Piratini reage à tentativa da Ajuris e da OAB de melar adesão ao regime de recuperação fiscal
Chefe da Casa Civil tenta convencer deputados que não haverá perda de autonomia
ROSANE DE OLIVEIRA
Pedido das entidades aos pré-candidatos para que mobilizem suas bases contra o projeto de lei complementar que faz pequenos ajustes na lei que autorizou a adesão ao regime está sendo tratado no coração do governo como uma irresponsabilidade. Leandro Osório / Especial Palácio Piratini
A ofensiva da Ajuris e da Ordem dos Advogados Brasil (OAB-RS) contra a adesão do Rio Grande do Sul ao regime de recuperação fiscal fez soar o alarme no Palácio Piratini. O pedido das entidades aos pré-candidatos para que mobilizem suas bases contra o projeto de lei complementar que faz pequenos ajustes na lei que autorizou a adesão ao regime está sendo tratado no coração do governo como uma irresponsabilidade, diante do risco de o Estado ter de voltar a pagar a parcela integral da dívida e mais o que se acumulou desde o governo de José Ivo Sartori.
Para desarmar o que nos bastidores do governo está sendo chamado de “bomba”, o chefe da casa Civil, Artur Lemos, está procurando as bancadas para mostrar que o projeto em questão é apenas um ajuste no teto dos gastos e que a autorização já foi dada pela Assembleia.
— Estamos mostrando a cada bancada que o projeto alterado versa sobre o teto, é um dos últimos detalhes para a homologação e o regime não inviabiliza ou retira a autonomia do Estado. Pelo contrário, busca exigir do gestor planejamento e zelo com a coisa pública — diz Lemos.
Ex-secretário da Fazenda e profundo conhecedor da situação das finanças estaduais, o economista Aod Cunha escreveu em seu perfil no Twitter que o movimento da Ajuris e da OAB é de “uma irresponsabilidade absurda”.
“Candidatos da direita e da esquerda e associação dos funcionários públicos mais bem remunerados do RS querendo que o Estado volte para o atoleiro fiscal”, escreveu.
A adesão foi discutida e rediscutida, antes da aprovação da lei. O Estado já formalizou a adesão e o projeto que está em votação da Assembleia é apenas um complemento exigido pelo governo federal, mas a última palavra será do presidente Jair Bolsonaro.
ALIÁS
A venda de estatais e a aprovação das reformas administrativa e previdenciária foram a parte mais difícil para o cumprimento das exigências do governo federal para aderir ao regime de recuperação fiscal. Todos os documentos foram encaminhados à Secretaria do Tesouro Nacional em fevereiro.
PT quer deixar decisão para próximo governo
O movimento da Ajuris e da OAB-RS tem o apoio do PT, que votou contra a adesão ao regime de recuperação fiscal.
— O ingresso da OAB e da Ajuris no debate fortalece a nossa tese de que tínhamos de questionar essa dívida ilegítima. A União cobrou juro sobre juro, é ilegal. Há uma ação no STF, promovida pela OAB. Queremos que o Estado não apresse a adesão. Esse é um assunto para o próximo governo — diz o líder do PT na Assembleia, Luiz Fernando Mainardi.
E se cair a liminar que mantém os pagamentos suspensos?
— Se cair, o governo vai ter que fazer o que os outros governos fizeram. Todos pagaram.
Sim, todos pagaram, exceto o atual e o de José Ivo Sartori. No caso de Tarso Genro, usou os depósitos judiciais. Agora não pode mais.
Assinada pelo secretário do Tesouro Nacional, Paulo Fontoura Valle, a decisão é considerada uma vitória por Eduardo Leite e pelo secretário estadual da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso, e chega quase cinco anos depois da primeira tentativa - realizada pelo então governador José Ivo Sartori, sem êxito. Contribuíram para a reversão do resultado, as reformas e privatizações aprovadas por Leite, além de alterações na própria lei do regime ao longo de 2020 e 2021, que tornaram as exigências mais brandas.
A partir de agora, se inicia uma segunda etapa nas negociações. Para obter a homologação final do acordo e a assinatura do presidente da República, Jair Bolsonaro, Cardoso e a equipe terão de apresentar, em até seis meses, um plano de recuperação fiscal.
Esse plano será uma espécie de bússola financeira do Estado pelos próximos nove anos e terá de conter medidas garantindo que, ao final desse prazo, o governo gaúcho estará com as contas em dia e apto a voltar a pagar as parcelas integrais da dívida com a União e de outros passivos.
