Medo de uma ameaça comunista
Por que existe o medo de uma "ameaça comunista"?
Nas últimas décadas, o vocábulo "comunismo" ganhou força nas guerras ideológicas travadas em redes sociais e até mesmo no discurso oficial da política brasileira. Seu uso foi intensificado durante esta campanha eleitoral e vem sendo apresentado pela extrema direita como uma espécie de ameaça. Por outro lado, é apropriado por parte da esquerda, em tom de brincadeira ou ironia, como sinônimo de defesa de conquistas sociais.
Ignorando as discussões sérias sobre o conceito, que vão desde a remota Grécia Antiga, passando pelas teorias de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), até chegar aos movimentos revolucionários do século 20 – que beberam na fonte desses dois pensadores –, a extrema direita brasileira hoje não teme fazer um uso leviano do termo, segundo explicam especialistas ouvidos pela DW Brasil.
Assim, acaba se referindo a "comunismo" para nomear metas sociais há muito assimiladas por partidos europeus de centro e de esquerda, que ocuparam e ocupam o poder em diversos países do continente desde o pós-Guerra. Essas legendas buscam prioritariamente, ou pelo menos em tese, diminuir desigualdades sociais.
"Se o fascismo histórico se apresentava nos anos 1920 e 1930 como resposta a uma ameaça revolucionária concreta – o comunismo havia sido vitorioso na Rússia e estava em ascensão em vários países –, hoje esta ameaça é completamente inexistente, mas está presente o tempo todo no discurso de líderes como Jair Bolsonaro, por exemplo", comenta o professor de filosofia Rodrigo Nunes, da PUC-Rio e autor do livro Do transe à vertigem. Ensaios sobre o bolsonarismo em um mundo em transição, publicado em 2022.
Anticomunismo: "costura discursiva" e sem distinção entre fatos e opinião
Para Nunes, isso ocorre justamente porque a palavra não corresponde a nada de concreto e pode, assim, se aplicar a praticamente qualquer coisa. "O anticomunismo acaba assumindo a função de dar uma costura discursiva a uma série de objetos que antes estavam soltos: mudanças de costumes, políticas sociais, corrupção, ineficiência econômica. É uma lógica paranoica, mas muito eficaz: se nós não vemos o comunismo, é precisamente porque ele está por trás de uma série de outras coisas que vemos."
Pouco importa se o termo "comunista" se refira a algo real, o que vale é que ele permite às pessoas "tratar como um mal a ser extirpado qualquer proposta de alívio ao inferno da vida cotidiana", analisa o professor Vladimir Puzone, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Ou seja, o uso do termo afasta o confronto com a realidade. Essa paranoia foi constantemente reforçada na sociedade americana a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e serviu de inspiração para a direita brasileira mais recentemente", completa.
O que acontece quando se usa a palavra "comunista" hoje, comenta a professora Luciana Villas Bôas, do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da UFRJ, também diz respeito a uma total indiferença à distinção entre verdade factual e opinião. "Essa indiferença talvez explique por que a noção de 'comunista' pode ser totalmente esvaziada dos sentidos concretos que assumiu em situações históricas específicas."
"A grande explicação para o que está acontecendo"
Ressuscitado no Brasil no início do primeiro governo do PT, em 2003 , esse anticomunismo de mira difusa surgiu "quase que por reflexo", diz Nunes. "Na verdade, o 'pânico vermelho' e os pânicos morais em torno de questões de costumes foram as únicas armas que a oposição teve para atacar o governo durante um bom tempo, porque a economia estava indo bem, a população estava satisfeita e mesmo o escândalo do mensalão fora insuficiente para danificar essa popularidade", completa.
"Atropelamento" de cartaz do PT no Rio de Janeiro na noite do primeiro turno, em 2 de outubro de 2022. Foto: CARL DE SOUZA/AFP/Getty Images
Naquele momento, começaram a surgir no país think tanks, com o propósito de divulgar ideias ultraliberais. "É a partir daí que o anticomunismo começa a mudar de sentido e adquire essa função metanarrativa: ele deixa de ser uma arma entre outras e se torna a grande explicação para o que está acontecendo. E à medida que uma parte considerável da direita tradicional passa a flertar mais e mais com esse discurso, ela não apenas ajuda a trazer para o mainstream ideias que até então habitavam as extremidades do debate público, mas pavimenta sua própria derrota diante da extrema direita", analisa Nunes.
Partidos-irmãos no mundo
Não apenas no Brasil, aponta o professor de História João Luís Lisboa, da Universidade Nova na capital portuguesa, o debate político deslocou-se para a direita. "A social democracia, ao procurar o centro desde o fim dos anos 1980, aderiu ao ideário neoliberal, pelo que posições moderadamente social-democratas passaram a ser identificadas como radicais ou de extrema esquerda. A direita mais extrema tem bandeiras que, por imprecisas que sejam, identificam quem as usa, entre elas essa 'luta contra o comunismo'".
No contexto da atual campanha eleitoral brasileira, esse discurso "anticomunista" se traduz, entre outros, no antipetismo, ou seja, no ataque a um partido que é curiosamente chamado de Schwesterpartei (partido-irmão) pelo Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha – a agremiação, fundada em 1863, do atual chanceler federal, Olaf Scholz.
"Ambos os partidos nasceram como forma de organização dos trabalhadores de seus respectivos países em épocas e contextos distintos. Se o SPD foi bem-sucedido em integrar os trabalhadores ao funcionamento do capitalismo alemão, o PT teve de lidar cada vez mais, ao longo de sua trajetória, com o fato de que uma camada considerável da população brasileira leva sua vida sob condições precárias", analisa Puzone.
As semelhanças entre os "partidos-irmãos" passam até mesmo pela cor vermelha, que marca a identidade visual de ambos. No entanto, o desafio de ser rotulado de "comunista" não foi enfrentado pela social-democracia alemã neste século.
Segundo Puzone, essa diferença tem muito a ver com um alinhamento do Brasil aos Estados Unidos: "A afirmação por parte da extrema direita no Brasil de que qualquer pessoa, que defenda uma regulação da vida social mais próxima a um Estado de bem-estar, seria 'comunista', está mais ligada ao contexto americano do que ao europeu. Na Europa, já se sabe há muito que a maior parte dos partidos de esquerda abandonou qualquer pretensão de uma transformação no modo como vivemos para além do capitalismo".
Alemanha: ampla aceitação do Estado de bem-estar social
Hoje, na Alemanha, seria muito difícil vincular o Estado de bem-estar social a esse vago complexo de ideias ditas "comunistas", visto que "os sistemas de segurança social têm uma longa tradição e vêm, desde Bismarck (1815-1898), sendo sustentados também pelos conservadores", aponta Alex Demirovic, professor do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Frankfurt.
"Nos Estados Unidos ou no Brasil, há uma disposição maior em 'denunciar' o apoio por parte do Estado, por menor que seja. E por que isso funciona? A extrema direita sempre esteve excepcionalmente disposta à violência e praticou genocídios e guerras em nome de uma oposição ao comunismo", explica.