Menos rankings, mais pertencimento

Menos rankings, mais pertencimento

Menos rankings, mais pertencimento: outro discurso para a educação pública

Para Paulo Blikstein, professor brasileiro da Universidade de Columbia, fazer apenas o básico na escola pública significa evasão

por Paulo Blikstein  15 de outubro de 2021

Menos rankings, mais pertencimento: outro discurso para a educação pública - PORVIR

 

O discurso educacional no Brasil hoje se baseia excessivamente na ideia de otimização, eficiência, metrificação e rankings. Esse debate se tornou ainda mais forte durante a pandemia, quando as atividades escolares se moveram para o ensino remoto e passamos a medir também a “perda” de aprendizagem. Na época em que comemoramos o centenário de Paulo Freire, é bom lembrar de uma de suas mais geniais metáforas: a da educação bancária, aquela em que o conhecimento é depositado nas cabeças dos estudantes como se fossem receptáculos passivos.

Medir é bom, mas estruturar um sistema em torno de medidas simplificatórias é perigoso: o que é fácil medir nem sempre é o mais importante. Além disso, sabemos que incentivos excessivos para o sucesso das escolas em certos rankings distorcem o sistema. Uma medida meramente diagnóstica, se sai em todos os jornais e TVs, vira uma métrica estruturante.

Mas há outro fator importante: o discurso da otimização e dos rankings esquece é que, no fim das contas, se o aluno não quiser aprender e não estiver minimamente interessado na escola, não há mágica econométrica, estatística ou tecnológica que resolva. E foi isso que vimos, de novo, na pandemia: mesmo quando o aluno podia aprender em casa, no seu tempo, no seu ritmo, a estratégia bancária de empurrar conteúdo goela abaixo —mesmo que por aplicativos ou outras parafernálias eletrônicas— funcionou menos ainda. O problema não era o lugar, o tempo, ou o ritmo: era a pedagogia, o interesse do aluno, o suporte da professora ou do professor.

Medir é bom, mas estruturar um sistema em torno de medidas simplificatórias é perigoso

E por que educadores “chatos” ficam repetindo que o aprendizado precisa de motivação e engajamento, de relevância, de conexão com a cultura do aluno? A razão não é só filosófica, mas empírica. Um dos resultados experimentais mais incontestáveis das ciências cognitivas é que, apesar do aprender ser um processo natural no cérebro humano, o aprendizado sistemático e diário da escola é dificílimo. E não só por necessitar de um grau enorme de concentração e disciplina, mas porque o conteúdo escolar muitas vezes contradiz as nossas concepções espontâneas da realidade —aprender implica em combinar o que sabíamos antes com coisas novas, mas muitas vezes também abandonar concepções que não servem mais— e esse é um processo lento e complexo.

Durante quase toda a existência humana, tínhamos ideias incompletas ou equivocadas sobre a Física, a Medicina e a Astronomia. Achávamos, não há muito tempo, que a Terra era o centro do sistema solar e que a melhor cura era sangrar os pacientes. Agora, esperamos que crianças de 10 anos aprendam o conhecimento acumulado de séculos em algumas horinhas de aula expositiva, sendo que a própria humanidade precisou de centenas de anos para entender essas ideias (e abandonar as antigas).

Educadores como Paulo Freire e Edith Ackermann perceberam que esse processo difícil de desconstrução e reconstrução de teorias e do conhecimento acontece melhor quando a criança quer participar dele. Isso não é o mesmo que dizer que a criança tem que, a todo momento, estar se divertindo e achar tudo fácil. Mas ela tem que aceitar, de forma sincera, o compromisso de começar uma caminhada com o professor e com os colegas de classe, e acreditar que vai chegar em um lugar de valor para ela. Esse compromisso faz com que, mesmo diante das dificuldades, ela aceite continuar na caminhada.

Continuar em uma escola que não engaja os seus interesses e realidades não faz sentido. É um passo para a evasão

É por isso que a motivação, o pertencimento e a relevância são tão importantes na escola: as crianças precisam disso para estabelecer uma relação sólida e positiva. Nenhum aplicativo, centro de mídias, mensagem de texto ou mágica de economia do comportamento vai criar essa relação. O que a cria é um ambiente acolhedor, democrático, flexível e antenado ao mundo das estudantes.

E é por isso que o Brasil precisa de uma escola diferente, principalmente para crianças que vivem em situações vulneráveis. Para elas, continuar em uma escola que não engaja os seus interesses e realidades não faz sentido. É um passo para a evasão.

Para uma criança de classe média é muito mais fácil continuar na escola. Ela está lá para concluir o ensino médio, fazer faculdade e conseguir um emprego. É uma trajetória clara e inquestionável para as famílias. Mas hoje são esses estudantes que têm a oportunidade de encontrar uma escola mais interessante e antenada, com atividades extracurriculares, aulas de robótica, artes, idiomas, esportes. São essas crianças que vão encontrar mais oportunidades de trabalhar com projetos, em espaços maker e em laboratórios de ciências.

Já as crianças que não vêm desses extratos sociais encontram exatamente o contrário, e continuam em uma escola padronizada, empacotada, que dá o “básico.” E, tragicamente, são elas que de fato precisam de uma escola mais motivadora.

É urgente mudar o discurso da escola pública como o lugar que só oferece e mede o básico

Se tentamos otimizar a escola pública só para rankings nacionais e internacionais, essas métricas deixam de ser indicadores de qualidade global e passam a ser a razão de ser da escola—um fenômeno bem conhecido no mundo da pesquisa educacional. O resto — aquilo que faria o aluno criar conexões positivas com o aprendizado — fica para escanteio. Sim, é importante medir se a escola está fazendo o “básico”, mas não podemos confundir isso com achar que ela deve fazer só o básico—porque isso, hoje, significa evasão.

Percebemos com a pandemia que a escola é mais necessária do que nunca e que entregar o conteúdo escolar por aulas virtuais e remotas —o básico do básico—nunca irá substituir o estar na escola. A aluna não quer aprender “no seu tempo, no seu ritmo e no seu sofá” como dizem muitos gurus de empresas de tecnologia educacional. Ela quer aprender junto com outras pessoas, quer aprender sobre tópicos relevantes, quer perceber conexões entre a escola e a vida, quer se sentir reconhecida, valorizada e pertencente ao mundo da escola.

É urgente mudar o discurso da escola pública como o lugar que só oferece e mede o básico. Dar o básico e se obcecar com rankings não vai trazer nossas crianças e jovens de volta. Ou transformamos a escola pública em um lugar diferente, ou ela vai continuar a produzir evasão e exclusão em massa, e o Brasil continuará um país tragicamente desigual.




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