O que é o regime de recuperação fiscal
- É um programa de ajuste para Estados em situação de desequilíbrio financeiro
- Na prática, permite a flexibilização de regras fiscais durante a vigência do regime (nove anos), a concessão de empréstimos para fins específicos (voltados à reestruturação das contas) e a suspensão do pagamento de dívidas
- Em contrapartida, o Estado deve adotar medidas e reformas institucionais para garantir que o equilíbrio fiscal seja restaurado
Quais são as etapas
São quatro fases
1- Primeiro, o governo do Estado apresenta o pedido de adesão à Secretaria do Tesouro Nacional (STN), vinculada ao Ministério da Economia - isso ocorreu em 27 de dezembro de 2021
2- A STN, então, tem 30 dias para analisar o pedido, verificar se o Estado se enquadra no regime de recuperação e dizer se aceita ou não - a resposta foi positiva e chegou nesta sexta-feira (28)
3- Com o aval inicial, o governo do Estado já passa a cumprir as vedações impostas como contrapartida (leia abaixo) e tem até seis meses para propor um plano de recuperação fiscal, que terá vigência nove anos e deverá resultar no restabelecimento do equilíbrio das contas
4- O plano proposto será avaliado pelo Ministério da Economia, com base em pareceres da STN, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e do Conselho de Supervisão do Regime. Essa etapa terá prazo de 25 dias (15 para os pareceres e mais 10 dias para manifestação do ministério). Havendo manifestação favorável, o presidente da República poderá, então, homologar o plano e estabelecer a sua vigência, efetivando o ingresso do Estado no regime
O que o Estado ganha, se aderir
1- Suspensão total de dívidas pelo prazo de até 12 meses (não só a dívida com a União, mas passivos que tenham garantia do governo federal, incluindo a dívida externa). A partir do segundo ano do regime, o pagamento será retomado de forma gradativa, até que, ao final dos nove anos, as prestações voltarão a ser pagas integralmente, em tese, com as contas sanadas
2- Suspensão dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal para as despesas com pessoal e a dívida consolidada (há penalidades em caso de descumprimento). Hoje, o Estado não extrapola o limite de gastos com pessoal, mas o endividamento está acima do permitido, o que impede novos empréstimos
3- Dispensa de cumprir uma série de exigências fiscais (por exemplo: repasse em dia de tributos, empréstimos e financiamentos à União) para poder receber transferências federais voluntárias
4- Dispensa de todos os requisitos legais exigidos para a contratação de operações de crédito com garantia da União. Os financiamentos passam a ser permitidos, desde que estejam previstos no plano de recuperação e sejam voltados ao reequilíbrio das contas (por exemplo: para financiar a reestruturação de passivos; no caso do RS, isso vale, em especial, para a dívida com precatórios, de R$ 16 bilhões)
Mas a dívida já não está suspensa?
1- Sim, desde 2017, com base em uma liminar judicial, o Estado não paga a dívida com a União
2- O problema, segundo o governo Leite, é que já são R$ 14 bilhões em atraso, e a liminar é uma decisão provisória, sem garantias de que se manterá de forma definitiva
3- Se cair, o governo tem de pagar a pendência, e não há dinheiro suficiente em caixa
4- Com a adesão ao regime, o valor em atraso será refinanciado em até 30 anos, em um novo contrato, cujo pagamento terá início no segundo mês após a homologação final do pedido de adesão
As contrapartidas exigidas
Para ter os benefícios mencionados acima, o governo do Estado terá de cumprir uma série de vedações, assim que aderir ao regime. Embora existam exceções e haja a possibilidade de alterações (desde que fique claro que isso não afetará o resultado final), o governo do RS não poderá adotar as seguintes medidas:
1.Concessão de reajustes a servidores e empregados públicos e militares (com exceção da revisão anual assegurada pela Constituição Federal e de casos envolvendo sentença judicial)
2.Criação de cargo, emprego ou função e alteração de estrutura de carreira que impliquem aumento de despesa
3.Admissão ou contratação de pessoal, ressalvadas as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa e de contratos temporários
4.Realização de concurso público que não seja para reposição de quadros
5.Criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza a servidores e empregados públicos e de militares
6.Criação de despesa obrigatória de caráter continuado
7.Adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória
8.Concessão, prorrogação, renovação ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita
9.Empenho ou contratação de despesas com publicidade e propaganda, exceto para as áreas de saúde, segurança, educação e outras de demonstrada utilidade pública
10.Alteração de alíquotas ou bases de cálculo de tributos que implique redução da arrecadação
Regime de recuperação fiscal: saiba quais serão os primeiros reflexos no governo do RS se pedido de adesão for aceito
Governador Eduardo Leite vai apresentar solicitação para ingressar no programa de ajuste federal nesta terça-feira (28)
JULIANA BUBLITZ
Com o novo pedido de adesão ao regime de recuperação fiscal a ser apresentado nesta terça-feira (28) à Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o governador Eduardo Leite promete dar mais um passo em direção à sanidade das contas do Estado. Se for aprovado nessa fase (a resposta vem em 30 dias), o ingresso no programa de ajuste federal — que continua dividindo opiniões no Rio Grande do Sul — começará a surtir efeitos sobre a administração estadual a partir do final de janeiro.
