Mentiras sobre o retorno das aulas
Cinco mentiras sobre o retorno das aulas presenciais
Programada em São Paulo para acontecer em fevereiro, retomada das escolas "não garante a segurança das pessoas"
"Quem elaborou os protocolos (de retorno) não conhece a realidade no dia a dia de uma escola" - Gerson Klaina
O governador João Doria autorizou o retorno das aulas presenciais a partir do dia 1 de fevereiro para a rede pública e privada. O retorno não é obrigatório para os estudantes, apenas para os trabalhadores da educação. Em relação aos estudantes, cada família optará se seus filhos deverão ou não retornar. As pesquisas, sejam gerais ou de cada escola, mostram que menos de 50% das famílias são favoráveis ao retorno.
Os pais e responsáveis estão sendo jogados para uma dura decisão: retornar às aulas presenciais e colocar a vida em risco, ou se responsabilizar por um possível atraso educacional. Os professores estão sendo colocados como inimigos por se posicionarem contra o retorno. E o governo se isenta de responsabilidades.
Muitas mentiras estão sendo ditas por aí. Os argumentos distorcidos precisam ser desvelados. Vamos às mentiras:
1. Todos os trabalhadores voltaram aos seus trabalhos, os professores não querem voltar
Os professores não pararam de trabalhar durante a pandemia, pelo contrário, trabalhamos muito mais. Assim que foi decretado o isolamento, em 20 de março de 2020, o recesso foi antecipado para que as redes de ensino pudessem se organizar para o ensino remoto. Passado o recesso, os professores retornaram ao trabalho, desenvolvendo suas atividades pedagógicas a partir das plataformas estabelecidas pelas redes de ensino. Tivemos que trabalhar mais durante todo esse período. Tivemos que refazer os nossos planejamentos e nos readequarmos às novas metodologias de ensino, já que não se trata de uma mera transferência da atividade presencial para a plataforma digital. Atendemos alunos e famílias fora dos nossos horários de trabalho, por diversas vias, inclusive pessoais, para além da plataforma oficial que apresentou diversas dificuldades para seu acesso por parte dos alunos e famílias. Tivemos que aprender na marra a nova metodologia de trabalho!
Queremos voltar ao trabalho presencial, sentimos falta da escola, dos nossos alunos, em realizar nossas atividades presencialmente e em segurança. Todos nós estamos cansados do isolamento social! No entanto, o retorno proposto não garante a segurança das pessoas envolvidas na dinâmica escolar.
2. Os protocolos garantem a segurança no retorno das aulas presenciais
São anos de sucateamento da escola pública. As turmas são cheias; falta estrutura na escola (pias e banheiros quebrados, sem material de higiene, sem janelas adequadas, etc); os baixos salários fazem com que os professores tenham que assumir muitas turmas e dar aulas em várias escolas, acumulando rotinas de 60 horas de trabalho semanais; faltam funcionários em todos os setores (inspetores, limpeza, gestão, professores, etc). Resolver tais questões têm estado no centro da reivindicação do movimento docente e foi pautado durante o período da pandemia e negociações para o retorno. Ainda estamos longe destas condições.
Para além das condições da própria escola, o retorno coloca em circulação 32% da população do estado de São Paulo, o qual possui cerca de 13,3 milhões de estudantes e 1 milhão de professores e demais profissionais da educação (dado apresentado no plano de retorno das aulas elaborado e apresentado em coletiva de imprensa pelo governo de SP no início do segundo semestre de 2020). Os protocolos não garantem as condições de segurança necessárias para o trajeto dos alunos e trabalhadores até a escola. Muitos alunos, professores e trabalhadores vão para escola em transporte coletivo. Ônibus e metrôs já estão lotados, com o retorno das aulas ficarão ainda mais cheios, colocando maior parcela da população em risco de contaminação.
Um outro aspecto a observarmos, é o fato de, por conta dos baixos salários, os professores precisam atribuir aulas em mais de uma escola. É comum professores acumularem cargos e terem jornadas de 60, 70 horas semanais. Há professores que trabalham manhã, tarde e noite - pasmem!. Circulando entre diversas turmas e escolas, contribuíram para a elevação dos níveis de contágio.
Os protocolos não levam em consideração os aspectos pedagógicos e a natureza do processo de ensino-aprendizagem, o qual se faz com troca e solidariedade. Muito difícil os alunos ficaram dentro dos seus metros quadrados, sem circular, sem emprestar materiais, sem fazer atividades em grupos, sem matar saudades dos colegas com um forte abraço depois de quase 1 ano de isolamento. Muito difícil o professor ficar apenas na lousa, não ir até as carteiras auxiliar os alunos nas atividades, não emprestar materiais, não demonstrar afeto. Quem elaborou os protocolos não conhece a realidade no dia a dia de uma escola.
