por dia e tem alguém que se preocupa o tempo todo com ele, e então coloca em uma condição totalmente diferenciada, esse estudante começa a perceber algumas necessidades que para ele não existiam, porque ele sempre teve acesso”, avalia Antônio Carlos.   

De acordo com o Ministério da Defesa, “o projeto, orientado pelos princípios da democracia, da responsabilidade social e da defesa dos interesses nacionais, tem como escopo de atuação dois grandes objetivos: a formação do jovem universitário como cidadão e o desenvolvimento sustentável nas comunidades carentes”.

O desenvolvimento de habilidades sociais dos estudantes também estava no foco durante a primeira etapa do programa, entre os anos 1967 e 1989. Uma publicação oficial do Governo Federal de 1972, chamada “O Projeto Rondon”, observava que o crescente inconformismo juvenil presente em todo o mundo nos anos 1960 e latente no Brasil, gerava a necessidade de mostrar aos jovens brasileiros “o caminho sério e construtivo da participação real nos destinos do Brasil”. 

As histórias de quem viveu o projeto

Ilza Maria Silveira era uma dessas jovens. Entre 1975 e 1978, ela participou como dirigente do centro acadêmico de Serviço Social na universidade onde estudava. Não era um nome central do movimento estudantil, mas era “fichada” pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) assim como todo estudante eleito para cargos de representação na época. Ela foi convidada para ser voluntária no Projeto Rondon pela coordenação do programa em Santos, litoral de São Paulo.

Ilza Maria conta que os colegas chamavam o programa de assistencialismo reacionário, mas, segundo a assistente social, os voluntários não faziam tudo o que os militares queriam. “Fazíamos palestras sobre doenças sexualmente transmissíveis e orientação sobre como fazer horta medicinal. Eles queriam que a gente fizesse coisas bem assistencialistas mesmo, e eu me lembro do conflito ‘para quê ensinar a fazer horta se podíamos entrar em contato com outros lugares e conseguir cestas básicas’”, lembra.

O professor Antônio Carlos dos Anjos foi um dos responsáveis pela reformulação do programa a partir de 2005. Ele colaborou, por exemplo, na construção dos editais pelo Ministério da Defesa, para adequar os parâmetros militares à nova realidade da Educação Superior no Brasil e assim atrair as universidades. Ele defende que cada instituição de Ensino Superior tenha seu próprio programa, com professores dedicados a isso, ao invés de participar das seleções do ministério. Mas também avalia que é difícil pensar o Projeto Rondon fora da coordenação dos militares, não apenas pela eficiência de organização e logística.

“Os militares que trabalham com os civis, no nosso caso, têm como grande objetivo apresentar os quartéis, a forma como os militares são, para a chamada sociedade civil, para que mais pessoas possam querer seguir as carreiras militares”, diz o professor.

Para ele, com os avanços das últimas décadas, não existe mais o problema de não ter onde instalar 300 ou 400 alunos em qualquer capital e até municípios menores, a ponto do quartel ser necessário. Na prática, os quartéis servem apenas de base de passagem para as equipes do Projeto Rondon durante o deslocamento para as cidades onde o programa vai ser desenvolvido.

“Praticamente são dois dias e quatro refeições no quartel. A parte da manhã é a chegada e, no dia à tarde, a saída para as cidades que vão receber o projeto. Na prática, as Forças Armadas são só o ‘anjo’, que é o militar que acompanha cada equipe”, explica Antônio Carlos.

Ao saber que o Ministério da Educação pretende estimular o Projeto Rondon, a assistente social e ex-integrante do projeto Ilza Maria Silveira preferiu manter a cautela e lembrou o fato de o novo governo ter a presença de militares.

“O que será que eles querem? O que vão fazer? Apesar de que o mundo deu muitas voltas, não é todo mundo que aceita rapidamente qualquer coisa, mas ainda tem muita gente reacionária, inclusive dentro da minha profissão. Mas acho que há mais pessoas que pensam diferente dos reacionários.”

 

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