Motivos para a crise do IPE Saúde
Atraso em repasses, descaso e fim da gestão paritária: servidores apontam motivos para a crise do IPE Saúde
Funcionalismo avalia que governo Leite cria dificuldades para realizar o pagamento dos hospitais pelos serviços médicos
CARLOS ROLLSING
A atual crise do IPE Saúde, uma das mais graves da sua história, é atribuída por entidades sindicais de servidores públicos a um suposto descaso do governo Eduardo Leite com o plano de saúde que garante atendimento a cerca de 1 milhão de pessoas no Rio Grande do Sul.
Entre as causas do problema, são apontadas a estagnação da receita do instituto ante o crescimento das despesas, a suposta politização das decisões, o fim da paridade da gestão entre governo e servidores e o atraso no recolhimento das contribuições patronais, de responsabilidade do governo.
Ainda são citados outros fatores, como o esvaziamento do patrimônio do IPE Saúde, que teve duas centenas de imóveis de sua propriedade transferidos ao Estado, sem indenização até o momento.
O fato é que o instituto deve R$ 1,1 bilhão para hospitais e clínicas gaúchas pela prestação de serviços médicos aos usuários. Alguns dos atrasos chegam a 180 dias. Na semana passada, a Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Rio Grande do Sul e a Federação dos Hospitais do Rio Grande do Sul (Fehosul) protocolaram comunicação alertando o IPE Saúde e o governo estadual para o risco de rescisão de contratos e suspensão do atendimento aos segurados. Essa hipótese, se concretizada, colocará cerca de 10% da população gaúcha na desassistência do plano de saúde.
— O governo Leite desprezou o IPE Saúde. Imagina colocar mais 1 milhão de pessoas no SUS? Vai ser um colapso. A crise deve preocupar a toda a sociedade gaúcha porque isso vai impactar a todos negativamente — diz Sérgio Arnoud, presidente da Federação Sindical dos Servidores Públicos no Estado do Rio Grande do Sul (Fessergs).
A estagnação da receita do IPE Saúde é uma das causas mais citadas para a derrocada. O dinheiro que ingressa na instituição para pagar despesas é gerado a partir do repasse de 3,1% do salário de cada segurado. Para cada servidor, o governo faz uma contribuição paritária, de igual valor e alíquota. Todo o montante vai para o Fundo de Assistência à Saúde (FAS), usado pelo instituto para quitar as despesas dos segurados com a rede hospitalar.
Como vários setores do serviço público estão sem correção salarial desde 2015, a alíquota incide sobre os mesmos valores, defasados ante à inflação, enquanto o custo dos serviços hospitalares aumentou.
— A verba está congelada e a inflação médica é galopante. O IPE Saúde trabalha com uma receita de 2015 para lidar com gastos médicos de 2022. Parte da solução é dar reposição salarial aos servidores. Isso vai elevar o dinheiro que entra — diz Marcia Elisa Trindade, conselheira do IPE Saúde por indicação da Fessergs e integrante de um fórum em defesa da instituição.
A partir de 2018, ainda no governo de José Ivo Sartori, foram aprovadas mudanças na estrutura do IPE. Antes, a parte de saúde pertencia ao mesmo instituto que cuida da previdência dos servidores estaduais, embora com um CNPJ diferente. Com a mudança, foram separadas institucionalmente e surgiu, então, o IPE Saúde.
Nesse novo formato, os funcionários públicos apontam que teria sido causado prejuízo à gestão com o fim da gestão paritária — em que os quatro diretores do IPE eram indicados pelos servidores e pelo governo, dois para cada. O diretor de Saúde, que tratava da relação com os hospitais, inclusive na questão dos pagamentos, era indicação dos servidores. Atualmente, o governo indica todos os diretores. Para as categorias do funcionalismo, isso tornou o órgão mais propenso a decisões políticas, e a cobrança pelos repasses do Estado para quitar pendências nas cotas patronais foi suavizada.
— Quando a gestão era paritária, todos os diretores tinham o mesmo peso na hora de votar. Era mais complicado de o governo intervir. Conseguíamos manter uma média entre as ideias do governo e os interesses dos servidores. Com a nova lei, isso mudou completamente. As decisões, em vez de técnicas, agora são somente políticas. Usávamos a força que tínhamos na direção para pressionar pelos depósitos das cotas patronais — relata Antônio de Pádua Vargas Alves, ex-diretor de Saúde do IPE, indicado pelos servidores, entre 2012 e 2016.
Ele diz que, à época da sua gestão, foi possível avançar para um calendário que previa pagamentos a cada 10 dias.
— Isso era importante para os hospitais. Eles podiam contar com esse dinheiro sem recorrer a bancos. Hoje tem prestador com atraso de seis meses para receber. Aí é para quebrar — diz Alves.
Os representantes dos servidores são unânimes ao apontar que o governo estadual está atrasando o recolhimento ao FAS das cotas patronais de 3,1% sobre o salário de cada servidor segurado. Isso deixa o IPE Saúde com menos fluxo, contribuindo para o atraso das contas.
O FAS, nessa situação, não consegue somar uma quantia considerável de reserva, o que seria adequado para a estabilidade do plano de saúde. O dinheiro que entra, imediatamente sai. A reportagem questionou ao IPE Saúde sobre o atraso no repasse das cotas patronais e o volume de recursos envolvidos e aguarda resposta.
