Milhões não concluíram a educação básica
Quase 5 milhões de jovens e adultos não concluíram a educação básica no RS
E só em Porto Alegre são 60 mil analfabetos. Professores e alunos dos Núcleos Estaduais de Educação de Jovens e Adultos (Neejas) convivem há mais de cinco anos com a ameaça de fechamento deste serviço
Por Marcia Anitta / Publicado em 20 de dezembro de 2021
Embora existam hoje 4,9 milhões de pessoas que não concluíram a educação básica no Rio Grande do Sul, professores e alunos dos Núcleos Estaduais de Educação de Jovens e Adultos (Neejas) convivem há mais de cinco anos com a ameaça de fechamento deste serviço, disponibilizado de forma pública e gratuita.
“Há um sucateamento em curso desde o governo José Ivo Sartori (2015/2018) e se mantém na gestão Eduardo Leite. Temos conseguido resistir, mantendo horários de aula e de provas para os alunos”, relata o professor de História Silvio Alexandre de Oliveira, do Neeja Paulo Freire, de Porto Alegre.
O público a ser beneficiado é tão expressivo que chega a ser de 2,5 milhões na Região Metropolitana. Em Porto Alegre, são 640 mil, sendo que a capital ainda possui 60 mil analfabetos.
Disposta a não integrar mais esta estatística, há dois anos a então auxiliar de limpeza Vera Lima comentou com um colega o desejo de retomar os estudos que abandonou aos 12 anos para trabalhar. “Não conheci minha mãe, fui criada pela avó”. Casou pela primeira vez aos 16 anos e foi mãe cedo, o que a afastou definitivamente da escola na idade regular. Por orientação do colega, chegou ao Paulo Freire. “Comecei do zero. Fiz todo o fundamental e agora estou finalizando o ensino médio” diz ela, prestes a completar 60 anos .
O Paulo Freire é um dos cinco Neejas existentes em Porto Alegre. Além dele, há os núcleos Darcy Vargas, Darcy Ribeiro, Vicente Scherer e Menino Deus. E ainda os prisionais.
“Existem alguns pelo interior do Estado, mas é uma rede desarticulada. Desde 2015 a Secretaria da Educação não promove encontros, cursos, formações para quem atua na área”, aponta Silvio. Segundo ele, “há um interesse em fechar os Neejas, sob a alegação de que não há alunos”.
Os números acima demonstram o contrário. Porém, este tipo de ensino não é divulgado e valorizado. “Por não conhecerem os Neejas, as pessoas acabam recorrendo aos cursos privados, muitos de qualidade duvidosa, fazendo sacrifícios para a conclusão de seus estudos básicos”, diz o professor.
Com esta porta aberta, as pessoas, como Vera, tomam conhecimento e se matriculam. Em 2019, o Neeja Paulo Freire teve 2.500 inscritos. Destes, 900 conseguiram concluir seu estudo. Em 2020 caiu para mil inscrições, muito em função da pandemia.
A diretora Joana Guellar aponta outro fator para a redução. “Estão vindo menos em função do custo da passagem”. Para facilitar, o Núcleo disponibilizou acesso às aulas por redes sociais, “mas mesmo isto é complicado para os alunos. Não há equipamento adequado, muitos não tem celular com internet, não tem computador”.
Enquanto lutam para manter a porta aberta Joana diz enfrentar o descaso da gestão estadual. “Este ano nos tiraram a alfabetização”. Ela ainda lida com a perda de profissionais. Quando assumiu a direção, em 2016, o Núcleo contava com 56 professores. Hoje são 20. Além de aposentar, alguns professores foram deslocados para escolas regulares.
Outra briga, conforme o professo Silvio, é o governo insistir que os Neejas sejam meros aplicadores de provas. “Queremos proporcionar conhecimento e, depois, aplicar provas. Não só certificar, mas certificar com qualidade”.
Investimento necessário
Diretora e professor concordam sobre a necessidade de os governos entenderem que a educação de jovens e adultos é importante, aumentando investimentos humanos e financeiros. “A relação custo/benefício, inclusive, é muito boa para o Estado”. Porém, em vez de evoluir, a luta tem sido para evitar o fechamento do serviço.
“Uma escola como o Neeja não pode fechar, para que mais pessoas como eu tenham esta oportunidade, defende Vera Lima. Sua vontade de aprender contaminou o atual companheiro, Fernando Eleodoro, também de 60 anos. Ele teve de trabalhar aos 14 anos, após a morte do pai. “Perdi muitas oportunidades por não ter estudo”. Com o apoio de Vera, ele se inscreveu para fazer o ensino fundamental, realizou as provas e agora cursa o ensino médio.
Comer ou se deslocar
Professora de Geografia, Graziela Gibrowski comenta que muitos estudantes vêm de bairros distantes e da Região Metropolitana. “É uma dificuldade para eles. Muitos não têm o que comer, então, em vez de vir para aula, usam o dinheiro do transporte com comida”. Entre os que não desistem estão os que caminham longas distâncias até chegar à escola. “Tem gente vindo com fome, mas por serem adultos, não tem direito à alimentação. Se tivéssemos uma política comprometida com a educação, isto seria levado em conta”.
O ingresso dos alunos se dá a qualquer tempo. A maioria dos alunos trabalha e/ou tem filhos, necessitando de flexibilidade no atendimento. “Nem sempre o aluno que frequenta o turno da manhã pode seguir sempre o mesmo horário. Então, tem que flexibilizar”, informa Silvio. É a partir do perfil do aluno e do diagnóstico do professor que os conteúdos são desenvolvidos. São imigrantes, idosos, pessoas que já estiveram em situação de rua, profissionais de diversas áreas. “É fantástico, porque o trabalho é feito para beneficiar a classe trabalhadora”.
Aos 53 anos, Rosângela Paim Santos recorda sua escalada até chegar ao curso técnico em análises clínicas. Três anos antes ela começou pela alfabetização, ensino fundamental e médio no Paulo Freire. “Fui mãe aos 15 anos, com 18 anos já tinha três filhos, foi um atrás do outro”. Ela decidiu recuperar o tempo perdido. “Nunca é tarde para buscar um objetivo”.