Mito da docência por vocação
Tarcísio de Freitas e o mito da docência por “vocação” e “amor”, por Francisco Fernandes Ladeira
Segundo Tarcísio de Freitas, os professores não têm as melhores condições de trabalho, mas trabalham “com muito amor”
22 de fevereiro de 2024
As declarações públicas e políticas educacionais como as adotadas por Tarcísio de Freitas
contribuem para precarizar ainda mais o magistério brasileiro.
| Foto: © Marcello Casal Jr/Agência Brasil
por Francisco Fernandes Ladeira*
Em meio à repercussão das denúncias do genocídio em Gaza feitas pelo presidente Lula, ao depoimento de Bolsonaro na Polícia Federal e ao vexame do Cruzeiro na Copa do Brasil, uma declaração de Tarcísio de Freitas quase passou despercebida pelo público. Segundo o governador de São Paulo, os professores da rede estadual de ensino não têm as melhores condições de trabalho, como infraestrutura e remuneração, mas trabalham “com muito amor” e fazem “grande trabalho”.
O que poderia se passar como mais uma ironia que demonstra o desprezo da extrema direita pela educação, constitui um exemplo de um dos maiores mitos relacionados à docência (adotado, inclusive, por muitos setores progressistas). Trata-se da (falsa) premissa que relaciona a profissão de professor exclusivamente à “vocação” e “amor pelo trabalho”.
Claro que o educador pode gostar de seu ofício, mas este tipo de pensamento citado acima contribui de forma decisiva para a desprofissionalização do magistério. Nessa lógica, se o professor trabalha por “amor” e “vocação”, logo não precisa se preocupar com outras questões, como infraestrutura escolar, materiais didáticos adequados, formação continuada, carga horária semanal, plano de carreira e, principalmente, remuneração. “Quem quiser dar aula, faça isso por gosto, e não pelo salário”, diz uma frase bastante difundida pelo senso comum.
Não por acaso, Paulo Freire já denunciava que a troca da palavra “professora” por “tia”, para designar “pessoa que ensina”, é uma armadilha ideológica, pois, ao transformar a educadora numa espécie de” parente postiço”, ocultam-se as competências necessárias ao magistério, que vão além do afeto e cuidado que as tias podem oferecer às crianças. Para o educador brasileiro, “professora” é uma função profissional que requer formação acadêmica, uma profissão, enquanto “tia” tem um relacionamento de parentesco, que permeia outro tipo de função e comportamento com os sobrinhos, que envolve relação familiar.
Conforme ressaltou o historiador Humberto Corrêa dos Santos, em artigo acadêmico, “esse modismo [chamar a professora de “tia”] foi uma forma que governantes encontraram para inibir as professoras a lutarem por direitos de melhores salários, condições de trabalho e reconhecimento profissional. Afinal, nenhuma tia deixa de cumprir a obrigação para com seu sobrinho em detrimento de um direito seu.
Além disso, a imagem da docência como “vocação”, “amor” e “missão”, também atribui ao professor certos “poderes” que estão muito além de sua função, como, por exemplo, modificar uma determinada realidade educacional adversa somente por suas ações. Produções da indústria cultural, como a série da Rede Globo “Segunda Chamada” e os filmes “Ao mestre com carinho”, “Sociedade dos Poetas Mortos” e “Além da Sala de Aula” seguem essa direção.
Apesar de distantes no tempo e no espaço, essas obras apresentam enredos similares: um professor (ou professora) começa a lecionar numa escola (em algumas oportunidades, com estudantes indisciplinados ou com problemas de aprendizagem). A princípio, ele/a encontra resistência por parte do corpo discente (e dos demais sujeitos escolares). Porém, no decorrer do ano letivo, recorre a algum procedimento didático e resolve, de uma vez por todas, os problemas daquela escola.
Mesmo que aparentemente bem-intencionada, esta representação romantizada do professor como “herói” da educação é prejudicial ao docente, pois o responsabiliza, exclusivamente, pelo êxito do (complexo) processo de ensino-aprendizagem, a despeito de condicionantes estruturais.
Não obstante, esse tipo de imaginário social, ao superdimensionar as possibilidades de atuação docente, pode frustrar profissionais em início de carreira. Ao sair da graduação, com grande expectativa para exercer o novo ofício, o professor chega à escola acreditando que, assim como nos filmes ou em algumas teorias acadêmicas, ele vai mudar toda a dinâmica educacional, fazer com que os alunos assimilem o conteúdo de maneira satisfatória, acabar com a indisciplina em sala de aula, formar cidadãos críticos etc. Porém, como sabemos, a (dura) realidade é bastante diferente.
Evidentemente podemos amar a docência. No entanto, acima de tudo, é preciso que os governantes garantam respeito e condições dignas de trabalho para este profissional, tão importante para os desenvolvimentos econômico e humano de nossa sociedade. Portanto, declarações públicas e políticas educacionais como as adotadas pelo governador Tarcísio de Freitas (essas nem “aparentemente bem-intencionadas”) contribuem para precarizar ainda mais o magistério brasileiro.
*Francisco Fernandes Ladeira é professor e doutorando em Geografia pela Unicamp.
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