— O governador festeja um caixa positivo do Estado. Se temos dinheiro, por que os atrasos? O governo cria dificuldade para os repasses. É uma política de desmonte, está claro — afirma a conselheira Marcia.
Tanto ela quanto o ex-diretor Alves avaliam que as políticas de governo indicam a possível intenção de repassar o IPE Saúde à iniciativa privada.
— Ficam inadimplentes, a dívida vira monstruosa e apresentam a privatização como solução — avalia Alves.
A pandemia de coronavírus e o consequente aumento da demanda por internações e serviços de UTI são apontados como um causador de despesas adicionais que não teriam sido cobertas a contento pelo Palácio Piratini. A reportagem questionou a direção do instituto sobre o volume incremental de gastos devido a pandemia e aguarda resposta.
Também frequente é a crítica ao esvaziamento do patrimônio do IPE Saúde. Por força de uma legislação de 2018, a mesma que criou e separou o IPE Saúde da parte da previdência, foram transferidos para a posse do Estado, sem indenização prévia, 217 imóveis que eram de propriedade do plano de saúde.
Esses bens, desde terrenos até apartamentos, eram ligados ao FAS e ajudavam a dar lastro financeiro, dizem as entidades dos servidores públicos. Quando transferidos à posse do Estado, passaram a ser vendidos e envolvidos em permutas. A legislação prevê que “o Estado deverá cobrir eventuais insuficiências financeiras do FAS até o limite do valor dos imóveis transferidos”, mas o Ministério Público (MP) sustenta que, apesar da previsão, “não se tem notícia de qualquer indenização recebida pelo IPE Saúde”.
O MP ingressou com ação requerendo a nulidade da mudança de posse dos imóveis ou o pagamento de indenização ao IPE Saúde do valor integral e atualizado dos bens. À frente da iniciativa, a promotora Josiene Menezes Paim sustenta que o Estado praticou suposto enriquecimento ilícito por transferir para si posses do IPE Saúde “sem qualquer indenização, esvaziando o lastro imobiliário das ações de saúde do instituto”.
Em primeira instância, a ação foi considerada improcedente, após julgamento na 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre. Atualmente, o caso tramita em segundo grau, na 22ª Câmara Cível, onde deverá ser julgada a apelação do MP.
Problema antigo
Embora as críticas do funcionalismo recaiam principalmente sobre o atual governo, as dificuldades no órgão são consideradas históricas. Em 2015, antes mesmo de se tornar um instituto independente, o plano de saúde do IPE registrou um déficit de R$ 107,3 milhões milhões no FAS. Isso significa que, naquele ano, a sinistralidade, relação entre receitas e gastos médicos, ficou em 106% — para cada R$ 100 arrecadados, foram despendidos R$ 106. Para um plano ser considerado saudável, a sinistralidade precisa ficar na casa dos 85%. Já naquela época, um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) apontava para o risco de insustentabilidade devido à relação desequilibrada entre receitas e despesas.
O deputado estadual Giuseppe Riesgo (Novo) reuniu parlamentares em dezembro passado para discutir, em uma subcomissão específica, os problemas de gestão e a dívida do IPE Saúde. Além do parlamentar do Novo, foi atuante no fórum o deputado estadual Pepe Vargas (PT).
Riesgo relata que decidiu fazer o movimento quando passou a ser procurado por hospitais e clínicas que relatavam demora de até 150 dias para receber pagamentos por serviços de saúde prestados. O parlamentar diz que, nas reuniões, o IPE Saúde confirmou atraso no repasse da cota patronal pelo governo, mas ele considera isso só uma parte do imbróglio.
— O então presidente do IPE Saúde afirmava isso, que a patronal estava atrasada e que o governo não repassava o valor. Mas o problema é estrutural. Tem de mudar a forma de arrecadação e a forma do pagamento. Existe uma completa desestruturação entre receitas e despesas. A receita é estruturada com base no salário do servidor, e não na condição de saúde da pessoa, na idade e no risco de sinistro — diz Riesgo.
Uma das consequências da cobrança de 3,1% de alíquota de forma igual para todos os servidores públicos é que os mais jovens e de salários mais altos costumam se desvincular do IPE Saúde — a participação do plano não é obrigatória e há regras para aderir ou sair. Para servidores jovens e de alto salário, a análise é de que pagar um plano de saúde privado acaba sendo mais barato do que o desconto de 3,1%. Com a saída dessa massa de melhores remunerações, o IPE Saúde perde justamente o público que, na sua ideia de concepção, deveria ajudar a sustentar a operação para atender os servidores públicos de salários baixos.
— A situação do IPE Saúde não é problema novo. É uma autarquia politizada, usada por partidos. Os presidentes, em geral, são políticos — afirma Riesgo.
No atual governo, o IPE Saúde passou o primeiro semestre de 2019 sendo dirigido por um interino. Agora, já está na gestão do terceiro presidente.
Nesta segunda-feira (21), o IPE Saúde publicou nota informando que está em negociação com os hospitais para assegurar a continuidade dos atendimentos aos usuários. Uma nova reunião estava prevista para ocorrer nesta semana.
“Estamos trabalhando em conjunto com as instituições hospitalares para a construção de uma solução que seja adequada a todos os envolvidos, dentro de um contexto de reequilíbrio", afirmou o atual presidente do IPE Saúde, Bruno Jatene, que assumiu o cargo há poucos dias.