Entre os primeiros reflexos, estão, por exemplo, a proibição de reajustes salariais para o funcionalismo, com exceção da revisão anual, que é assegurada na Constituição Federal. Também ficam vedadas iniciativas como a realização de concursos que não seja para reposição de quadros e a criação de novos cargos e funções públicas que impliquem aumento de gastos (veja os detalhes abaixo).
Ao mesmo tempo, de imediato, o Estado terá dívidas suspensas de forma integral por 12 meses. Isso vale não só a dívida com a União (R$ 70 bilhões), que hoje já está paralisada graças a uma liminar, mas também para outras pendências oriundas de contratos garantidos pelo governo federal (no valor próximo de R$ 10 bilhões). O Estado ainda poderá dar início à contratação de empréstimos para quitar outros passivos, como precatórios.
Assim que a solicitação for entregue, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) terá 30 dias para aceitar ou recusar. Em 2017, o então governador José Ivo Sartori fez uma tentativa, mas acabou recebendo "não" como resposta, porque os pré-requisitos não foram atendidos.
Desta vez, o pedido será feito com base em novo regramento, menos exigente, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro no início de 2021. Se o retorno for positivo — e Leite está convicto disso —, o governo estadual terá, então, até seis meses para apresentar um plano de recuperação à STN, com vigência de nove anos. Ao final desse período, as contas do Estado precisam estar equilibradas e aptas a voltar a pagar de forma integral as parcelas das dívidas.
Ainda que a situação financeira tenha melhorado em 2021, com pagamentos em dia e arrecadação acima do esperado, Leite sustenta que não há como escapar do regime. Segundo ele, o ano foi atípico, com as receitas amplificadas pela inflação e pelo dinheiro das privatizações. Em 2022, entre outros fatores, haverá queda nas alíquotas de ICMS e será mais difícil manter o patamar.
O mandatário argumenta, ainda, que a liminar da dívida é uma decisão provisória, que pode cair a qualquer momento, exigindo o pagamento dos valores atrasados, além da retomada das parcelas ordinárias. A pendência já soma R$ 14 bilhões (nove folhas salariais do Executivo). Ainda há a dívida com precatórios, de R$ 16 bilhões, que precisa ser quitada até 2029 (com o regime, será possível fazer financiamento para bancar parte do passivo).
Apesar disso, o assunto é alvo de questionamentos, como tem sido desde que o programa entrou em cena, há cinco anos. Na avaliação do economista Darcy Carvalho dos Santos, que foi auditor fiscal do Estado e acompanha a evolução das finanças públicas, a adesão, de fato, é a saída para acabar com o temor do governo diante da possível queda da liminar e do risco de uma hecatombe nas contas. A dúvida é o que vai acontecer nove anos depois.
— Se não aderir, o governo vai ter de quitar o valor em atraso da dívida. E é muito dinheiro. A questão é que, ao final do regime, precisará voltar a pagar o valor integral. Calculo que as parcelas podem chegar perto de R$ 600 milhões por mês. Ainda que as receitas venham crescendo e que as despesas com pessoal, desde as reformas, tenham parado de subir, é difícil prever como será a realidade no futuro. A receita terá de seguir crescendo para suportar isso e os gastos terão de ficar sob rigoroso controle — pondera Santos.
Relator da comissão especial criada na Assembleia para debater o tema, o deputado estadual Carlos Búrigo (MDB), que integrou a gestão Sartori, só vê benefícios na adesão.
— É a solução que temos para o problema da dívida e virá acompanhada de uma série de medidas de responsabilidade fiscal, tanto pelo lado da receita quanto das despesas. Temos de cortar na carne para lá na frente termos um Estado em melhores condições — defende Búrigo.
O entendimento está longe de ser unânime. Presidente da comissão especial sobre a crise das finanças e reforma tributária do Legislativo, o deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT) vê a adesão como um erro. Para ele, além de não resolver a questão da dívida, a medida engessará futuros governos.
— Apenas um Estado aderiu ao regime até agora, o Rio de Janeiro, e ele não cumpre e nem teria como cumprir as regras, porque são absurdas. Aqui vai ser a mesma coisa, e Leite vai comprometer os próximos dois governos. Vai transformar o Rio Grande em um cumpridor de ordens, um capataz, do governo federal. Podemos superar essa crise, mas o caminho é outro. Passa por questionar a dívida, que já foi paga em 2013 — afirma Mainardi.