3. A retomada das aulas presenciais resolverá o prejuízo educacional
É consenso a compreensão de que a pandemia aprofundou e escancarou a desigualdade educacional e trouxe um prejuízo enorme para o aprendizado. É consenso de que teremos que enfrentar o aprofundamento do atraso e da evasão escolar pós pandemia. É notório que o ensino à distância é ineficiente para o processo de ensino-aprendizagem na educação básica.
No entanto, a proposta de retomada tal como proposta não resolve o prejuízo educacional, pelo contrário, o aprofunda.
De acordo com a proposta de retomada, a escola deve receber no máximo 35% dos alunos em cada turno, na forma de revezamento. Por exemplo, para uma turma de 30 alunos (em geral, nas escolas públicas as turmas chegam a 40 ou mais alunos), na semana 1 irão os alunos de 1 a 10; na semana 2 irão os alunos de 11 a 20; na semana 3 irão os alunos de 21 a 30. Ou seja, os estudantes que participaram das aulas na semana 1 só voltarão a ter aula presencial depois de 3 semanas. No período não presencial continuarão tendo aula online. Os professores terão que acompanhar as aulas presenciais e online, ao mesmo tempo, sem ganhar a mais ou ter tempo específico dentro de sua jornada para as duas modalidades. A preparação e execução de uma aula remota é muito diferente de uma aula presencial.
Com os alunos comparecendo poucas vezes na escola e com os professores tendo que ministrar duas aulas ao mesmo tempo em modalidades distintas, o que vai acontecer é o aprofundamento do prejuízo educacional gerado pela pandemia.
Além de aprofundar o prejuízo educacional, a proposta de retomada não resolve o problema das famílias na busca de um lugar para deixar seus filhos para poderem ir trabalhar. Também não resolve o problema da falta de acesso para o ensino remoto. As crianças continuarão em casa e as aulas online também seguirão, no entanto com qualidade menor.
4. Vulnerabilidade
Outro argumento utilizado pelos governantes para o retorno das aulas presenciais é o contexto de vulnerabilidade ao qual os estudantes estão submetidos.
Não é a escola que resolverá a vulnerabilidade social. São medidas efetivas por parte do poder público, que fortaleça a assistência social, a saúde e reduza o desemprego.
Se há uma preocupação real com a vulnerabilidade social, o auxílio emergencial deve ser mantido e ampliado. Os estados devem criar seus próprios auxílios, como complemento ao federal. Muito conveniente o argumento da vulnerabilidade social para o retorno das aulas no momento em que o auxílio emergencial é cortado, jogando milhões para a pobreza.
É o desemprego, a crise econômica, a descoordenação do controle da pandemia que está
aprofundando a crise social. É comum ouvirmos relatos de estudantes de ensino médio que não voltarão às aulas presenciais porque estão trabalhando e são a única fonte de renda da família. É comum encontrarmos o quadro de familiares perdendo emprego, sendo que a possibilidade de trabalho como jovem aprendiz ou entregador de aplicativo se torna a única possibilidade de renda da família.
Vale ressaltar que foi a luta dos professores durante a pandemia que garantiu auxílio merenda para todos os estudantes, que garantiu auxílio para compra de uniforme e material escolar, que reivindicou a distribuição de cestas básicas para todos.
5. Saúde mental
Alega-se que os estudantes estão com a saúde mental prejudicada por estarem fora da escola. Será o distanciamento da escola ou a perda de familiares e pessoas queridas, ou o desemprego, a fome, a crise econômica e social, a não perspectiva de futuro que estão aprofundando os problemas relacionados à saúde mental?
É a escola ou a ausência de atendimento psicológico na atenção básica da saúde que não permite com que os problemas de saúde mental sejam tratados com seriedade?
O retorno das aulas da forma como está proposto não traz sensação de segurança e estabilidade para nenhum dos envolvidos na educação. Pelo contrário, traz o medo, pressão, insegurança, incertezas, que obviamente acarretarão em maior desestabilização psicológica por todos, estudantes e trabalhadores da educação.
Não temos condições para retornar às aulas presenciais de forma segura. Os problemas são reais: desigualdade escolar, vulnerabilidade, saúde mental. Mas não adianta tapar o sol com a peneira e ter medidas midiáticas, publicitárias, em vez de apresentar propostas consequentes, que de fato resolvam estas questões e preservem a vida.
O que precisamos para o retorno seguro é a vacinação de todos os trabalhadores da educação. Para um estado rico como São Paulo, o qual sedia e financia o Instituto Butantan, não é nada vacinar os trabalhadores da educação para o retorno seguro das aulas. Podemos antecipar o recesso de julho para nos organizarmos para a vacinação e o retorno, sem prejuízos para o calendário escolar. Se educação é um serviço essencial (para nós é um direito, não um serviço), vacinação já!
A proposta do governador João Doria do retorno das aulas presenciais sem a vacinação é a mesma política genocida e negacionista do governo Bolsonaro. Bolsodoria assassinos!
* Barbara Pontes é professora da rede pública de ensino em São Paulo, militante da Consulta Popular e integrante do coletivo Educadores do Projeto Popular
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rogério Jordão